Seguindo a máxima 'fale suave e carregue um grande bastão', a Gulabi Gang (Gangue de Rosa) se defende da violência e combate corrupção na Índia.
Luis A. Gómez | Calcutá
Em uma região cheia de histórias, entre o Taj Mahal e a
milenária cidade de Varanasi, milhões de mulheres têm sido espancadas,
humilhadas e caladas à força no estado hindu de Uttar Pradesh. Ali mesmo, há
trinta anos, uma mulher das castas mais baixas chamada Phoolan Devi decidiu se
vingar de seus estupradores e acabou se transformando na rainha dos bandidos.
Contrariando as hierarquias e os homens, Phoolan se tornou famosa por sua
selvageria e simplicidade. Rendeu-se à política, foi eleita deputada... e, em
plena democracia, foi morta a tiros para vingar os homens que a maltrataram.
Outras não tiveram tanta vida. Morreram ao nascer, afogadas
em algum rio ou, como costuma acontecer em um estado pobre e cheio de
desigualdades tão milenárias como suas maravilhas, morreram “acidentalmente”
queimadas, afogadas ou golpeadas. Em Uttar Pradesh, a violência contra mulheres
no âmbito doméstico ultrapassa a média nacional da Índia (38% das mulheres
sofreram algum tipo de abuso físico ou sexual, de acordo com a Terceira
Pesquisa Nacional Sobre Saúde Doméstica, de 2006). Quase metade dos homens
confessou ter abusado sexualmente de sua esposa alguma vez.
No distrito de Bandha, no sul do Estado, as taxas são as
mais altas. Mas não foi assim na comunidade de Atarra, onde Sampat Pal Devi,
casada aos 12 anos de idade com um amável vendedor de sorvetes e mãe aos 15
anos, um dia decidiu “devolver o favor” ao marido abusivo de uma conhecida.
Quando tinha 16 anos, Sampat viu um homem espancando sua
esposa em Atarra. Pediu ao homem que parasse, mas não conseguiu. No dia
seguinte, acompanhada de um grupo de mulheres que conseguiu reunir, bateu no
homem. Isso aconteceu em 1980 e foi o começo de um movimento que inspira
mulheres em todo o mundo.
Hoje com 51 anos, ela comanda pouco mais de 270 mil mulheres
vestidas com saris rosas e armadas com lathis (bastões de madeira de um metro e
meio de largura). O grupo, conhecido como Gulabi Gang (Gangue de Rosa), a segue
por todas as partes, mediando conflitos domésticos, arrumando casamentos,
denunciando a corrupção de burocratas e, se necessário, usando lathis para
revidar abusos.
“Normalmente prefiro usar a razão”, afirma Sampat. “É melhor
convencê-los a fazer o correto. Quase nunca tivemos de chegar a usar a
violência”. De toda forma, a Gulabi Gang se organiza quase militarmente (com comandantes
e muitas sessões de treinamento para a autodefesa). E, desde 2006, usam como
uniforme o sari cor-de-rosa (na verdade, magenta). Mas não é uma referência
particular à feminilidade. “Queríamos ter algo que não tivesse relação com os
partidos [políticos] e nenhum usa rosa. Por isso escolhemos essa cor”, explica
sem pressa Pal Devi.
Justiceiras ou necessárias?
Elas foram acusadas de justiceiras, de fazer justiça com as
próprias mãos. E o comando onipresente de Sampat foi criticado muitas vezes.
Entretanto, em Uttar Pradesh é complicado confiar na polícia, definida por um
juiz da Corte Superior de Distrito do Estado como “a maior organização
criminosa do mundo”. De toda forma, explica Sampat, as mulheres da Gulabi Gang
querem estar “do lado luminoso da lei”, mesmo que seja forçando os agentes a
cumpri-la.
Nem tudo se resume a um grupo de autodefesa. Algumas doações
começaram a ser usadas para outras atividades. Em 2010, as mulheres de rosa
criaram uma escola para os filhos das castas mais baixas e os povos indígenas
do país. Sampat quer que a nova geração tenha uma educação melhor do que à que
ela teve acesso, tendo de aprender sozinha a ler e a escrever. “As mulheres das
comunidades têm de estudar e se tornar independentes para decidir suas vidas”,
disse ao The Guardian na ocasião.
Sampat treina combatente do grupo em cena do documentário
"Gulabi Gang"
|
Em sua luta para evitar matrimônios infantis, capacitam
jovens a usarem máquinas de costura. Assim, transformadas em trabalhadoras
autônomas, produzem dinheiro e seus pais não querem que se casem, pelo menos
não antes dos 16. Também existe o negócio de pequenos pratos feitos com folhas
de árvore, que Prema Rambahori organizou com apoio da Gulabi Gang em um
território salpicado de pequenas comunidades indígenas. Populares em festas e
bodas, os pratos dão trabalho, hoje, a mais de 200 mulheres diariamente.
Claro que Sampat e suas companheiras são mais notórias
visitando casas e resolvendo injustiças. Como a boda negada em um pequeno
povoado muçulmamo onde Sampat, por horas, discutiu os pormenores do compromisso
a pedido da noiva. “Sampat nunca é injusta. Sampat não maltrata sem motivo.
Venham falar comigo”, disse a comandante ao chegar. Ela permaneceu até que se
realizou o casamento com a aprovação das autoridades comunitárias, ao fim do
dia, comovendo o pai da menina a aceitar todas as condições.
Como sua ação é notória em todo o mundo, a Gulabi Gang tem
sido objeto de estudo e de documentários. No entanto, a fama trouxe tensões
internas e, em março de 2014, Sampat foi suspensa como comandante-em-chefe por
participar de uma eleição para deputada em 2012 (está proibida de trabalhar com
partidos políticos segundo o regulamento interno) e por não prestar contas das
doações e de suas viagens constantes.
Nesse período, Sampat declarou à imprensa: “As acusações
contra mim não têm fundamento e eu responderei a elas... Tenho sido uma
lutadora e vou superar isso também.”
Depois de um processo interno que demorou meses, Sampat Pal
Devi foi restituída a seu cargo e começou outra etapa na vida da Gulabi Gang.
Desde então, o grupo começou a expandir suas atividades para outras regiões de
Uttar Pradesh e para o estado vizinho de Madhya Pradesh. De fato, começaram a
criar núcleos do grupo em várias cidades.
Em janeiro deste ano, durante sua visita a Odisha, estado da
costa leste, Sampat afirmou em uma conferência que sua intenção é “logo
expandir a rede para outras partes da Índia”. A comandante explicou as razões:
“a missão da gangue é erradicar os males sociais e questionar o sistema de
castas, dar poder às mulheres e lutar pelos direitos dos pobres.”
No início de junho, uma decisão da justiça indiana teve um
gosto especial para Sampat: Purushottam Naresh, um ex-deputado nacional acusado
de estupro em 2010, foi sentenciado por seus abusos. Foram Sampa e seu grupo
que pressionaram para conseguir que Dwivedi fosse formalmente acusado. A
dirigente da Gulabi Gang foi candidata nas eleições contra ele. Perdeu nos
votos, mas não na justiça. Dwivedi passará 10 anos preso. Sampat falou pouco
com jornalistas depois da sentença. Mas foi vista sorrindo sem pressa, rodeada
de outras mulheres, cantando: “como a maré do oceano, há uma maré rosa.”
Via - Opera Mundi
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