sexta-feira, 8 de julho de 2011

A ideologia da classe dominante incutida na classe dominada


Ideologia dominante
Sírio Possenti
Terra Magazine 
De Campinas (SP)

Uma das teses mais clássicas do marxismo sobre ideologia tem forma de slogan: a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante. Os estudiosos do funcionamento da sociedade que adotam teses marxistas (não surgiu nada melhor para explicar nosso dia a dia, seja o da TV, seja o dos mercados) conferem um lugar especial às ideologias, embora seu postulado fundamental seja o de que são as relações econômicas que comandam a história, em última instância. Para que as engrenagens econômicas funcionem, é preciso que os cidadãos acreditem que elas são as que devem ser (nada como ler Delfim Neto para convencer-se de que os economistas são ideólogos, não cientistas).

Bourdieu e Passeron produziram obra notável, na década de 70 (A reprodução), cuja tese é que a escola contribui fortemente para reproduzir a sociedade a que serve. Faz isso reproduzindo sua ideologia. Invariavelmente a escola "prova" que os mais pobres são também os mais incapazes. Como ela faz isso? Analisando o desempenho escolar a partir de critérios (de saberes) de classe, desigualmente distribuídos.

Dou um exemplo banalíssimo, e antigo: no livro didático do meu segundo ano de escola, no interior de Santa Catarina, em uma comunidade totalmente rural, líamos uma narrativa chamada "Férias na roça". Meninos da cidade iam a uma fazenda para apreciar a natureza e sentir o cheiro acre dos estábulos. Ora, cheiro acre dos estábulos!! Nem vou mencionar os textos que falam (falavam) da família: o pai provia o sustento, a mãe cuidava do lar e os dois filhos, um menino e uma menina (nesta ordem), brincavam e estudavam. A empregada, sempre negra, fazia o serviço pesado e umas comidinhas especiais. Tudo parecia natural.

A mesma coisa acontece com o ensino de português: a língua dos menos favorecidos (!!) é considerada errada. E nem se deve falar dela na escola, segundo os "sábios". Imagine "defendê-la"! Só na universidade é que se pode saber a "fala popular" segue regras. O povo não pode saber disso! Nem outros intelectuais! Só os linguistas! Para o povo, ditados bobos, que provam que não sabe nada. Soletrando neles! Um dos argumentos que frequentaram algumas páginas que discutiram o livro do MEC era que o próprio povo quer aprender língua padrão, o português correto. Qualquer pesquisa mostraria isso, dizia-se. Supostamente, só os linguistas quereriam "ensinar errado".

Não adiantou dizer-lhes que nenhum linguista defende esta tese (e eles acham que sabem ler!). Parece ser mesmo verdade que "o povo" quer aprender a falar e escrever corretamente. Por quê? Pelas mesmas razões que o levam a querer comer melhor, vestir-se melhor, morar melhor, viajar mais, comprar computador e TV de tela plana. E, eventualmente, a votar contra a reforma agrária e pelo endurecimento da política de segurança. É a ideologia da classe dominante incutida na classe dominada. Parece tão antigo! Mas é tão verdadeiro! Só saiu de moda. Até porque muitos mudaram de lado.

Quando os ricos são defendidos pelos pobres, conseguiram sua maior façanha: convencê-los de que eles não são apenas ricos; também são os únicos que estão certos! Em relação a tudo: da ortografia à quantidade de mata que pode eliminar.

O ensino de língua é ideológico, sim senhor.

Escrevo isso para esclarecer de novo aos que inalaram o marxismo em bares que a discordância dos ataques ao tal livro do MEC não configura esquerdismo.

Uma analogia

No Caderno Ilustríssima (que nome!), da Folha de S.Paulo de domingo, dia 26/06, Joel Rufino dos Santos conta uma história que hoje parece engraçada. Estava preso, em 1965, suspeito de subversão. Um dia, foi tirado da cela para ter seu cabelo cortado (cabeludos não eram bem vistos!). O barbeiro quis saber do tenente que tomava conta de Rufino o que ele tinha feito. O militar lhe disse que Rufino tinha sido convencido por um general comunista a reescrever a história do Brasil. "Como assim?", perguntou o barbeiro. "Eles escreveram, por exemplo, que Pedro Álvares Cabral era viado!" respondeu o tenente.

Assim que li o parágrafo, pensei: "Imaginem se um Fulano como esse tenente decide explicar a um barbeiro cético o que professores de português e estão escrevendo nos livros do MEC". Talvez o castigo não ficasse no corte de cabelos, como não ficou para muitos, naqueles tempos. Houve censores que quiseram prender Sófocles, outros que queriam saber do paradeiro de Immanuel Kant. Qualquer livro de capa vermelha era suspeito, mesmo que tratasse de culinária.

O obscurantismo é de doer.

Sírio Possenti é professor associado do Departamento de Linguística da Unicamp e autor de Por que (não) ensinar gramática na escola, Os humores da língua, Os limites do discurso, Questões para analistas de discurso e Língua na Mídia


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