quinta-feira, 24 de maio de 2012

Repórter da Bahia viola a dignidade humana



De que adianta o Estado tutelar a dignidade humana 
se ela é violada todo dia às seis da tarde em rede nacional?
Corre pelas redes sociais o vídeo de uma entrevista abusiva e constrangedora do programa Brasil Urgente, da Band Bahia, que indigna quem quer que tenha estômago para assisti-la.
“Paulo Sérgio estuprador”, grita a repórter Mirella Cunha, brandindo o microfone em direção a um jovem negro, preso em flagrante, e exposto às câmeras.
De pouco adiantou o fato de o rapaz tentar se defender da “acusação” da jornalista. A emissora já tinha desde logo o seu veredito. A alegação do preso, cuja face não escondia marcas recentes de agressão, vinha tabulada como “chororô” pelo letreiro do programa.
Se usar a situação indefesa de um preso algemado e desassistido para constrangê-lo a assumir a prática de um crime em rede nacional já não fosse suficientemente abusiva, a jornalista ainda gasta mais da metade da “entrevista” para humilhá-lo em razão de sua ignorância.
O jovem confunde exame de corpo de delito, que implora seja feito na vítima para provar sua inocência, com o exame de próstata. E a jornalista o faz repetir o erro várias vezes, apenas para usufruir, com fartos risos, da falta de cultura alheia. Como se o desprezo pelo ser humano à sua frente fosse algum demonstrativo maior de cultura ou de educação.
A repórter foi severamente criticada nas redes sociais e recebeu até o repúdio por escrito de jornalistas baianos.
Mas a verdade é que, tirando as proporções humilhantes do episódio, o constrangimento e o desprezo pela dignidade humana são corriqueiros em programas sensacionalistas de fim de tarde como esse.
Nem o direito à informação pode justificar tamanho abuso.
Trata-se, na verdade, de usar o ser humano, em um momento de absoluta fraqueza, como forma de entretenimento, coisa que os imperadores romanos já sabiam muito bem como fazer.
A promiscuidade da imprensa com a polícia deturpa o trabalho de ambos – no programa em questão, por exemplo, um jornalista menos preocupado com a humilhação talvez buscasse indagar sobre as marcas de agressão estampadas no rosto do preso.
O estímulo à punição desenfreada, o linchamento midiático, o apelo repressor, enfim, são a tônica dos programas que, desde o sucesso de “O Povo na TV”, nos anos oitenta, se reproduzem em quase todas as emissoras.
Seus apresentadores viram celebridades, quando não políticos, e seus índices de audiência recompensam os estratosféricos salários.
Pouco importa se traduzem ou escondem realidades, se provocam consequências nocivas aos envolvidos, se expõem situações vexatórias à vista de todos.
Nada disso interessa mais do que atiçar a curiosidade mórbida do espectador, resgatar no ser humano o que ele tem de mais perverso, e, enfim, jogar a culpa nele mesmo por sucumbir a este apelo.
Como programas supostamente jornalísticos, nem sequer sofrem limitações de horário, estando liberados para exibição de suas violações a crianças adolescentes. Mas isso será mesmo jornalismo?
É preciso repensar o tratamento de situações que claramente afrontam limites éticos, regras constitucionais para as empresas concessionárias e as condições impostas à polícia para a custódia legal de presos.
Afinal, de que adianta que o Estado tenha, entre seus principais objetivos, a promoção da dignidade humana, se ela pode ser violada todos os dias às seis da tarde?
Marcelo Semer

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