Uma três melhores legislações do
mundo para a proteção à mulher, a Lei Maria da Penha salvou milhares de vidas,
mas ainda ainda enfrenta desafios para sua plena efetividade, principalmente
quanto às medidas preventivas.
Ainda hoje, 15 anos após sua
criação, a Lei Maria da Penha enfrenta seus desafios, seja pela falta de
entendimento amplo da legislação ou por problemas na aplicação. Ainda assim, já
salvou e salva muitas mulheres no país que registra um feminicídio a cada sete
horas, de acordo com dados de 2019.
A legislação já foi considerada
pela Organização das Nações Unidas (ONU) a terceira melhor de proteção à mulher
do mundo, atrás apenas da espanhola, de 2004, e da chilena,de 2005. As outras
duas preveem educação e conscientização nas escolas.
A deputada federal Jandira
Feghali (PCdoB-RJ), relatora da Lei na Câmara dos Deputados, afirma que há
muito o que comemorar. “Não há dúvida que esta legislação foi um divisor de
águas no combate à violência doméstica contra a mulher. A lei é muito ampla,
mas – como tudo – necessita de investimentos para que seja cumprida em sua
íntegra”, afirma a parlamentar.
“É uma legislação muito boa
porque é resultado de um consórcio de ONGs, de pesquisadoras, que, com muito
estudo, muito debate, muita pesquisa, chegaram à redação legal específica
depois de um longo processo estratégico e bastante amplo, pensando nas
possibilidades”, diz a jurista Marina Ganzarolli, advogada especialista em
direito da mulher e cofundadora do movimento MeToo Brasil.
Promulgada em 7 de agosto de
2006, a lei leva o nome da farmacêutica Maria da Penha, hoje com 76 anos, e se
originou da luta para que seu agressor, o ex-marido Marco Antonio Heredia
Viveros, fosse condenado. Em 1983, ele tentou matá-la duas vezes — ela ficou
paraplégica por conta das agressões. Viveros foi julgado em 1991 e 1996, mas
escapou da condenação. Somente em 2002, quando faltavam seis meses para a
prescrição do crime, acabou condenado — cumpriu um terço da pena e foi solto em
2004.
Para a historiadora Maíra Rosin,
pesquisadora na Universidade de São Paulo (USP), a Lei Maria da Penha precisa ser
pensada dentro de um conjunto de conquistas dos direitos das mulheres no
Brasil: “As mulheres brasileiras só
adquiriram direitos políticos em 1932, a lei do divórcio é dos anos 1970, e até
então as mulheres dependiam dos maridos para absolutamente tudo, eram quase
corpos sem nenhum direito”, aponta. “A Lei Maria da Penha é um grande ganho na
política do que é ser mulher no Brasil, ainda mais sabendo que vivemos em um
país bastante machista, com um regime patriarcal que ainda vigora, uma coisa
muito violenta contra a mulher”, afirma a historiadora.
Milhares de vidas poupadas
Com a lei, passou a haver maior
discussão sobre a violência contra a mulher no país, aumentaram “timidamente”
as notificações e foram encorajadas denúncias, apesar de ainda se estimar que
elas não passem de 10% a 20 % dos casos efetivos de violências de gênero, de
acordo com a psicóloga Simone Mainieri Paulon, professora na Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e na Universidade Federal do Espírito
Santo (UFES). “Isso tem efeitos diretos no combate a tais violências,
impactando, inclusive, na sua forma extrema, que é o feminicídio.”
Uma pesquisa publicada em 2015
pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) indicou que a lei promoveu
uma diminuição de 10% na taxa de homicídios contra mulheres praticados dentro
das residências. “Para além da longa e necessária mudança cultural e prevenção
de novos casos de violência, tais resultados permitem dizer que a Lei Maria da
Penha já foi responsável por poupar a vida de milhares de brasileiras que
teriam sido assassinadas no mesmo período”, avalia Paulon.
Para a arquiteta Dayane Viola, a
Maria da Penha fez a diferença entre a vida e a morte. Em um domingo de
novembro de 2020, ela pôs fim a um namoro de dez meses, motivada pelo
comportamento agressivo do então companheiro, que já havia desferido socos em
uma ocasião. Dois dias depois, foi chamada pelo ex-namorado para levar um
remédio à sua casa — os dois moravam no mesmo edifício. Foi quando apanhou
ininterruptamente dele, um lutador de artes marciais. Teve lesões nos braços,
nas cordas vocais, nas pernas e no rosto. “Ele tentou me matar”, conta.
Entre as agressões, no entanto,
conseguiu chamar a polícia e enviar a localização pelo telefone celular. No
mesmo dia, o ex-namorado foi detido. Em seguida, obteve uma medida protetiva —
que saiu antes de o agressor ser solto em audiência de custódia. Há um
inquérito a respeito do caso.
“Se não existisse a Lei Maria da
Penha, a minha palavra não seria ouvida”, diz. “Hoje ele é obrigado a dizer
onde está, não pode se ausentar mais de dez dias da cidade, é uma pessoa
monitorada. Então, para ele fazer algo contra mim, fica muito difícil. Todas as
vezes que ele tentou violar a medida protetiva, a Polícia Militar foi efetiva.
E isso se deve à Lei Maria da Penha.”
Desafios na aplicação
Estudiosa de vários casos de
violência contra a mulher no Brasil, sobretudo no século 19 e início do século
20, a historiadora Rosin argumenta que o maior gargalo para a legislação está
nos mecanismos de cumprimento da norma.
“Muitas mulheres não denunciam
porque têm medo, sofrem reprimendas de familiares. E muitas delegacias não
estão preparadas para receber esse tipo de denúncia, às vezes considerando
quase um mimimi, algo que não seria sério”, afirma.
O que poderia avançar, na
avaliação da pesquisadora, são os mecanismos para que as mulheres tenham
segurança na denúncia, além de maior efetividade nas medidas protetivas e
acolhimento psicológico nas delegacias.
“O machismo acaba aparecendo no
delegado, no promotor, no juiz, em todo aquele que aceita a legítima defesa da
honra como argumento jurídico”, diz Rosin. “Historicamente, o que observamos é
a recorrência da mulher que acaba culpada pela própria violência que sofreu.”
Embora a legislação preveja a
criação de varas híbridas entre justiça da família e justiça criminal — já que
para a vítima, ambos os aspectos estão misturados e não faz muito sentido
tratá-los separadamente — até hoje apenas um estado da federação, o Mato Grosso
do Sul, conta com essa estrutura.
Jandira Feghali também ressalta a
necessidade de reforço nas medidas preventivas previstas pela Lei Maria da
Penha que, segundo a parlamentar, tem muitos dispositivos tratando da prevenção
da violência contra mulheres. “Como relatora dessa lei, tive muita preocupação
com essa parte que garante a prevenção, que garante proteção, que garante medidas
protetivas, que garante medidas imediatas. E é isso que precisamos fazer
cumprir, sem esquecer da superação da impunidade. Tem punição, mas não queremos
apenas o estado penal. Queremos impedir a agressão, queremos impedir que as
mulheres morram”, diz a deputada.
A jornalista Mariana Basílio é um
exemplo de quem teve dificuldades para resolver seu caso, mesmo com a lei em
vigor. Ela sofreu agressões verbais e físicas do ex-companheiro por anos, até
que tomou a decisão de se separar. Após uma tentativa mal-sucedida dele para
reatar o relacionamento, veio a agressão física derradeira. “Nunca apanhei
tanto na vida”, diz, com a voz embargada. “Ele falava que ia me matar, se eu
não voltasse pra ele. Foi o pior momento da minha vida.”
Conseguiu correr para o banheiro,
se trancar e chamar ajuda. “Quando falei que ia ligar para a polícia, ele
fugiu.” O agressor levou o carro da vítima e colocou fotos dela em sites de
prostituição. Ficou três dias ausente, até que retornou. Nesse ínterim, no dia
13 de dezembro de 2014, ela foi a uma Delegacia da Mulher relatar o caso. E se
deparou com um atendimento que não esperava receber.
“Quando comecei a contar, o policial
olhou pra mim e falou: mas você nunca foi prostituta? Ele fez tudo para me
desencorajar. E falou: ‘Se você tem filho não vai separar mesmo, já vi essa
história’. E eu chorava copiosamente dentro da delegacia. E aí um segundo
policial que viu o que estava acontecendo pegou o meu caso. E eu sou muito
grata a esse homem, que ficou três horas me ouvindo, me encaminhou para uma ONG
para ter apoio psicológico, para que eu pudesse me reerguer”, relata Mariana.
A medida protetiva, no entanto,
levaria ainda mais de um mês para sair, e foi violada diversas vezes pelo
ex-companheiro. “Ele descobria onde eu estava morando, onde eu estava
trabalhando. Em uma noite, no centro do Rio [de Janeiro], ele me seguiu pela
calçada. Eu só apressei o passo”, conta.
Neste ano, a vítima de violência
foi a filha de 16 anos de Mariana, que passou a ser perseguida pelo
ex-namorado. Ele também publicou fotos íntimas da adolescente em redes sociais.
Mas, desta vez, a história que se seguiu foi diferente. A medida protetiva saiu
no dia seguinte à ida à delegacia, e tanto a filha quanto Mariana — que também
foi ameaçada pelo agressor — são acompanhadas de perto pela Patrulha Maria da
Penha, de âmbito estadual.
Criado em 2019 pela Secretaria de
Estado da Polícia Militar do Rio de Janeiro, o projeto é uma parceria com o
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro para prestar atendimento especializado às
vítimas de violência doméstica. Um dos objetivos é fiscalizar e acompanhar as
vítimas para que as medidas protetivas sejam efetivas. “Ao menos uma vez por
semana eles nos mandam mensagem por WhatsApp”, diz Mariana.
“Talvez o maior desafio hoje para
a integral aplicação da Lei Maria da Penha seja garantir sua capilaridade, ou
seja, fazê-la realidade para as mulheres de todos os cantos do país”, aponta
Bueno, do Fórum de Segurança Pública. Isso porque os equipamentos públicos,
principalmente os especializados, como delegacias da mulher e varas, ainda
estão concentrados nas grandes cidades.
Outras legislações
Após a Maria da Penha, outras
leis relativas a violência contra mulheres foram aprovadas. Em 2012, entrou em
vigor a Lei Carolina Dieckmann, que protege contra vazamento de fotos e outros
dados íntimos sem consentimento. Três anos mais tarde, surgiu a Lei Joanna
Maranhão, que aumenta o prazo de prescrição em casos de abuso de menores, e a
do feminicídio.
Em julho deste ano foi sancionada
a Lei 14.188, que inclui no Código Penal o crime de violência psicológica
contra a mulher a todo aquele que causar dano emocional “que lhe prejudique e
perturbe o pleno desenvolvimento” ou que vise a “degradar ou controlar suas
ações, comportamentos, crenças e decisões”. Entretanto, para Ganzaroli, se a
Lei Maria da Penha fosse aplicada em sua integralidade, não haveria necessidade
de discutir a inclusão de mais tipos penais.
“A Maria da Penha é uma lei que
não cria crimes, é uma lei que fala de proteção, é integral, é
multidisciplinar: fala de saúde, assistência social, medida protetiva, educação
e também de justiça criminal. Por isso é tão boa”, avalia. “Sabemos que o
encarceramento não resolve o problema da violência contra as mulheres. Nenhum
homem agressor sai com a masculinidade retrabalhada do cárcere.”
Fonte: DW e redes sociais
Via – Portal Vermelho