sexta-feira, 22 de março de 2013

O Guarda Abilolado

(Chico Pedrosa - recitado por Lirinha)

Dotô, eu tenho razão
de ser meio abilolado
Venho de um tempo marcado
por seca e revolução
Quando eu tinha um ano e meio,
escapei de um tiroteio
De meu pai com bulandeira,
e pai ganhou não sei,
também nunca perguntei,
nem sequer por brincadeira
Vim conhecer a cidade,
quando votei pra prefeito,
que por sinal foi eleito
e pra minha felicidade
me deu em emprego de guarda,
me arrumou uma farda,
um capote, um coturno,
um cacete envernizado,
um apito enferrujado
e fui ser guarda noturno
Passava-se as noite inteira
apitando na cidade
Escola, igreja, cinema,
mercado, maternidade
Nas noites frias de inverno
eu usava um belo terno
Umas meias de croché,
bebia quatro cachaça,
dava três volta na praça
e corria pro cabaré
Lá, havia de tudo,
discussão, briga, lorota,
uns que contava aventura,
uns que pagava meiota
Quando um bêbo se zangava,
eu ia lá ajeitava
O bêbo ficava manso,
pagava uma bebia,
Dava um apito e saía,
na velha ginga do ganso
Até que um dia o prefeito
fez uma reunião
E nela perguntou aos guarda:
“Querem aumento ou promoção?”
Antes de fechar a boca,
eu gritei com a voz rouca:
“Quero promoção, seu Zé!”
Disse ele “Tá garantido,
tá aprovado, tá promovido,
pro maior posto que houver!”
Me entregou a farda nova,
fulorada que nem chita,
enfeitada com galão,
estrela, medalha, fita,
broche, botão, alfinete,
Trocou meu velho cacete
por um profissional,
disse “De hoje em diante,
você é o cumandante,
da guarda municipal!”
Uns seis meses depois,
veio a guerra mundial
Nesse tempo, uma irmã minha
tava morando em Natal
Resolvi visitá-la,
butei a farda na mala
Entreguei o cargo a Raimundo,
que era quase meu irmão
Peguei o trem na estação
e me entupigaitei pelo mundo
Ô lugar longe da gota
Quase que o trem não chegava mais
Tinha hora que eu pensava
que tava andando pra trás
Entre solavanco e berro-berro
O velho embuá de ferro
viajou a noite inteira
De manhã cedo chegou
deu um apito e parou
na estação da Ribeira
Desembarquei e fiquei,
perdido na multidão
Quando eu puxava conversa
ninguém me dava atenção
Quanto mais bom dia dava,
mais o povo se zangava,
Talvez me achando chato,
era um povo diferente
Da qualidade da gente
das cidadinhas do mato
Perguntei pra mais de mil,
se eles dava notíça
De Carmelita de Souza,
uma caboca mestiça,
filha do guarda Pompeu,
mais moreno do que eu,
do cabelo meio ruim,
que morou na Ari Parreira,
que fica perto da Feira
do bairro do Alecrim
Depois de tanta pergunta,
depois de ouvir tanto não,
Carmelita apareceu
no pátio da estação
Toda metida a finesse,
puxando os ‘r’ e ‘s’
Que nem mulé de dotô
nem parecia a matuta
que lavrou a terra bruta
do sertão do interior
Mesmo assim me arrecebeu
na sua casa mudesta
Os primeiros cinco dias
pra nós foram de festa
Quando o sexto dia veio,
resolvi dar um passeio
mandei arrumar a farda,
tomei banho tirei o grude
Me arrumei como pude
pra ter meu dia de guarda
Passei o resto da tarde
sentado num tamburete
Pregando estrela, galão,
broche, medalha, alfinete
Comprei mais uns acessório,
enfeitei meu suspensório
Feita de sola curtida,
de manhã cedo vesti,
tomei café e saí,
dando risada da vida
Na Praça Gentil Ferreira,
aonde tinha um mercado
Eu parei pra tomar fôlego,
quando passou um soldado
Fez continência pra mim
Aí eu pensei assim:
“Que diabo que ele viu neu?
Deve tá me confundindo,
me achando parecido
com algum amigo seu”
Mas haja passar soldado,
fazendo assim com a mão,
Daqui a pouco,
tenente, coronel, capitão,
cabo, sargento, major,
E todo estado maior
dos quartéis da redondeza
Me cumprimentavam ali
Até hoje eu nunca vi,
tamanha delicadeza
Disparou tanque de guerra
Avião deu vôo rasante,
sirene apitou mais alto,
Canhão disparou distante
E um guarda do coronel
tirou do bolso um papel
Aonde tinha um letreiro,
nele dizia:
“Em nossa terra
tem um espião de guerra
que chegou do estrangeiro.”
Não quer falar com ninguém,
não pergunta, nem responde.
Ninguém sabe donde vem,
ninguém sabe onde se esconde.
Sua farda é cor de ameixa.
A impressão que nos deixa
é que é um grande guerreiro.
Filho de outra nação,
perigoso espião
da guerra dos estrangeiro.
Vamos leva-lo ao quartel
pra uma averiguação,
Pra saber donde diabo
vem esse espião.
Em seguida me levaram
pro quartel e me entregaram
ao comandante geral,
que quando me viu fardado,
me perguntou meio assustado:
“Que está aí fazendo em Natal?
Donde diabo é essa farda?”
Faça um favor, me informe,
qual é a nação que usa esse uniforme,
desconhecido da gente?”
Quem lhe deu tanta patente,
a troco não sei de que?
E porque vossa excelência
não responde continência?
Afinal, quem é você?
Dotô, eu sou Zé Carrapeta,
Tou vindo do Cariri
Não sei fazer continência
pra gente que nunca vi
Afinal, não sou intruso
Pois acredite eu só uso
esse quepe de biriba,
Esse cacete e esse coturno
Porque eu sou guarda noturno

No sapé da Paraíba


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