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A família do pedreiro desaparecido |
O texto abaixo foi publicado no site Unisinos. Os autores são Martha Neiva Moreira, Rogério Daflon e Camila Nobrega.
O assessor Guilherme Pimentel, da Comissão de Direitos Humanos, foi convocado no último dia 17 a ir a uma manifestação de moradores da Rocinha. Eles tinham fechado a estrada Lagoa-Barra na altura da comunidade.
O protesto vinha em forma de pergunta: Cadê o Amarildo?
O clima era de tensão e revolta. Na véspera, alertada por residentes da favela de São Conrado, a comissão já informara o desaparecimento do pedreiro Amarildo de Souza à Polícia Civil, à Coordenação das UPPs.
- É preocupante essa história de um cidadão desaparecer, logo depois de ter sido levado para averiguação na polícia na sede da UPP da Rocinha. Isso demonstra a fragilidade da democracia em algumas áreas da cidade – disse Guilherme.
Ele informou que a família depusera, dois dias antes, na Comissão de Direitos Humanos da Alerj na presença do delegado que investiga o caso, Orlando Zaccone.
O pedreiro foi visto pela última vez na noite do dia 14 de julho, após uma operação da Polícia Militar para prender 30 pessoas da comunidade suspeitas de participação no tráfico local.
Testemunhas dizem que ele entrou na sede da UPP, mas não saiu. A entrada foi filmada, mas na saída, de acordo com a polícia, as câmeras não estavam funcionando. Para o delegado Orlando Zaccone, os protestos são legítimos.
- Eles mostram que não existe vida mais importante que outra – disse Zaccone.
O caso deve ir para a Delegacia de Homicídios nos próximos dias.
A Comissão de Direitos Humanos da Alerj, com a presença do deputado Marcelo Freixo, do PSOL, reuniu-se com cúpula de segurança pública, para fazer um pedido simples: uma resposta mais densa sobre o desaparecimento de Amarildo.
Nela, estiveram presentes o secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, a chefe da Polícia Civil Martha Rocha e o major Paulo Henrique, da UPP da Rocinha. Mas até agora não houve nenhuma resposta convincente.
O primeiro caso de morte de um morador de uma favela pacificada de que se tem notícia ocorreu em 12 de junho de 2011, dia dos namorados, no Pavão-Pavãozinho.
André Ferreira, de 19 anos, saiu apressado para uma festa onde a namorada, grávida de 9 meses, o esperava. No caminho, foi abordado por policiais e, logo depois, foi encontrado nas ruas da comunidade ferido por tiros.
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André Ferreira, 19 anos, foi para uma festa onde a namorada o esperava, mas jamais chegou ao destino |
À época, a polícia classificou o caso como um “auto de resistência”, em menção a uma possível reação brusca do jovem à abordagem. A perícia concluiu, no entanto, que o jovem foi ferido pelas costas.
No mesmo dia, moradores que assistiram à cena foram às ruas protestar. Os policiais envolvidos ainda respondem em liberdade por processo referente ao caso.
Após o ocorrido, a mãe de André, Deise Carvalho, tornou-se uma das principais militantes contra a violência policial na comunidade.
A morte de André estarreceu moradores e também pessoas que trabalhavam na favela. Segundo relatos de pessoas que não quiseram se identificar, a comunidade tem uma relação difícil com a UPP instalada lá e já houve outros casos de abuso policial.
Embora André tenha sido o primeiro caso, não foi o único. Segundo informações da Rede contra a Violência, no morro do Fogueteiro, no Catumbi, também em junho de 2011, a comunidade delatou o assassinato do mecânico Jackson Lessa dos Santos e do adolescente Thales Pereira Ribeiro. Policiais seriam os principais suspeitos da ação.
Os moradores protestaram, mas não houve respostas. Na Fallet, ocupada pela mesma UPP do Fogueteiro, uma menina de 10 anos foi baleada na perna durante uma operação policial pouco tempo depois.
E em março de 2012 um morador de 22 anos foi alvejado por um PM que teria agido, segundo moradores, por ciúmes da namorada que mora na comunidade.
No Complexo do Alemão, o jovem Abraão Maximiano, de 15 anos, teria sido executado, sem que tenha havido investigação.
A Rede contra Violência ressalta que esses são casos que se tornaram públicos. A maior parte das famílias não chega a fazer denúncias por medo.
Não apenas conflitos com policiais terminaram em morte nas comunidades pacificadas. Um caso que se tornou conhecido entre os moradores do Morro dos Macacos, em Vila Isabel, na Zona Norte, é o do comerciante, fundador e presidente da Associação Comercial dos Macacos, Flávio Duarte de Melo, de 40 anos.
Ele foi assassinado em setembro de 2012, dentro de sua padaria. Ele era considerado um colaborador da UPP e havia sido chamado, pouco tempo antes, para ser mestre de cerimônia de um casamento comunitário organizado pela unidade pacificadora.
Para moradores do local, a morte foi uma resposta do tráfico ao envolvimento de Flávio com os policiais, que não encontraram suspeitos.
Menos de 48 horas depois, Gilmar Campos, amigo de Russo, também foi executado. Os dois casos foram divulgados na imprensa, mas a investigação não solucionou nenhum dos dois.
Para além destes casos, há outras violações policiais em favelas pacificadas. Uma pessoa que trabalha em uma instituição no morro do Andaraí e preferiu não se identificar contou à reportagem que o comando da UPP no local têm ações de intolerância religiosa.
Ao proibir músicas a partir das 22h em determinada região, o objetivo principal seria coibir os rituais realizados em terreiros da favela.
- As mortes são os fatos que mais assustam, claro. Mas até que se chegue a esse extremo, há uma série de violações de diversas naturezas acontecendo nas favelas – contou a fonte.
No Santa Marta, uma das principais reivindicações dos moradores que foram às ruas em passeata realizada no início deste mês foi a liberação do uso da quadra da própria comunidade. A UPP coordena o uso do local e coibiu eventos realizados pelos moradores. Em outras comunidades há denúncias de que policiais entram em casas de moradores para acabar com festas, proibindo sons de funk e outras músicas.
Antes que haja agressões, há princípios da dignidade humana feridos. Por mais que se saiba da dificuldade de coibir a violência nas comunidades cariocas e a atividade dos traficantes, não há justificativa para tais ações frente aos moradores.
Em visita ao Complexo de Manguinhos, no Rio, o papa Francisco disse que o esforço de pacificação tem que ser acompanhado de justiça social.
No entanto, para os moradores da região esta realidade parece não existir nem em sonho. Há três meses a equipe do Fórum Social de Manguinhos se reúne com grupos do complexo de favelas para saber, entre outras informações, como eles imaginam que seja uma comunidade segura. Mas não consegue extrair qualquer impressão.
Segundo Fransérgio Goulart, uma das lideranças dali, por falta de parâmetros, a população local sequer vislumbra este cenário.
Os anos de opressão e insegurança, explica ele, embaçam a visão de quem nunca teve paz. A violação de direitos, traduzida pela truculência policial e abandono por parte do poder público, naturalizou uma situação de exceção em Manguinhos, que se reproduz em outras favelas da cidade, mesmo depois da implantação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs).
- Nos debates com moradores que estamos realizando para produzir uma cartilha reunindo os direitos do cidadão que mora em favela, não conseguimos ter uma resposta deles de como seria uma favela segura. Simplesmente não conseguem vislumbrar sequer que uma rua iluminada possa trazer segurança. Nem em sonho parece possível imaginar uma favela mais segura – disse Fransérgio.
Por isso mesmo o sumiço recente do pedreiro Amarildo na Rocinha não causou espanto a Fransergio nem há outras lideranças de favelas que a equipe do Canal Ibase ouviu. Pelo contrário, eles reafirmaram que viver em território pacificado hoje é sinônimo de ter que lidar, diariamente, com violação de direitos por parte da polícia.
- Não me causou espanto – e acho que a ninguém que mora em favela – a história do Amarildo. Este não foi o primeiro caso suspeito em comunidades com UPP. Logo que foi implantada no Borel (2010), um rapaz foi parado em uma blitz dos policiais da UPP e ninguém mais soube dele. Foi visto pela última vez com os policiais. O Estado garantiu que os policiais de UPP seriam diferentes, mas o que vemos é que o treinamento é o mesmo de sempre. A polícia não mudou – contou Mônica Francisco, da Rede de Mulheres do Borel e do grupo Arteiras.
No Borel, como ela explica, a polícia parece não ter uma norma de conduta pois até crianças estão sendo revistadas, ferindo o artigo 18 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que estabelece que “é dever de todos zelar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório e constrangedor”.
Já cedo, por volta das sete da manhã, os moradores que estão levando filhos para a escola ou descendo para o trabalho se deparam com revistas de policiais. Nem idosos costumam ser poupados.
- É uma rotina de desrespeito com os moradores que o comportamento da polícia impõe. Outro dia, meu marido e filho estavam descendo do ônibus no ponto em frente à favela. Logo que saíram, tinha um policial fazendo revista de todos, de forma truculenta – observou Mônica.
A lista de arbitrariedades no Borel não para por aí. No morro, é a UPP que tem o controle do mototáxi. Os moradores se perguntam por que o transporte tem que ser controlado pela força policial.
Em Manguinhos a realidade não é diferente. Segundo Fransérgio Goulart, na favela persiste o toque de recolher não-oficial, às 23h, todos os dias, indicando que a presença de policiais da UPP ainda não deu tranquilidade à população para transformar uma rotina imposta durante anos pelo tráfico.
Para fazer qualquer atividade cultural, é preciso pedir autorização do comandante da UPP.
A juventude é que mais sofre com as revistas arbitrárias e achaques em Manguinhos. Tanto é que passaram a só andar em grupo pelas ruas da comunidade como medida de proteção. Não faltam casos, segundo Fransérgio, de garotos que perderam seus CD players porque estavam ouvindo funk e policiais desligaram na marra e levaram o aparelho. Ele contou que o abuso é tamanho que policiais entram arbitrariamente na casa das pessoas sem pedir licença.
- Outro dia, próximo da minha casa, um grupo de policiais entrou na residência de uma vizinha porque queria saber o que o filho dela, que dormia, fazia da vida. O rapaz acordou e mostrou a carteira profissional. Era soldado do Exército. A polícia foi embora. Mas e se ele não fosse soldado ou não tivesse carteira de trabalho? O que aconteceria com este rapaz, arbitrariamente escolhido para uma revista pelos policiais?
Os anos de opressão do tráfico e agora a vivência de situações desrespeitosas geram, na população das favelas cariocas, a sensação de medo.
Nas últimas semanas, os debates sobre o assunto se tornaram ainda mais acalorados nas favelas cariocas, em função dos protestos que tomaram as ruas do Rio de Janeiro.
Pela primeira vez, moradores estão encontrando apoio para denunciar a situação de opressão imposta pelas UPPs. Um twitaço realizado esta semana deixou a pergunta “cadê o amarildo” entre os trending topics – os tópicos mais recorrentes, segundo lista do próprio Twitter – no Brasil.
O caso teve repercussão no país inteiro e ganhou adeptos pelo mundo. Pela internet, a pergunta pelo paradeiro do morador já apareceu em pelo menos outras seis linguas.
Amarildo se tornou um símbolo de um cotidiano onde os amarildos proliferam. Onde estão todos eles? E para onde o Rio de Janeiro caminha nessa ótica de pacificação – sim, e com seus benefícios -, mas calcada na repressão?
É o que milhares de pessoas perguntam há mais de um mês nas ruas.
Sem resposta.
No Diário do Centro do Mundo