Embora o avanço seja lento, as discussões sobre o padrão de
beleza em nossa cultura têm sido cada vez mais frequentes. Há cada vez mais
críticas quanto à quantidade crescente de cirurgias plásticas e sua relação com
a gordofobia e com a fantasia inatingível do corpo feminino sem estrias e
celulites.
Por Jarid Arraes*, na Revista Fórum
No entanto, certos pontos incômodos ainda precisam ser
levantados: é necessário debater sobre a profundidade do racismo estético e
suas consequências para as mulheres negras.
As meninas crescem inseridas em uma cultura que lhes ensina
a admirar as princesas da Disney, a Barbie e outras personagens magras e
brancas que acabam em finais felizes de prosperidade. Muitas fantasiam que são
uma dessas princesas, desejam possuir brinquedos e produtos relacionados e,
claro, almejam se tornarem fisicamente semelhantes. O problema é que o padrão
de beleza perpetuado por essas figuras dá início a uma espécie de doutrinação,
que desde a mais tenra idade ensina estereótipos de gênero baseados em sexismo
e racismo.
Tanto as princesas do passado quanto as princesas mais recentes
possuem muitas coisas em comum: olhos grandes, cílios longos, lábios rosados,
bochechas coradas, narizes afilados e cabelos sedosos que voam ao vento de
maneira hipnotizante. Não por acaso, essa representação feminina não fica
limitada ao universo infantil, se repetindo também na vida adulta, muitas vezes
presente nos catálogos de moda, nas propagandas da televisão, em filmes e em
novelas. A maioria das atrizes consideradas belas possuem cabelos compridos e
de textura lisa, traços faciais delicados e comportamento que varia de meigo a
sensual, assim como muitas personagens femininas dos desenhos animados feitos
para a audiência infantil.
O que pode acabar passando despercebido, no entanto, é que o
padrão de beleza não é ruim somente por criar uma forma de aparência física
melhor, na qual todas as mulheres devem se encaixar. A cultura da beleza branca
e magra também cria e dissemina padrões de gênero repletos de clichês e
paradigmas machistas: as mulheres absorvem que precisam ser “femininas” e, por
isso, devem ter uma aparência física que “exale” essa feminilidade. Enquanto
que para uma mulher branca há mais chances de se enquadrar em alguns dos
quesitos exigidos, para uma mulher negra, sua posição social será sumariamente
distinta.
Pode-se dizer que toda mulher negra tem recordações
dolorosas da infância e adolescência. As meninas e as jovens negras assimilam
que são “diferentes” e sofrem por não se sentirem bonitas – muitas vezes, ao
ponto de nem mesmo conseguirem se identificar com a experiência de “ser
mulher”. Acontece que por conta do cabelo crespo, nariz largo e pele escura, a
sociedade não espera das mulheres negras qualquer expressão de meiguice ou
fragilidade, traços considerados tipicamente femininos. As pessoas assistem –
tanto na televisão quanto na vida real – que o corpo da mulher negra é reduzido
a exploração sexual e trabalho braçal e são esses os valores que reproduzem.
Efetivamente, as fantasias da feminilidade ocidental
correspondem somente às mulheres brancas. Os mitos da beleza e da fragilidade
feminina, por exemplo, são introjetados em nossas mentes a partir dos veículos
midiáticos. A mídia bombardeia audiências de todas as idades com a ideia da
figura feminina apaixonada, que com sua beleza irresistível é salva por um
cavalheiro com atos de heroísmo. Mesmo os aspectos mais sutis influenciam nossa
percepção dos papéis de gênero, incluindo não somente o tipo físico ou a
vestimenta tão recorrente nas personagens femininas, mas também a personalidade
e a maneira como se expressam; a forma como piscam os olhos, balançam o cabelo
ao vento ou rebolam e colocam a mão na cintura reforça um quadro de
feminilidade extremamente machista, que na maioria das vezes também é racista e
exclui as mulheres negras em sua representação.
Não é que mulheres meigas ou delicadas estejam fora do
âmbito da realidade, ou mesmo que mulheres brancas também não sofram com o
padrão de beleza. Mas é necessário aprofundar mais nossas análises de gênero.
Poucas pessoas esperam que uma mulher negra que trabalha como empregada
doméstica corresponda a um papel de gênero de fragilidade – pelo contrário, o
considerado “normal” é que tenha mãos ásperas, ainda que também seja um
indivíduo do sexo feminino. Embora o conceito de feminilidade seja limitador e
sexista, é preciso questionar: por que o padrão de gênero esperado de uma
mulher negra é diferente do de uma mulher branca?
A feminilidade ainda é um estereótipo confuso e suas raízes
permanecem fortes e influentes. A verdade é que qualquer tentativa de dividir o
mundo em papeis sociais femininos e masculinos é sexista; esperar que homens e
mulheres tenham comportamentos determinados por causa de seu gênero corresponde
a um engessamento da autonomia humana. A solução não é multiplicar as formas
para todas as mulheres, mas sim desconstruir os conceitos de feminilidade e
beleza feminina – lembrando sempre que é essencial voltar a atenção para o
racismo nos questionamentos dos padrões estéticos.
*Jarid Arraes é diretora do FEMICA e estudante de
Psicologia.
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