Diz uma antiga fábula que, em um certo país governado por um
grande e inerte sapo de três cabeças, um escorpião, muito peçonhento e esperto,
sobre quem recaíam sérias denúncias de recebimento de propinas, contas ilegais
no exterior e intimidação de testemunhas, foi informado por seu advogado de
que, para livrar a própria carcaça, precisaria atravessar um caudaloso e
lamacento rio. Do outro lado do rio, disse o advogado, o escorpião encontraria,
além do esquecimento dos crimes cometidos por ele, um saboroso plantel de
pequenos mamíferos indefesos e atordoados para que ele se alimentasse até a
saciedade e, também, variadas e novas oportunidades de novos ganhos
financeiros, que fariam do escorpião um animal peçonhento ainda mais rico, bem
nutrido, poderoso e influente.
O escorpião, no entanto, sabedor de que seria incapaz de
atravessar o rio sozinho, firmou uma série de acordos com um bando de ratos que
faziam parte da corte do sapo de três cabeças mas que, na verdade, nunca haviam
sido lá muito simpáticos ao velho batráquio-rei. Os ratos, por conta da
terra-arrasada que havia se tornado uma inegável realidade do lado de cá do
rio, também desejavam atravessar para a outra margem, onde, dizia-se, existiam,
além de tudo, as maiores e melhores pizzarias do reino.
O objetivo do consórcio entre o escorpião e os ratos era,
por meio de uma série de chantagens e ameaças, fazer com que o sapo
transportasse a todos, em segurança, nas suas costas, para o outro lado do rio.
Afinal, sapos sabem ou deveriam saber atravessar rios e aquele sapo em
especial, que governava um país, tinha as costas largas o bastante para
transportar para outra margem todos os animaizinhos rebeldes, tanto o
escorpião, quanto sua legião de ratos.
Porém, o escorpião sabia que o sapo já não era tão grande e
forte como já fora um dia e, apenas para garantir, foi conversar com o
ressentido tucano das montanhas, que há muito tempo, pretendia depor o sapo e
passar a governar o país. Afinal, o tucano, por, em tese, saber voar, também
seria capaz de transportar o escorpião em suas costas para a outra margem do
rio, onde jorrava leite, mel e petróleo do pré-sal, mas não existia Ministério
Público.
O escorpião encontrou-se com o tucano no fabuloso balneário
de Leblônia, onde a ave se refugiara após perder a última batalha pelo trono
para o sapo, para tentarem um acordo, mas o que o animal peçonhento acabou
encontrado não lhe deixou lá muito seguro. O pássaro estava com o grande e
imponente bico inchado e torto, a asa esquerda estava quebrada; a direita,
hipertrofiada. Além disso, o outrora vistoso pássaro tropical parecia obcecado,
paranóico, vacilante e havia se rodeado por um barulhento exército de galinhas
verdes bastante ariscas, que começavam a bicar panelas de alumínio cada vez que
o nome do sapo de três cabeças era mencionado, ou que viam suas fotos nos
jornais ou sua imagem nas redes de televisão do reino.
O tucano ficou feliz com a conversa e muito contente de
saber que o escorpião havia reunido um exército de ratos para achacar e
pressionar o sapo a atravessar o rio e fez uma proposta ao animal peçonhento:
se o lacrau conseguisse afogar o batráquio no rio, sem deixá-lo chegar à outra
margem, o tucano se encarregaria de transportar o escorpião para onde quisesse.
O escorpião não disse nem que sim que não, sorriu, brindou com o combalido
tucano e voltou para sua toca para pensar nas possibilidades que tinha diante
de si.
A ave, por sua vez, após se despedir do escorpião, sorveu,
rapidamente, uma dose generosa de whisky cowboy e pensou: "Eu jamais vou
colocar esse animal venenoso por sobre a minha plumagem macia para
transportá-lo para onde quer que seja. Ele pode me aferroar, está em sua
natureza. Vou deixar que ele afogue o sapo de três cabeças, meu inimigo,e
depois vou deixá-lo entregue à própria sorte."
...........................................
O sapo que governava aquele país, como já foi dito, tinha
três cabeças. A do centro, ostentava o rosto de uma mulher e parecia pensar de
forma mais burocrática, endurecida e seca. No seu papel de cabeça central,
caberia a ela colocar, em condições normais, as duas cabeças periféricas em
seus devidos lugares e, por alguns anos, claramente, foi a cabeça predominante.
A cabeça da esquerda era a de um homem barbudo, que fumava um charuto e usava
uma boina vermelha.Gritava constantemente palavras de ordem e era boa para
discursar para a população mais pobre do país, sendo, também, bastante
combativa em batalhas, como aquela que derrotou o tucano das montanhas. Não
parecia gostar muito de sua nêmese, a cabeça mais à direita que, por sua vez,
tinha o rosto de um homem imberbe, com gravata borboleta e óculos de aros
metálicos, redondos. Esta cabeça só falava em números, soltava um risinho
cínico todas as vezes que a cabeça da esquerda abria a boca e vivia reclamando,
dizendo que o corpo do sapo estava grande demais, que era necessário diminuir o
tamanho do sapo e que o povo daquele país precisava de fazer sacrifícios junto
com o sapo, para que ambos ficassem cada vez menores, mais fracos, porém mais
leves e esguios. Quando falava demais, a cabeça à destra, obcecada com
silhueta, arrumação e números, acabava emitindo trinados exatamente iguais ao
do tucano das montanhas, levantando suspeitas em todos de que aquela porção do
sapo tinha, na verdade, origem ornitológica.
O rei só era capaz de decidir algo e de se movimentar em
alguma direção quando havia alguma concordância entre as três cabeças ou, pelo
menos, quando uma delas apenas era vencida e se resignava. Para tanto, a cabeça
do centro exercia um papel primordial, de juíza do que diziam as demais. Desde
a última batalha contra o tucano, porém, a cabeça do centro parecia distante,
um pouco perdida, dormindo demais. Para tornar a situação ainda mais complexa,
na última guerra, o sapo havia se cercado de uma corte nada confiável de ratos,
alguns dos quais, como já se disse, haviam se aliado ao escorpião. Com a cabeça
do centro reduzida a um estado de torpor e à batráquia função de, vez ou outra,
comer moscas (comer moscas, nunca se esqueçam, é algo próprio da natureza dos sapos);
os ratos ganharam força e decidiriam que, sozinhos, governariam o país; a
cabeça da esquerda passou a tentar enxergar no torpor e no degustar insetos da
cabeça central, sua líder, alguma insondável, incompreensível, porém genial
estratégia revolucionária que a levaria, guiada pela cabeça central, a derrotar
a antipática cabeça da direita e a sepultar, definitivamente, o maligno tucano
das montanhas; a cabeça da direita, por sua vez, passou, sozinha, a elaborar
escorchantes e absurdos decretos para reger o país, falando sempre em nome da
cabeça central, que não manifestava nenhum tipo de oposição às cada vez mais
impopulares medidas.
Não bastasse esse confuso estado de coisas, o tucano vencido
na última batalha e seu exército de galinhas verdes, inconformados com a
derrota, tramavam, às vistas de todos, afogar o sapo no rio para assumir o
poder. Como o sapo não reagisse e, com a maligna cabeça da direita ditando as
regras, boa parte do povo do país, que lutara a favor do sapo na última
batalha, começou a pensar que ver o sapo se afogando no rio talvez não fosse
assim uma idéia tão má. Afinal, apenas a cabeça da direita estava governando de
fato e, ultimamente, dizia-se, estava tão parecida com o tucano da montanha que
tinha até desenvolvido, no lugar do nariz, um pequeno bico que, no entanto,
crescia um pouco a cada dia.
Foi esse sapo adoentado, mero reflexo de sua antiga
grandeza, que, dizem por aí, acabou topando se encontrar com o escorpião para
tentar um acordo. O influente animal peçonhento, que, repetidas vezes, havia
ameaçado o sapo de afogamento e sempre exibia para o batráquio seu imenso e
venenoso ferrão de forma ameaçadora, teria dito, com sua voz macia, que, caso o
sapo concordasse em transportar a ele e a alguns ratos em suas costas para a margem
segura do rio, poderia, muito bem, apontar o seu ferrão contra o tucano da
montanha e suas galinhas no decorrer da travessia, garantindo, assim, que o
sapo chegaria, também, do outro lado em segurança.
Como as três cabeças do sapo não andam funcionando muito
bem, talvez elas tenham se esquecido do fato de que o tucano, ferido e também
doente, provavelmente não tem, hoje, muita autonomia de vôo, além de não saber
nadar. Que suas galinhas verdes, apesar de barulhentas e de ciscarem o alumínio
com maestria ímpar, nunca souberam voar (e caso resolvam andar com os patos ou
sapos, morrerão afogadas, pois também, de águas e correntezas, não entendem
nada).
Talvez as três cabeças do sapo tenham se esquecido que o
ferrão do escorpião só trabalha por ele e de que está na natureza desse animal,
infelizmente, inocular veneno. Que qualquer travessia, com um escorpião
venenoso e traiçoeiro nas costas, talvez seja longa e perigosa demais. Talvez.
Se o sapo tem dúvidas, poderá sempre perguntar às algumas
poucas vítimas do perigoso lacrau que, inoculadas com o veneno do escorpião,
sobreviveram para contar a história. Sabe-se, ao menos, da triste história de
um garotinho, que confiando no animal, com quem gostava de passear, o alimentou
e dele cuidou por anos, até tomar uma ferroada. Mas com nenhuma das três
cabeças do sapo funcionando em harmonia, talvez seja pedir demais esperar que
elas procurem saber disso.
Resta-nos esperar pelo fim desta triste quase-fábula
que, ao que parece, não vai terminar com um construtivo provérbio, mas com
alguma ou algumas frases lapidares.
*Pedro Munhoz é mineiro de Belo Horizonte, advogado, bacharel
em história e estudante de jornalismo.
Via - Pautando Minas
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