terça-feira, 18 de novembro de 2014

A luta das famílias para usar o canabidiol - Remédio derivado da maconha

Burocracia e altos custos marcam a busca pelo remédio derivado da maconha que pode amenizar sintomas de uma série de doenças

Priscila Inocente dá canabidiol ao filho, Miguel, de 5 anos. No início deste ano, em meio às dificuldades para importar o remédio, ela mesma produziu a substância em casa
“Ainda temos medo da morte e da evolução da doença, mas, antes, nós vivíamos a doença o tempo todo, agora vivemos com a doença. Esse foi o maior impacto do canabidiol na nossa vida”, resume a pediatra Maria Angélica Soares Queiroz Telles, mãe de Thiago, de 2 anos, que usa o canabidiol (CBD), substância derivada da maconha, no tratamento contra as crises epiléticas sofridas por ele desde os sete meses de idade.

O menino é portador da Síndrome de Dravet, doença rara de origem genética. Um ano e três meses depois da primeira convulsão, Maria Angélica percebeu que não havia mais medicamento disponível que não tivesse sido testado, sem sucesso. O estopim ocorreu em agosto deste ano, quando Thiago sofreu uma crise convulsiva por duas horas, ficando uma semana sem andar ou falar. O menino quase morreu. Sem alternativas medicamentosas, Maria Angélica decidiu encarar todo o processo para importar o CBD e testá-lo no filho. Usando o extrato há cerca de dois meses, Thiago recuperou o apetite e o sono, e fica até duas semanas livre de convulsões.
A história de Maria Angélica e Thiago é mais um relato dos efeitos positivos que a prescrição do CBD pode representar no tratamento contra diversas doenças, principalmente as epilepsias, embora pesquisas apontem bons resultados também em pacientes com mal de Parkinson, ansiedade, esquizofrenia e alguns transtornos do sono.

“O CBD age no cérebro em dois receptores, o CB1 e o CB2. O CB1 se liga ao canabidiol e libera uma substância e libera na fenda sináptica uma substância chamada anandamida. A liberação dessa substância proporciona estabilidade nas células neuronais, controlando melhor as crises convulsivas”, explica a neurofisiologista do Hospital de Clínicas da UFPR e pós-doutora pela McGill University (Canadá) especializada em epilepsia, Ana Chrystina Crippa. Ainda segundo a médica, o CBD tem menos efeitos adversos que medicamentos tradicionais, sendo indicado principalmente para pacientes com epilepsia refratária, ou seja, quando o paciente usou mais de dois medicamentos e não conseguiu controlar a crise.

O caso mais emblemático do início do uso da substância no mundo é o de Charlotte Figi, hoje com 8 anos, e que foi a paciente mais nova do estado do Colorado, nos Estados Unidos, a utilizar o CBD no combate às convulsões diárias, quando tinha apenas 5 anos. Portadora da Síndrome de Dravet, como Thiago, quando sua família decidiu tratá-la com o extrato, Charlotte sofria até 300 convulsões graves por semana e já havia perdido a capacidade de andar, falar e comer. Aos 6 anos, a criança recuperou os movimentos e a fala e o número de crises epiléticas foram reduzidos a dois ou três episódios por mês.

No Brasil, Anny Fischer, de 5 anos, foi a primeira paciente a conquistar na justiça o direito de importar o canabidiol, em decisão de abril deste ano.

Li um artigo de um médico americano orientando a produção artesanal. Coei e testei no meu marido. Depois o Miguel tomou. Usamos durante uma semana e paramos, porque mudou o padrão da crise e fiquei com medo.

Priscila Inocente, mãe de Miguel, de 5 anos, que enfrenta convulsões diárias desde 1 ano e dez meses de idade.

Falta de regras e demora desafiam paciência

Enquanto ainda não há perspectiva de quando a comercialização e produção do canabidiol serão autorizados em território nacional, a única alternativa é importar o produto, com aval da Anvisa.

A Agência exige uma série de documentos, a começar pela receita médica, laudo médico atestando a condição do paciente, termo de responsabilidade e formulário de importação excepcional. Desde abril, a agência já recebeu 208 pedidos de importação, dos quais 168 foram autorizados.

Superada essa primeira etapa, os pacientes são surpreendidos pelo alto custo do remédio – ampolas com 10 ml custam, em média, R$ 1,8 mil, mas podem chegar ao país por até R$ 2,5 mil com os impostos – embora a Receita Federal afirme que o CBD consta da lista de isenção de tributos. Os preço alto por um remédio que pode durar apenas uma semana e a demora levam muitas famílias a optar por outro caminho.

É o caso de Priscila Inocente, mãe de Miguel, de 5 anos, que enfrenta convulsões diárias desde um ano e dez meses. Miguel é autista, mas o que causa a epilepsia ainda é uma incógnita para os médicos; as suspeitas recaem sobre uma displasia cerebral, mas ainda não há confirmação. Os tratamentos contra as convulsões, no entanto, nunca vingaram.

Em fevereiro deste ano, tomada pelo desespero, Priscila decidiu produzir o extrato em casa. “Li um artigo de um médico americano orientando a produção artesanal. Coei e testei no meu marido. Depois o Miguel tomou. Usamos durante uma semana e paramos, porque mudou o padrão da crise e fiquei com medo”, lembra.

Em março, ela encontrou uma forma de trazer três seringas de CBD do exterior. Miguel reagiu bem ao medicamento, as cerca de 30 crises diárias viraram duas, o apetite aumentou e o desenvolvimento melhorou. O resultado encorajou Priscila a comprar mais CBD, dessa vez pelo E-bay. “No início, minha família foi contra, tinham medo que eu fosse presa. Mas tenho certeza de que qualquer juiz entenderia uma mãe que tenta salvar o filho”, diz, convicta. “Sempre pensei ‘Vai fazer bem? Amém’. Mais mal do que 30 convulsões por dia não vai fazer. O CBD é muito importante para o Miguel, lhe garante qualidade de vida”.

Além de situações de risco como as enfrentadas por Priscila, a falta de regulamentação implica, ainda, outro agravante: os EUA, maior exportador de CBD para o Brasil, possui mais de cem empresas fabricantes; sem regulamentação da Anvisa, não há certeza sobre a concentração do CBD e quais são os componentes do produto importado.

“Cada produto possui concentração de CBD e de THC. No Brasil, entende-se que o THC é tolerado em até 0,6 ml por dia sem efeito negativo, mais que isso pode ser danoso ou tóxico. Mas não há controle sobre o produto importado; se fosse regularizado, a Anvisa poderia verificar a porcentagem de cada substância”, explica a neurofisiologista Ana Chrystina Crippa.

Gazeta do Povo

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