terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

A Bunda


Qual o mistério do encanto da bunda? Uma conjugação de abundantes e harmônicos traços curvilíneos, relevo altiplano, textura sedosa e volume macio definem essa organização arquitetônica primorosa que resulta na obra prima maior da natureza, concedida por Deus ao homem. Ou melhor dito, à mulher, porquanto é exclusivamente a feminina que detém os primorosos atributos. A vitória definitiva da curva sobre a reta. Da dualidade sobre a ‘monotonia’. A negação do caos e da entropia. O ápice da criação divina. Afirmação inequívoca da existência de Deus e do Diabo, aqui pactuados e configurados numa mesma concepção temporal. Mistura de pureza com profanação. De carnalidade com divindade.

Ainda que desprovida de intenções malévolas, a perversidade faz parte de sua natureza, pelo mero ato de existir, independente de mostrar-se aos olhos. Quando revelada, provoca pensamentos libidinosos pelo que é. Quando oculta, provoca-os pelo que poderia ser.

Tal como a Lua, em que parece inspirar-se, inclusive na forma, a bunda permanece inatingível, mesmo após ser explorada e violada por mãos impuras. É feita para ser admirada e desejada . Jamais possuída.

Fisiologicamente, poderia ser considerada prolongamento tanto dos membros como do tronco. Harmoniza-se anatomicamente com ambos. Elemento indissociável da perfeita composição corporal que se molda, num acabamento irretocável. O detalhe que se sobrepõe com tamanha imponência à totalidade que a subjuga. Os demais componentes passam a ser adereços a adornar-lhe, em face da suntuosidade desbundante de sua presença imperiosa, perturbadora, retumbante.

A vagina, ao contrário, possui um contorno rude, acidentado, agreste, desarmônico, peludo e retilíneo. Sem atrativos estéticos. Estritamente utilitária e funcional, foi feita na medida para acolher o membro do homem. Fá-lo, fálico, vibrar, saciar-se e sucumbir. Cumpre estritamente a parte que lhe cabe no ritual animalesco do acasalamento conceptivo. A bunda, ao contrário, ainda que possa ser objeto de grotesca penetração, não tem vocação para proporcionar prazeres puramente mundanos e impuramente terrenos, como o de ser voluptuosamente comida.

Tal como uma divindade etérea, é para ser venerada e reverenciada respeitosamente, no alto de sua magnificência. Ser afagada, apalpada e mordida é o máximo a que se sujeita para que se possa presumir suas delícias inatingíveis. Sentir a fofura do seu toque apenas faz crescer o desejo insano de, sem se saber o que fazer com sua posse, apoderar-se de sua existência. Mergulhar em sua perdição.

O movimento das pernas ao andar provoca-lhe reflexivamente um balançar hipnotizante que faz do simples ato de caminhar uma sinfonia épica vertida pela alma carioca em loas pela bossa nova e em carniça pelo funk. O fato é que, de um ou de outro jeito, todos se rendem seduzidos ante o gingado que ela despretensiosa ou maliciosamente proporciona.

Paradoxalmente, essa obra prima da criação presta-se ao degradante ofício de abrigar o canal de saída do material rejeitado pelo organismo. É a porta do fundo do corpo. A garagem, a saída de serviço, onde têm lugar as inconfessáveis atividades submundanas. A passagem de escoamento da massa disforme de resíduos sem utilidade para nossa atividade vital. Algo que, dada a espécie de função fisiológica que exerce, deveria ser a parte mais repugnante do corpo, é contraditoriamente sua porção mais exuberante. Como Deus fez essa obra prima e lhe deu uma atribuição tão ignóbil? Mistérios da obra divina que, como limitados seres mortais, não nos é permitido compreender e menos ainda contestar, parecendo-nos, especialmente àqueles do sexo masculino, revestido de incomensurável despropósito.

Tampouco nos é permitido entender que essa formosura escultural cumpra o papel quase tão reles de sustentar e acomodar toda a conformação corporal numa mísera e, muitas vezes, desconfortável cadeira. O máximo que a ela se permite é o esteio apaziguador de uma almofada para tornar suportável o sacrifício que lhe cala.  Permanece por horas a fio aguentando o peso de todo o corpo enquanto esse exerce atividades diversas, descontraída e despreocupadamente, algumas vezes de mero entretenimento, alheio ao desconforto de quem o suporta. Sequer desconfia que alguns ambicionam loucamente assumir o lugar de tais cadeiras para terem o privilégio de sentir por alguns momentos o indescritível prazer sensorial de experimentar seu assentamento.

A bunda, ainda que com predicados tão soberbos, presta-se com resignação a tais papéis aviltantes. Não protesta, não reclama, não chia. Nem mesmo peida. Tem a humildade própria das grandes eminências. Aceita sua sina, indiferente aos olhos e aos julgamentos de todos. Trabalha servil e alegremente como a gata borralheira do corpo, conservando seus encantos ocultos no íntimo das calcinhas que a guardam.


Segue ela seu caminho, rebolando pelas estradas. Semeando fantasias, arrebatando corações, afogando gansos...

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