segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Mestre Vitalino - Vida e obra




Vitalino Pereira dos Santos - Mestre Vitalino (1909-1963), nascido no distrito de Ribeira dos Campos, nas cercanias da cidade de Caruaru, em 10 de julho. Casado com Joana Maria da Conceição, segundo contam, era tímido, cordial, amigo de todos, fala amável, franzino, pele áspera queimada de sol, cabelo escovinha, bigode raso, católico tradicional, devoto de Padre Cícero e festeiro. Como muitos, era analfabeto pois, praticamente, não existiam escolas na região.


 
O pai trabalhava na roça e a mãe além de o ajudar era louçeira. Fazia panelas, potes, jarros, alguidares, pratos, mealheiros etc. Vitalino desde criança brincava modelando com as sobras de barro de sua mãe. Voltado para o lúdico, fazia bichos: cavalos, bodes, vacas etc. Note-se que, naquela época, as crianças, principalmente do interior, não tinham acesso a brinquedos produzidos industrialmente, como os hoje existentes, feitos de plástico, baratos, bonitos e abundantes nas lojas. Para se entreter tinham que fazer eles próprios os seus objetos.

Aproveitando que o pai e o irmão vendiam na feira peças que sua mãe fazia, Vitalino passou a mandar para lá os bichinhos e outras coisas que modelava. Vendia barato e ganhava uns vinténs. Tinha uns 7 anos na ocasião. Com o passar do tempo, já com mais idade, passou a abordar outros temas em seus trabalhos. Assim começou o registro em barro, do homem do agreste nordestino, através de cenas do cotidiano rural: sua gente, usos e costumes.

Passados os anos, Mestre Vitalino, em 1947, já com 38 anos, continuava a viver da roça e de modelar bonecos. Estimulado pelo artista plástico e colecionador pernambucano Augusto Rodrigues, que admirava a excelência de seu trabalho, foi morar emAlto do Moura, localidade próxima de Caruaru, distante somente 8 km, com sua mulher e filhos. 

Em Alto do Moura, Vitalino ficou perto da famosa Feira de Caruaru, que tinha centenas de barracas onde se comercializava de tudo. Na sua banca oferecia bonecos feitos com barro. Logo seus trabalhos ganharam fama tornando-o conhecido e admirado. Com singular destreza, esculpia cenas do cotidiano sertanejo em que vivia. Seus trabalhos eram diferentes dos levados pelos outros artesãos que abordavam sempre os mesmos temas: animais, maracatus, bumbas, cinzeiros, potes, jarros, pratos, moringas, etc.

O sucesso de Mestre Vitalino como “bonequeiro” repercutiu junto aos seus companheiros de Alto do Moura que passaram a admirar o seu talento. Isto fez com que muitos passassem a esculpir bonecos. Dentre esses, os principais eram: Zé Caboclo, Manuel Eudócio, Elias Francisco dos Santos, Zé Rodrigues, Manoel Galdino, Luiz Antonio da Silva, hoje conhecidos como seus “discípulos”.

Importante salientar que estes seguidores contaram sempre com ajuda de Vitalino, que não tinha medo da concorrência e via de bom grado a participação dos amigos, nunca se negando a transmitir seus conhecimentos e suas técnicas: o trato do barro (escolher o barro, socar, peneirar, armazenar); os cuidados com a secagem das peças (secagem natural, à sombra, para evitar rachaduras durante a queima); e a correta queima no forno a lenha (esquente, manutenção e elevação da temperatura e o esfriamento).

A amistosa relação mestre/discípulos criou um clima onde todos se ajudavam assimilando entre si técnicas e temas. Muitas criações eram copiadas de um e produzidas por outro.Não havia o dono da cena, o detentor do direito daquela imagem. Copiar obra de outro companheiro era prática aceita com naturalidade por todos. 


Eis um exemplo: a modelagem da figura “Noiva  na garupa do cavalo do Noivo” foi criada por Vitalino, no entanto, Manuel Eudócio, Luiz Antonio e outros copiavam sem haver ressentimentos. Consideravam o plágio como uma lisonja. Mestre Vitalino dizia: “o mundo é para todos e todos precisam viver”.


 
Os “bonequeiros” de Alto do Moura retratavam, dentre muitas, as seguintes cenas do cotidiano sertanejo:Terno de zabunba, Família de retirantes, Enterro na rede, Festa de casamento, O Marchante cortando carne,  Barbeiro de feira,  Aguadeiro carregando água, Pescador com vara e anzol, Cavador de açude,Mulher com lata d¢ água na cabeça, Mulher apanhando algodão, Casa de farinha, Carro de boi, Delegado, Vacinação, Dentista, Fotógrafo,  Violeiros, Engraxate,Delegado, Banda (Procissão de Zabumba), O Palhaço, Noivos (casamento a cavalo), Vaqueiro derrubando o boi, Cavalo, Boi, Caçador, Agricultor voltando da roça, Vaquejada, Doutor auscultando o doente, Curral de boi, Centauro, Homem com cachorro, Homens com arado, Homens na lavoura, Ordenha, Médico operando o doente, Comedores de Banana, Time de Futebol, Banda de Pífanos, Crucifixo, Lampião sereia, Lampião e Maria Bonita, São Francisco cangaceiro,Conselho dos bichos e Carro de noivos, Menino sentado no penico, Velho pensando, Velho acocorado soprando fogo na roça, Escola radiofônica, Roberto Carlos cantando, Cavalo-marinho, Bumba-meu-boi, Os Três no Forró, Terno de Pífanos, Cangaceiros, Lampião a Cavalo, Procissões, Família Retirante, Bumba-Meu-Boi.

Dizem que o primeiro grande sucesso de Vitalino, dos 130 tipos que criou, foi a cena: “Gatos maracajás trepados numa árvore, acuados por um cachorro, e embaixo o caçador fazendo pontaria com a espingarda".




A integração entre o pessoal de Alto do Moura era tanta que haviam “bonequeiros” que dividiam um mesmo espaço, trabalhando no mesmo cômodo da casa. Na hora de colocar a marca de autoria na peça, não era usual assinar e sim marcar com carimbo, de tão amigos que eram, usavam, se necessário, o carimbo do colega, pelas mais diversas razões: não possuíam, tinham perdido o seu etc. Mas, entre eles, cada um sabia o que tinha feito, o que era seu, que tinha seu traço, seu estilo.

Outra prática que ocorria era vender trabalhos sem gravar o nome do autor. Tanto que é comum encontrar, hoje em dia, entre as peças expostas em museus e constantes em livros e catálogos, a anotação “autoria desconhecida”.

Os “bonequeiros” se juntavam quando recebiam uma encomenda de vulto. Certa ocasião um deles tinha de produzir 2.000 figuras retratando Agentes de Viagens para um evento em Recife. A solução foi formar um mutirão, com muitos trabalhando simultaneamente na encomenda, para que a entrega fosse feita no prazo combinado. Quando receberam repartiram o valor em função da produção de cada um.

Havia um grande clima de camaradagem em Alto do Moura, que se expressava de diversas maneiras: se havia espaço no forno queimavam também as peças do companheiro; quando estavam participando da feira, expunham e vendiam também os trabalhos dos que não podiam estar presentes ; se o freguês quisesse uma peça não disponível, levavam o cliente para ser atendido por outro. Estas e muitas outras formas de convivência humana, harmoniosa e prestativa, demonstra o bom relacionamento que existia entre eles.

Os Retirantes. Cena típica modelada por inúmeros ceramistas de Caruaru.
Os “bonequeiros” se profissionalizaram e viviam do ofício. Expunham seus trabalhos na Feira de Caruaru, principalmente aos sábados, dia de maior movimento. No entanto, face às dificuldades do transporte e do risco de quebra das peças no manuseio, tanto na ida quanto na volta, passaram a vendê-las em suas próprias casas em Alto do Moura. Outra vantagem desta medida é que deixaram de perder um precioso tempo para ir e voltar, sem contar as horas que ficavam trabalhando na feira, quando ficavam impossibilitados de produzir.

Apoiado na fama de seus artistas Alto do Moura passou então a atrair cada vez mais visitantes, fregueses que iam comprar peças para si próprios ou para revender em outras cidades. Encomendas não paravam de chegar. Para atender os compromissos, os artesãos tinham que trabalhar muito e quase sempre contavam com a ajuda de toda a família na produção.

No entanto, a renda auferida mal dava para o sustento com condições mínimas de conforto. Os intermediários que adquiriam as peças, para revender para as lojas do Recife e de outras regiões, só se dispunham a pagar preços muito baixos. Os artesãos, quase sempre com dificuldades de quitar suas contas vencidas, e desorganizados neste aspecto, não tinham outra saída a não ser aceitar o preço injusto que lhes impunham.

Muito trabalho e pouco dinheiro. As peças eram vendidas muito baratas. Os compradores não se dispunham remunerar com um preço justo aos “bonequeiros”. A vida era dura, muito dura. Nenhum acumulou riqueza nem viveu folgadamente. Vitalino e todos os demais morreram pobres.Rendia muito pouco a penosa jornada de trabalho que começava ao amanhecer e, muitas vezes, ia até tarde da noite. Quando do trabalho noturno, a casa era iluminada à luz de candeeiros a querosene, pois não havia luz elétrica.

 
Forno de Mestre Vitalino.
Casa-Museu de Mestre Vitalino

O modo atual de modelar os bonecos é quase idêntico ao do passado. Fazem tudo manualmente usando ferramentas improvisadas. As peças continuam a ser queimadas em rústicos fornos circulares, sem abóbada, com lenha do sertão.



Quanto à decoração, quase nada é esmaltado sendo o acabamento em terracota.
Há, no entanto, os que decoram os trabalhos pintando com tintas comerciais, normalmente com cores fortes e brilhantes. Há registros que alguns ceramistas esmaltavam suas peças com zarcão. Hoje ninguém mais usa esta técnica.


Os trabalhos abaixo têm o carimbo de Vitalino:


A peça abaixo de Mestre Vitalino é original-autêntica. No entanto, sofreu interferência da zelosa empregada doméstica que aplicou sucessivas camadas de cera.
Fotos: Sandra Santos

 
Vitalino nasceu em 10 de julho de 1909 e faleceu em 20 de janeiro de 1963, acometido de varíola. Teve 18 filhos e, destes, somente 5 viveram até a idade adulta.Amaro Vitalino (1934), Manuel Vitalino (1935), Maria Pereira dos Santos (1938), Severino Vitalino (1940) que assinou durante muito tempo seus trabalhos comoVitalino Filho (nome de fantasia), e Antonio Vitalino (1943).


A família Vitalino está representada, hoje em dia, por filhos e netos. Através do artesanato "Mãos de Vitalino" , peças produzidas pelos parentes, e alguns de seus seguidores, podem ser adquiridas através de seu neto Vitalino Pereira dos Santos Neto: rua Mestre Vitalino 644-Alto do Moura, CEP 55000-000,  telefone (81) 3722-0397 ou pelo celular 9982-4762.

Existe um acervo significativo de obras em museus do Rio de Janeiro, Recife, Caruaru e Alto do Moura.


No Rio de Janeiro-RJ, encontram-se peças de Mestre Vitalino e de seus seguidores no  Museu de Folclore Edison Carneiro , Rua do Catete 179-Catete, no Museu da Chácara do Céu , Rua Murtinho Nobre 93-Santa Teresa, no Museu Nacional de Belas Artes, Av Rio Branco 199-Centro e na Casa do Pontal-Museu de Arte Popular Brasileira, Estrada do Pontal 3295-Recreio dos Bandeirantes. No Recife ,no Museu do Homem do Nordeste, na Av 17 de Agosto 2187-Casa Forte. Em Caruaru, no Museu do Barro, também conhecido como Espaço Zé Caboclo, há em exposição uma mostra bastante significativa da obra dos ceramistas locais - Praça Cel José de Vasconcellos 100.

No Alto do Moura funciona a Casa-Museu de Mestre Vitalino, administrado pelo seu filho Severino, instalado na antiga casa, construída em 1959, onde o mais famoso “bonequeiro” viveu, trabalhou e morreu. No local estão expostos objetos
de uso pessoal do artista, suas ferramentas de trabalho, móveis e utensílios, e fotos retratando sua trajetória.  No quintal, permanece o rústico forno a lenha circular, sem chaminé, em que fazia suas queimas, foto acima.
Contato: (81) 3725-0805



Casa-Museu de Mestre Vitalino. Quem quiser uma lembrança pode adquirir cópias fiéis de algumas das criações de Vitalino, feitas pelo filho Severino.

Lampião e Maria Bonita

 Digno de registro é o fato de Alto do Moura ser considerado pela UNESCO como o maior Centro de Arte Figurativa das Américas. Atualmente, muitas dezenas de pessoas trabalham seguindo a “escola” do Mestre Vitalino.


Outra faceta do Mestre Vitalino era a música. Festeiro não perdia uma folia. Exímio tocador de Pífano integrava as zabumbas da região. Em 1960, viajou para o Rio de Janeiro e, junto com outros, gravou diversas músicas no estúdio da rádio MEC (Ministério da Educação e Cultura). 




Pesquisa e texto: Renato Wandeck
Fotos: Renato Wandeck e outros
Bibliografia:
O Reinado da Lua: Escultores Populares do Nordeste.
Silvia Rodrigues Coimbra, Flávia Martins e Maria Letícia Duarte.
Salamandra,1980.

Távio Rodrigues

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