Publicado originalmente em 11 de outubro de 2012 – AfroPress
- por Ramatis Jacino
Enviado por Alfredo Pereira dos Santos
Extraído do blog “Em lugar de uma carta”
Comentário de Adriano Ferrarez: Brilhante esse texto de
Ramatis Jacino. É uma das melhores reflexões que li nos últimos tempos. Traz à
tona a ilusão de muitos “fodidos”, como diria Oscar Niemeyer, que se embriagam
com a ascensão e viram as costas para a sua origem de classe e se aliam com as
elites. Esse texto de Ramatis lança luz classista sobre esse episódio do
julgamento do mensalão.
Importante também a reflexão que faz sobre alguns militantes
que como diria Raulzito: “Travam a inútil luta com os galhos, sem saber que é
lá no tronco que tá o curinga do baralho”. Joaquim Barbosa verá seu sonho virar
pesadelo logo, logo. Matéria do jornal dos Marinhos de 30 de setembro de 2012
traz como título:
“E depois do mensalão? Entre a firmeza e o destempero, um
futuro desafiador - Amigos e até rivais tentam erguer blindagem para evitar
tensões na gestão de Barbosa à frente do STF”
Já começou e a tendência é piorar. Leiam mais de uma vez se
puderem. Esse texto é uma verdadeira aula.
Negros que escravizam e vendem negros na África, não são
meus irmãos
Negros senhores na América a serviço do capital, não são
meus irmãos
Negros opressores, em qualquer parte do mundo, não são meus
irmãos...
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*Ramatis Jacino,
presidente do Instituto Sindical
Interamericano
pela Igualdade Racial (INSPIR)
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O racismo, adotado pelas oligarquias brasileiras para
justificar a exclusão dos negros no período de transição do modo de produção
escravista para o modo de produção capitalista, foi introjetado pelos
trabalhadores europeus e seus descendentes, que aqui aportaram beneficiados
pelo projeto de branqueamento da população brasileira, gestado por aquelas
elites.
Impediu-se, assim, alianças do proletariado europeu com os
históricos produtores da riqueza nacional, mantendo-os com ações e organizações
paralelas, sem diálogos e estratégias de combate ao inimigo comum. Contudo, não
há como negar que o conjunto de organizações sindicais, populares e
partidárias, além das elaborações teóricas classificadas como “de esquerda”,
sejam aliadas naturais dos homens e mulheres negros, na sua luta contra o
racismo, a discriminação e a marginalização a que foram relegados.
No campo oposto do espectro ideológico e social, as
organizações patronais, seus partidos políticos e as teorias que defendem a
exploração do homem pelo homem, que classificamos de “direita”, se baseiam na
manutenção de uma sociedade estamental e na justificativa da escravidão negra,
como decorrência “natural” da relação estabelecida entre os “civilizados e
culturalmente superiores europeus” e os “selvagens africanos”.
É equivocada, portanto, a frase de uma brilhante e
respeitada filósofa negra paulistana de que “entre direita e esquerda, eu sou
preta”, uma vez que coloca no mesmo patamar os interesses de quem pretende
concentrar a riqueza e poder e àqueles que sonham em distribuí-la e
democratizá-la. Afirmação esta, que pressupõe alienação da população negra em
relação às disputas políticas e ideológicas, como se suas demandas tivessem uma
singularidade tal que estariam à margem das concepções econômicas, de organização
social, políticas e culturais, que os conceitos de direita e esquerda carregam.
As elites brasileiras sempre utilizaram indivíduos ou
grupos, oriundos dos segmentos oprimidos para reprimir os demais e mantê-los
sob controle. Capitães de mato negros que caçavam seus irmãos fugidos,
capoeiristas pagos para atacarem terreiros de candomblé, incorporação de grande
quantidade de jovens negros nas polícias e forças armadas, convocação para
combater rebeliões, como a de Canudos e Contestado, são exemplos da utilização
de negros contra negros ao longo da nossa história.
Havia entre eles quem acreditasse ter conquistado de maneira
individual o espaço que, coletivamente, era negado para o seu povo, iludindo-se
com a idéia de que estaria sendo aceito e incluído naquela sociedade. Ansiosos
pela suposta aceitação, sentiam necessidade de se mostrarem confiáveis,
cumprindo a risca o que se esperava deles, radicalizando nas ações, na defesa
dos valores dos poderosos e da ideologia do “establishment” com mais vigor e
paixão do que os próprios membros das elites. A tragédia, para estes indivíduos
– de ontem e de hoje - se estabelece quando, depois de cumprida a função para a
qual foram cooptados são devolvidos à mesma exclusão e subalternidade social
dos seus irmãos.
São inúmeros os exemplos deste descarte e o mais notório é a
história de Celso Pitta, eleito prefeito da maior cidade do país, apoiado pelos
setores reacionários, com a tarefa de implementar sua política excludente.
Depois de alçado aos céus, derrotando uma candidata de
esquerda que, quando prefeita privilegiou a população mais pobre – portanto,
negra – foi atirado ao inferno por aqueles que anteriormente apoiaram sua
candidatura e sua administração. Execrado pela mídia que ajudou a elegê-lo,
abandonado por seus padrinhos políticos, acabou processado e preso, de forma humilhante,
de pijama, algemado em frente às câmeras de televisão. Morreu no ostracismo,
sepultado física e politicamente, levando consigo as ilusões daqueles que
consideram que a questão racial passa ao largo das opções político/ideológicas.
A esquerda, por suas origens e compromissos, em
que pese o fato de existirem pessoas racistas que se auto intitulam de
esquerda, comporta-se de maneira diversa: foi um governo de esquerda que nomeou
cinco ministros de Estado negros; promulgou a lei 10.639, que inclui a história
da África e dos negros brasileiros nos currículos escolares; criou cotas em
universidades públicas; titulou terras de comunidades quilombolas e aprofundou
relações diplomáticas, econômicas e culturais com o continente africano
O sonho realizado...
Joaquim Barbosa se tornou o primeiro ministro negro do STF
como decorrência do extraordinário currículo profissional e acadêmico, da sua
carreira e bela história de superação pessoal. Todavia, jamais teria se tornado
ministro se o Brasil não tivesse eleito, em 2003, um Presidente da República
convicto que a composição da Suprema Corte precisaria representar a mistura
étnica do povo brasileiro.
Com certeza, desde a proclamação da República e
reestruturação do STF, existiram centenas, talvez milhares de homens e mulheres
negras com currículo e história tão ou mais brilhantes do que a do ministro
Barbosa.
Contudo, nunca passou pela cabeça dos presidentes da
República – todos oriundos ou a serviço das oligarquias herdeiras do escravismo
– a possibilidade de indicar um jurista negro para aquela Corte. Foi necessário
um governo de esquerda, com todos os compromissos inerentes à esquerda
verdadeira, para que seu mérito fosse reconhecido.
A despeito disso, o ministro Barbosa, em uníssono com o
Procurador Geral da República, considera não haver necessidade de provas para
condenar os réus da Ação Penal 470. Solidariza-se com as posições conservadoras
e evidentemente ideológicas de alguns dos demais ministros e, em diversas
ocasiões procura ser “mais realista do que o próprio rei”.
Cumpre exatamente o roteiro escrito pela grande mídia ao
optar por condenar não uma prática criminosa, mas um partido e um governo de
esquerda em um julgamento escandalosamente político, que despreza a presunção
de inocência dos réus, do instituto do contraditório e a falta de provas, como
explicitamente já manifestaram mais de um dos integrantes daquela Corte.
Por causa “desses serviços prestados” é alçado aos céus pela
mesma mídia que, faz uma década, milita contra todas as iniciativas promotoras
da inclusão social protagonizadas por aquele governo, inclusive e
principalmente, àquelas que tentam reparar as conseqüências de 350 anos de
escravidão e mais de um século de discriminação racial no nosso país.
O ministro vive agora o sonho da inclusão plena, do poder de
fato, da capacidade de fazer valer a sua vontade. Vive o sonho da aceitação
total e do consenso pátrio, pois foi transformado pela mídia em um semideus,
que “brandindo o cajado da lei, pune os poderosos”.
Não há como saber se a maximização do sonho do ministro
Joaquim Barbosa é entrar para a história como um juiz implacável, como o mais
duro presidente do STF ou como o primeiro presidente da República negro, como
já alardeiam, nas redes sociais e conversas informais, alguns ingênuos,
apressados e “desideologizados” militantes do movimento negro.
O fato é que o seu sonho é curto e a duração não
ultrapassará a quantidade de tempo que as elites considerarem necessário para
desconstruir um governo e um ex-presidente que lhes incomoda profundamente.
Elaborar o maior programa de transferência de renda do
mundo, construir mais de um milhão de moradias populares, criar 15 milhões de
empregos, quase triplicar o salário mínimo e incluir no mercado de consumo 40
milhões de pessoas, que segundo pesquisas recentes é composto de 80% de negros,
é imperdoável para os herdeiros da Casa Grande. Contar com um ministro negro no
Supremo Tribunal Federal para promover a condenação daquele governo é a solução
ideal para as elites, que tentam transformá-lo em instrumento para alcançarem
seus objetivos.
O sonho de Joaquim Barbosa e a obsessão em demonstrar que
incorporou, na íntegra, as bases ideológicas conservadoras daquele tribunal e
dos setores da sociedade que ainda detém o “poder por trás do poder” está
levando-o a atropelar regras básicas do direito, em consonância com os demais
ministros, comprometidos com a manutenção de uma sociedade excludente, onde a
Justiça é aplicada de maneira discricionária.
A aproximação com estes setores e o distanciamento dos
segmentos a quem sua presença no Supremo orgulha e serve de exemplo,
contribuirão para transformar seu sonho em pesadelo, quando àqueles que o
promoveram à condição de herói protagonizarem sua queda, no momento que não for
mais útil aos interesses dos defensores do “apartheid social e étnico” que ainda
persiste no país.
Certamente não encontrará apoio e solidariedade nos meios de
esquerda, que são a origem e razão de ser daquele que, na Presidência da
República, homologou sua justa ascensão à instância máxima do Poder Judiciário.
Dos trabalhadores das fábricas e dos campos, dos moradores das periferias e dos
rincões do norte e nordeste, das mulheres e da juventude, diretamente
beneficiados pelas políticas do governo que agora é atingido injustamente pela
postura draconiana do ministro, não receberá o apoio e o axé que todos nós
negros – sem exceção – necessitamos para sobreviver nessa sociedade
marcadamente racista.
*Ramatis Jacino é professor, mestre e doutorando em História
Econômica pela USP e presidente do INSPIR – Instituto Sindical Interamericano
pela Igualdade Racial.
Fonte: Jader Resende Via BURGOS (Cãogrino)