Em entrevista ao Espaço Público, ministro do STF Marco Aurélio Mello afirma que, considerando o artigo 60 da Constituição, que impede a reapresentação de uma emenda constitucional na mesma sessão legislativa, a segunda votação sobre as doações de empresas às campanhas sequer deveria ter acontecido e seu resultado não tem o menor valor legal; texto foi aprovado em manobra do presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB); “É uma visão que dá uma perspectiva real de sucesso a uma solicitação de 64 deputados já apresentada ao STF, questionando a PEC do financiamento de campanhas, derrotada por uma diferença de 76 votos na primeira votação”, afirma o jornalista Paulo Moreira Leite, diretor do 247 em Brasília; Mello rejeita ainda o impeachment de Dilma Rousseff; disse que não vê fatos capazes de autorizar uma investigação da presidente; ele também fez críticas ao juiz Sérgio Moro, fazendo ressalvas às delações premiadas da Lava Jato.
No final da entrevista do ministro Marco Aurélio Mello ao
Espaço Público, programa da TV Brasil exibido nesta terça-feira, tive a certeza
de haver presenciado um depoimento histórico, em companhia dos também
entrevistadores Florestan Fernandes Junior e Felipe Recondo.
Com a experiência de quem irá completar 25 anos de Supremo
Tribunal Federal, a entrevista de Marco Aurélio foi uma aula de 58 minutos,
construída a partir de argumentos lógicos e principios claros, na qual o
ministro não perdeu a oportunidade de confirmar uma de suas afirmações
favoritas, aquela que diz que “a coragem é a maior das virtudes.” Pela
importância do entrevistado, pela relevância dos assuntos que abordou, seu
depoimento tem a força de um fato político.
Sem perder-se em raciocínios rebuscados e terminologia
incompreensível, que costumam atazanar aparições públicas de tantas autoridades
do judiciário, Marco Aurélio falou com firmeza e segurança a respeito de temas
atuais, de alta importância política. Perguntando sobre um possível impeachment
da presidente Dilma Rousseff, o ministro disse que não via fatos capazes de
autorizar uma investigação da presidente. Sem deixar de manifestar a vontade de
que possíveis irregularidades sejam investigadas e esclarecidas, Marco Aurélio
deixou claro que duvidava das vantagens, para o país, enfrentar um segundo
impeachment desde o retorno das eleições diretas, em 1989.
Uma semana depois que a Câmara aprovou a PEC que autoriza as
contribuições de empresas privadas para partidos políticos, em segunda votação
em 48 horas, o ministro não teve o menor receio de encarar o assunto, talvez o
mais relevante daquela expressão (“reforma política”) que enganosamente dominou
as conversas de Brasília nas últimas semanas.
Considerando que o artigo 60 da Constituição impede a
reapresentação de uma emenda constitucional na mesma seção legislativa, o
ministro lembrou um fato ululante, que sequer deveria ser discutido por pessoas
sérias: a regra escrita na Constituição deve prevalecer acima de outras
deliberações. Em outras palavras, a segunda votação sequer deveria ter
acontecido e seu resultado não tem o menor valor legal.
É uma visão que dá uma perspectiva real de sucesso a uma
solicitação de 64 deputados já apresentada ao STF, questionando a PEC do
financiamento de campanhas, derrotada por uma diferença de 76 votos na primeira
votação. Pela interpretação de Marco Aurélio, baseada em artigos redigidos de
forma cartesiana pelos constituintes de 1988, os festejos do rolo compressor de
Eduardo Cunha nessa matéria terão vida curta. (Ele também criticou a atitude de
Gilmar Mendes em engavetar o voto sobre o tema por um longo período. Lembrou
que os pedidos de vistas devem servir para a reflexão do magistrado e incluir
um período razoável de tempo — em vez de servir para tentativas de modificar uma
situação politica desfavorável).
Em seu conjunto, a entrevista — que será reprisada neste
domingo a partir das 23 horas — é uma oportunidade rara de compreender em
profundidade um ponto de vista que se opõe a visão hegemônica que tem sido
apoiada pela maioria dos meios de comunicação desde o julgamento da AP 470 e
também sobre a Operação Lava Jato — onde é fácil enxergar atitudes que lembram
um linchamento em praça pública, sem relação com o distanciamento e serenidade
que devem acompanhar decisões civilizadas.
Entre seus onze pares no Supremo, Marco Aurélio é hoje o
principal porta-voz do pensamento garantista, aquele que, sem deixar de
reconhecer a relevância de punir o crime e os criminosos, coloca a defesa dos
direitos e garantias individuais como principal obrigação de todo juiz.
Durante o regime militar, este pensamento denunciava os
abusos — que incluíam a tortura — como técnica de interrogatório de
prisioneiros.
Nos dias de hoje, a defesa dos direitos individuais inclui a
condenação de abusos — como longas prisões preventivas — destinadas a convencer
prisioneiros a fazer delações que podem diminuir suas penas, num exercício que
vários especialistas definem como tortura psicológica.
Em 2012, Marco Aurélio foi um aliado solidário de Ricardo
Lewandovski em decisões relevantes, como a defesa do desmembramento do
julgamento. Ontem, respondeu a várias questões sobre a AP 470, feitas pelos
entrevistadores e também pelo público, através das redes sociais.
O ministro demonstrou uma satisfação — difícil de disfarrçar
— por sua postura na época, o que era inteiramente compreensível em minha
opinião.
Se, em vez de rejeitar o desmembramento por 9 votos a 2, o
Supremo tivesse aceito favorável aquela medida, poderia ter sido possível
evitar o vergonhoso final com dois pesos e duas medidas — o julgamento dos réus
ligados ao Partido dos Trabalhadores, condenados e recolhidos a Papuda para o
cumprimento de suas penas, e os acusados ligados ao PSDB, que até agora sequer
receberam uma primeira condenação.
A entrevista ao Espaço Público foi realizada dois meses
depois que o ministro publicou um artigo chamado “Prender e Soltar”, no qual
deixava claro seus questionamentos às longas prisões preventivas em vigor em
nosso sistema prisional e também na Lava Jato. Ontem, respondendo a uma questão
colocada pelo advogado Nelio Machado, Marco Aurélio fez críticas sempre
respeitosas mas diretas ao juiz Sérgio Moro. Falando com a segurança de quem
domina os próprios argumentos e estudou demoradamete o ponto de vista
adversário, fez ressalvas às delações premiadas, lembrando que o depoimento de
um co-réu mais pode ser visto como única prova para sustentar uma acusação
criminal. Marco Aurélio deixou claro ter sérias dúvidas sobre o destino das
acusações quando forem examinadas por tribunais superiores, inclusive pelo STF.
O ministro ainda lembrou um ponto de princípio do Estado de
Direito, que determina a separação entre o trabalho de investigar, acusar e
julgar, para deixar claro seu inconformismo com a supremacia do Ministério
Público, que comanda a investigação e depois faz a acusação. Empregando o bom
senso que alimenta boa parte de seus argumentos, Marco Aurélio recordou um
aspecto óbvio: por mais bem intencionado que seja, o sujeito encarregado de
montar uma acusação está condenado a dirigir uma investigação — que deveria ser
neutra e isenta — para seus propósitos finais.
Claro que, na condição de apresentador do Espaço Público,
sou suspeito para falar. Mas duvido que seja possível negar que Marco Aurélio
Mello produziu 58 minutos imperdíveis sobre Direito, Justiça e Cidadania.
Via - Aposentado Invocado
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