Há dez anos, no dia 5 de julho de 2005, foram encontradas mais de 80 milhões de páginas com assassinatos e desaparecimentos de oposicionistas. Desde a derrubada do governo democrático de Jacobo Árbenz pela CIA, em 1954, mais de 250 mil pessoas morreram.
Foto - Cláudia Gaitan no site Nós e Nosotros |
"Cuando se tiene que beber tanta dolor.
Cuando un rio de
angustia
ahuega nuestra
respiración.
Cuando se ha llorado
mucho
e nuestras lagrimas
brotan como rios
de nuestros ojos tristes,
solo entonces
el suspiro recondito
de nuestro proximo
es nuestro proprio
suspiro"
(Julia Esquivel)
Por Leonardo Wexell Severo*
Uma denúncia sobre “explosivos mal armazenados” fez com que,
no dia 5 de julho de 2005, funcionários da Procuradoria de Direitos Humanos
(PDH) entrassem em um velho paiol abandonado, infestado de ratos, no centro da
capital guatemalteca. Então, o que era para ser uma investigação de rotina se
transformou na maior descoberta sobre a política de terrorismo de Estado
praticada pela oligarquia, com apoio da CIA, contra “subversivos”,
“esquerdistas” e “comunistas” no continente. A verdade documentada em 80
milhões de páginas continha os pormenores de décadas de perseguições, torturas,
desaparecimentos e assassinatos de oposicionistas.
A memória do crime estava ali, abandonada para ser
decomposta pela umidade e pelo tempo. A recordação depositada em pilhas de mais
de três metros de altura, nos cinco edifícios antes pertencentes à Polícia
Nacional. A rica trajetória da resistência popular deixada ao léu para ser roída.
A lembrança escondida pela principal “seção” das “forças de segurança” durante
os 30 anos da guerra suja que deixou mais de 250 mil mortos. “Forças”
desmanteladas por exigência do acordo de paz de 1996 firmado pelo governo com a
guerrilha. Retrato de um país convertido “numa imensa sepultura sem nome”, nas
palavras da analista Kate Doyle, diretora do Projeto de Documentação da
Guatemala.
“Quando visitei o lugar no começo de agosto, vi armários
inteiros classificados segundo o tema: ‘Assassinatos’, ‘Desaparecidos’ e
‘Homicídios’, assim como expedientes assinalando nomes de pessoas
internacionalmente conhecidas, de vítimas de assassinato político”, descreve a
arquivista-chefe e conselheira do Arquivo de Segurança Nacional dos EUA, Trudy
Huskamp Peterson. Conforme relatou Peterson, nos “Arquivos da Polícia”, “havia
fotografias de corpos e presos, listas de informantes da polícia com nome e
foto, montes de habilitações de motorista, fitas de vídeos e disquetes de
computadores”. E mais, listas com nomes de filhos de guerrilheiros mortos e das
famílias que os adotaram como seus ou simplesmente para servi-los.
Heróis anônimos
Desafiadora, a verdade sobreviveu, em meio à manipulação
midiática, ao pó, aos insetos e às fezes de morcegos. Dezenas de milhares
daqueles homens e mulheres que posteriormente iriam ser reduzidos à sigla NN -
“nome nenhum” - estão ali muito bem identificados, com sobrenome, endereço,
telefone, hábitos, preferências. Também há gente de renome, como o advogado
trabalhista Mario López Larrave, assessor do Comitê Nacional de Unidade
Sindical (CNUS), metralhado quando saía do seu escritório em 8 de junho de
1977; o ex-prefeito da capital guatemalteca e líder oposicionista Manuel Colom
Argueta, assassinado em 22 de março de 1979, uma semana após registrar seu novo
partido; e a jovem antropóloga Myrna Mack, que auxiliava os maias sobreviventes
de massacres, apunhalada 27 vezes por um esquadrão da morte das Forças Armadas
da Guatemala, no centro da capital, no dia 11 de setembro de 1990.
Nas cidades, lembra Kate Doyle, a repressão havia buscado
desmembrar a oposição sem deixar rastros oficiais. “Esquadrões da morte atuavam
sem uniformes, em veículos sem identificação. Os jornais faziam o seu jogo
noticiando cada novo cadáver como ‘homens sem identificação com roupas de
civil’. Assassinos anônimos retiravam a identidade de suas vítimas, deformando
completamente rostos e cortando as mãos, ou os sequestravam e jogavam seus
corpos no esquecimento de barrancos, lagos e fossas comuns”.
Comissão de verdade
Se chegaram tarde para contribuir com a “Comissão da
Verdade” - patrocinada pela ONU, em 1997 – os “Arquivos da Polícia” auxiliam no
restabelecimento da verdade histórica, fundamental para a vitória da Justiça e
a derrota da impunidade. A Comissão foi inviabilizada pelos militares, serviços
de Inteligência e Segurança, que alegavam que tais documentos tinham sido
destruídos ou simplesmente nunca haviam existido. E foi deliberadamente
sabotada pelo governo dos Estados Unidos – que liberou apenas 1.400 das cerca
de 100 mil páginas de documentos sobre a atuação da CIA no país
centro-americano. Sem ter acesso ao conjunto das informações, a avaliação
apresentada pela Comissão no final de 1999 ficou extremamente limitada.
Concluído em 2011, o informe “Do silêncio à memória:
revelações do Arquivo Histórico da Polícia Nacional” contou com o apoio do
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e pôde avançar,
explicitando alguns pormenores da participação estadunidense. Entre eles, a
atuação do governo dos EUA para assegurar a coordenação entre as diversas - e
dispersas – forças da repressão guatemaltecas: as polícias Nacional, Judicial,
Militar e o Exército. “Tal coordenação surgiu com a assessoria da Oficina para
a Segurança Pública (OPS) da USAID (Agência dos Estados Unidos para o
Desenvolvimento), estabelecida pelo governo norte-americano como mecanismo para
supervisionar o treinamento das forças policiais a nível internacional”,
assinala o documento. Como revelou a jornalista e escritora argentina Stella
Caloni, “a USAID foi utilizada durante o governo Reagan para dar uma fachada de
legalidade às ações encobertas da CIA, que transformou a Guatemala em
laboratório do terrorismo direitista”.
O informe mensal de Segurança Pública de março de 1966,
desclassificado (um documento secreto, tornado público) pelo Departamento de
Estado dos EUA, mostra que a parceria policial-militar foi iniciada muito antes
e descreve os “vários tipos de formação policial dada pela OPS para o controle
de multidões, uso de gás lacrimogêneo e emprego de armas antimotins”.
Outro documento desclassificado na mesma data, confirma o
envolvimento da CIA na “Operação Limpeza” contra expoentes da oposição ao
regime. Entre outros, revela o texto, “os seguintes comunistas e terroristas guatemaltecos
foram executados secretamente pelas autoridades guatemaltecas na noite de 6 de
março de 1966: Víctor Manuel Gutiérrez Garbin, líder do grupo PGT que vivia no
exílio no México; Francisco ‘Paco’ Amado Granados, líder do Movimento
Revolucionário 13 de Novembro (MR-13) e Carlos Barillas Sosa, meio-irmão de Yon
Sosa, dirigente do MR-13”.
Memória, espaço e luta política
Frisando que “a memória é um espaço de luta política”, o
advogado e intelectual paraguaio Martín Almada recorda que as ditaduras da
região agiram como “gestoras da instalação das multinacionais, que criaram as
condições para a entrada do modelo neoliberal”. Por isso, avalia, “foram
capatazes dos Estados Unidos, mordomos dos terroristas”. Com o mesmo intuito
das atrocidades na América Central, esclarece Almada, “tivemos no Cone Sul a
Operação Condor, por meio da qual as ditaduras estabeleceram um sistema de
controle, espionagem e prisões ilegais que levou à tortura e ao assassinato de
centenas de milhares de civis”. Foi ele quem descobriu os “Arquivos do Terror”
paraguaios, no dia 22 de dezembro de 1992, em um departamento da Polícia nas
imediações de Assunção. Mais de 700 mil documentos comprovando o “pacto
criminoso”. “Encontramos documentação da CIA desde seu primeiro dia em 1956 até
1992”, relatou. Prêmio Nobel Alternativo da Paz, Almada acredita que o momento
é de ação para “superar um modelo que gera riqueza e distribui pobreza, e é
isso o que eles temem”. “Nossos sonhos de liberdade seguem sendo seu maior
pesadelo”, enfatiza.
No caso da Operação Condor, recorda o advogado, os EUA
colocaram seus especialistas em “serviços técnicos” da CIA para subministrar
“equipamentos de tortura elétrica, com assessoramento até mesmo sobre o grau de
choques que o corpo humano poderia resistir”. Afinal, conforme advertiam os
professores dos torturadores, “o ser vivo pode dar informação e um cadáver
não”.
Representante do Ministério Público da Guatemala na acusação
movida contra Ríos Montt, o promotor Orlando López teve a responsabilidade de
apresentar as provas que condenaram o fiel aliado de Washington.
Superando os traumas e enfrentando as ameaças de morte,
mulheres indígenas sobreviventes foram até o júri dar o seu testemunho dos
massacres ocorridos contra a população maia. Inúmeros fuzilamentos ocorridos
nas suas aldeias, documentados pelo próprio Exército, que os mantinha como
troféus de guerra, já comprovavam. “Abriram fogo contra os adultos e jogaram
bebês no rio para que se afogassem, acusando a todos de guerrilheiros”, relatou
uma. “Fui estuprada por cerca de 20 soldados, até que perdi a consciência”,
declarou outra. E outra mais acrescentou que num destacamento militar em Visan,
Nebaj, presenciou “os soldados tirarem a cabeça de uma anciã e brincarem com
ela”. “Isso jamais poderei tirar da minha mente”, sublinhou.
Sobre a responsabilidade de Ríos Montt nos crimes, lembra o
promotor, “além de ser presidente da República e comandante geral do Exército,
ele conservou o cargo de ministro da Defesa”.
Para López, embora o cumprimento da sentença esteja sendo
postergado devido às articulações mantidas pela extrema direita na Corte de
Constitucionalidade, o impacto na sociedade guatemalteca foi “muito positivo”.
“Tanto a impunidade como a corrupção são dois flagelos que estão enraizados e
que caminham de mãos dadas”. Mas agora, a partir deste julgamento, acredita o
promotor, “se envia uma mensagem de não à impunidade, de que se podemos julgar
fatos que ocorreram há trinta anos, também se deveriam julgar ou esclarecer
acontecimentos ocorridos recentemente”.
Diante do risco de que a Justiça, enfim, prevaleça, a mídia
guatemalteca ligou sua metralhadora giratória, fazendo abundar factóides contra
o promotor e a Promotoria, na tentativa de que a sua massificação possa
desqualificar o julgamento e fazer o processo retroceder.
Diferente dos “equipamentos” utilizados para dobrar com
sangue e dor a resistência dos povos, assinala Stella Caloni, o bombardeio
midiático tem se revelado mais sofisticado e sistemático, pois se multiplica
via jornais e revistas, emissoras de rádio e televisão e portais de internet
que elevam à enésima potência a propaganda do inimigo como verdade absoluta.
Mas, felizmente, Goebbels e os nazistas estavam
completamente errados e uma mentira, apesar de contada mil vezes, jamais se tornará
verdade.
O fato, frisa a jornalista argentina, “é que os grandes
conglomerados de comunicação são hoje instrumentos do governo de Washington
para apagar a memória, desvirtuar a cultura e estimular a submissão à lógica
neoliberal, de privatização e desmonte do Estado”. Daí a importância de
ampliarmos a denúncia da ação dos monopólios midiáticos e de fortalecermos a
mobilização pela regulação e democratização dos meios de comunicação. Porque,
mais do que nunca, enfatiza Caloni, “a desinformação é uma arma de guerra do
Pentágono”.
*Leonardo Wexell Severo é jornalista
Via - Brasil de Fato
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