Nesta quinta completa-se um ano da reaproximação entre EUA e
Cuba; para o artista, ‘não se pode subestimar a centelha dos cubanos. Se chegar
a Cuba, não duvido que McDonald’s venda pão com carne de porco’.
Silvio Rodriguez | Foto: Wikicommons
|
Por Fernando Ravsberg,
Do Público
“Cabe perguntar-se o que pode significar para Cuba sair do
bloqueio e cair nas mãos do FMI. Seja como for, há que ser muito valente para
declarar que não renunciamos ao socialismo”, é o que diz o cantor Silvio
Rodríguez que, com mais de 40 anos de carreira, é hoje um dos nomes mais
importantes da cena cultural cubana. Anunciada há um ano, em 17 de dezembro de
2014, a reaproximação entre Cuba e os Estados Unidos gera ampla discussão
dentro e fora da ilha comunista.
Em entrevista ao site espanhol Publico, Rodríguez comenta a
aproximação dos Estados Unidos a seu país. No âmbito cultural, ele ressalta que
“sempre houve intercâmbio com os Estados Unidos em nível cultural. Criar
condições para que esse intercâmbio se amplie será como levantar barreiras para
que tudo flua com mais naturalidade” e ressalta: “Não se pode subestimar a
centelha dos cubanos. Basta ver o crescimento vertiginoso dos restaurantes e
outros serviços. Se chegar a Cuba, não duvido que o McDonald’s acabe vendendo
pão com carne de porco”.
Quanto à Revolução Cubana, da qual participou ativamente,
Silvio Rodríguez considera que “foi uma realidade imensa, reconhecida com um legado
inquestionável. Fui uma partícula desse turbilhão o tempo todo. Não duvido que
haja outra revolução no futuro. Mas, até que chegue esse momento
extraordinário, o que nos cabe é evoluir”.
Confira a íntegra da entrevista:
A aproximação de Cuba e Estados Unidos abre muitas
possibilidades, mas também representa desafios para a cultura cubana.
Sempre houve intercâmbio com os Estados Unidos em nível
cultural. Criar condições para que esse intercâmbio se amplie será como
levantar barreiras para que tudo flua com mais naturalidade. Se há algo
frustrante, não é porque o contato seja negativo, mas porque a ilusão das
pessoas propensas a deslumbrar-se acriticamente poderia aumentar. Digamos que o
mimetismo pode tornar-se ainda mais pedestre, se é que isso é possível.
Cuba é também uma potência cultural, mas sem o poder
econômico da cultura estadunidense. Você não teme que a cultura cubana se veja
obrigada a “passar pelo aro” para acessar o mercado dos Estados Unidos?
Sempre houve artistas que pensam em mercados e
conveniências, e artistas que colocam a arte à frente de todo o resto. Nunca
esqueço daquela frase de José Marti, segundo a qual nossos ramos podem ser do
mundo, desde que o tronco se mantenha nosso. Satyajit Ray iniciou sua célebre
“trilogia Apu” com um pensamento muito lúcido: “Conta sua aldeia e contarás o
mundo”. Só a banalidade é capaz de se maquiar de “mundo” e dar as costas ao
próprio, pensando no êxito fácil.
Quais são as principais forças da cultura cubana para
enfrentar o desafio da nova aproximação com os Estados Unidos?
Acredito na identidade. Sem confundi-la com o excessivamente
típico, que pode tornar-se caricato, como essa pintura tosca do cubano que
parece seduzir a tantos. É que a identidade também evolui com a instrução de um
povo, como foi nosso caso. Inclusive quando não tínhamos a consciência que nos
deu meio século de confronto político, Cuba resistiu e seguiu sendo Cuba.
Porque não haveria de fazê-lo agora?
Quais seriam suas principais fraquezas?
Suponho que a superficialidade, tão abundante como a
verdolaga [uma planta rasteira comum em Cuba]. E ocasionalmente, alguns brotos
de oportunismo.
Assista ao documentário Oxalá (em espanhol):
Num momento em que as reformas buscam o autofinanciamento de
todos os setores, como a cultura pode fazê-lo? Podem alcançá-lo o balé ou o
cinema?
Atividades artísticas que requerem infraestruturas mais ou
menos complexas, como o balé e o cinema, são impraticáveis em países em
desenvolvimento. Mas é muito pior se não existe a vontade de construí-las e
sustentá-las. Em Cuba, desenvolveram-se pela vocação humanista de Fidel Castro
e pelo impulso de personalidades como Haydeé Santamaría, Alicia e Fernando
Alonso, Alfredo Guevara, Julio García Espinosa e outros. Inclusive países
desenvolvidos, como a Espanha, estão em constante luta por orçamentos para o
cinema, a música clássica e outras manifestações. Em muitos lugares, essas
expressões apenas sobrevivem graças ao mecenato. Mas supõe-se que um Estado
socialista deva ser mais responsável, mas generoso.
Inclusive tratando-se de um Estado pobre, bloqueado, cada
vez com menos ajudas e ainda por cima em meio a uma crise econômica mundial,
como pano de fundo. Cabe perguntar-se o que pode significar para Cuba sair do
bloqueio e cair nas mãos do FMI. Seja como for, há que ser muito valente para
declarar que não renunciamos ao socialismo. Os cineastas cubanos mostram-se
conscientes da realidade; vêm também daí suas demandas de independência e de
uma lei cinematográfica. Não acredito que o balé vai desaparecer, mas as
instituições dificilmente sobreviverão sem mudanças. É admirável que figuras
como Liz Alfonso e agora Carlos Acosta levem adiante seus projetos. Por outro
lado, também há outras experiências novas e interessantes, como a Fábrica de
Arte, de X Alfonso.
Estruturas como as fundações foram vistas em Cuba com
reservas, talvez por medo de que fiquem muito independentes. Há projetos que
esperam há anos pela anunciada revisão da Lei de Fundações. Acredito que uma
forma de salvar algumas boas atividades que tiveram início com a Revolução é
transformando-as precisamente em fundações, ou instituições semelhantes. E que
cada iniciativa prove na prática sua capacidade e sua vigência.
O turismo em Cuba cresceu muito, dizem que muitos turistas
querem conhecer o país “antes que cheguem os americanos”. Você acredita que
Cuba realmente corre o risco de americanizar-se, de que os McDonalds superem o
pão com carne de porco?
Não se pode subestimar a centelha dos cubanos. Basta ver o
crescimento vertiginoso dos restaurantes e outros serviços. Se chegar a Cuba,
não duvido que o McDonald’s acabe vendendo pão com carne de porco – ainda será
preciso ver como serão feitos… Gostaria que não mudássemos a comida saudável
que ainda temos: é um valor nosso a ser defendido. Alguns apressados pressionam
a natureza para que as frutas amadureçam mais rápido, o que lhes muda o sabor,
além do dano dos agentes químicos. Espero que esses maus hábitos não se
generalizem e que nunca venhamos a substituir saúde por falso crescimento. Pode
ser que as coisas assim fiquem associadas ao “antes dos americanos chegarem”.
Seus concertos pelos bairros repercutiram muito em nível
nacional e internacional.
Começamos a fazê-los muito discretamente; recusávamos que o
trabalho que fazíamos nesses lugares se transformassem em show. Mas com o tempo
foi inevitável que transcendesse. Alguns documentários ajudaram. O primeiro foi
feito pelo espanhol Nico García, e chama-se Oxalá. Também foi feita uma
exposição de pintura de Tony Guerrero e fotos minhas no Centro Cultural Pablo
da Torriente. Foram acontecendo coisas que trouxeram o projeto à luz.
Por que decidiu fazê-los?
Quem me pediu o primeiro concerto foi José Alberto Álvarez,
um policial que atendia no pequeno bairro de La Corbata. Ocorre que ir aos
bairros vicia. Você chega e vê as famílias, as crianças, os velhinhos nos
portais e varandas, jovens pendurados nos telhados. Você é transpassado pela
beleza, vê que faz falta e as pessoas lhe agradecem. Não há melhores razões.
Quantos realizou?
Hoje faremos o concerto número 68. [Em] 9 de setembro
completamos cinco anos de turnê.
Como os financia?
Recebo um pouco de ajuda estatal. Emprestam-me o palco, o
equipamento de eletricidade e as luzes, que são coisas que não temos. Também
nos ajuda algum pessoal do departamento de excursões do Ministério da Cultura.
Tudo o resto, o som, os microfones, os instrumentos e os salários de alguns
trabalhadores, é por conta do projeto Oxalá. Esses custos são um item fixo em
nosso orçamento. As turnês pelo exterior nos ajudam a ir melhorando as
condições, sobretudo a qualidade das caixas de som, das mesas de som, dos
cabos, que gradualmente foram se tornando muito profissionais. Vale lembrar que
todos os músicos e artistas que se oferecem para fazer a turnê o fazem com
absoluto desinteresse material.
Assista
ao documentário Canción de Barrio (em espanhol):
Suas opiniões sobre a situação social que
encontrou nos bairros suscitou todo tipo de comentário. O que encontrou,
realmente, nesses lugares?
Não que eu ignorasse que havia bairros assim. O projeto
Oxalá está há mais de 20 anos ao lado do bairro de El Romerillo. Todos que
vivem em Cuba e querem ver que isso existe, veem. É que o trabalho constante
nesses lugares permite enxergar não só as carências e as condições de vida, mas
também na luta constante contra a indolência e a burocracia. Assim foi feito Canción
de Barrio, o documentário de Alejandro Ramírez que resume os dois primeiros
anos dos giros: descarnado, assim como a realidade. E por isso no dia da
estreia convidamos os dirigentes dos lugares que iam ser expostos. Alguns
foram.
O que lhe acrescentam, como artista e como pessoa, esses
concertos?
Comecei a experimentar desde criança, nos primórdios da
Revolução. Vi balé não por formação familiar ou por possibilidades econômicas,
mas de repente Alicia Alonso dançava numa praça. O que conta o primeiro documentário
de Octavio Cortazar, ‘Por primera vez?’: a visita de um caminhão projetor às
montanhas, onde o cinema nunca havia estado. Que fazíamos em nossa juventude
nós mesmos, constantemente, se não cantar em todas as partes?… Nunca deixei de
cantar assim, sobretudo em meu país.
Pode ser que não se saiba, mas jamais cobrei um concerto em
Cuba. Bem, uma vez Luis Eduardo Aute e eu cobramos um, no Teatro Karl Marx, e
doamos o dinheiro a San Antonio de los Baños, para que a prefeitura tivesse um
fundo (que dizia não ter) e pudesse pagar trabalhadores para limpar o rio
Ariguanabo. Mas também lá fora cantei assim. Tenho feito muitíssimo no México,
aonde comecei a ir nas Jornadas de Solidariedade com o Uruguai. Fiz na
Colômbia, Venezuela, em Angola, na República Dominicana, Equador, Bolívia,
Paraguai. Fiz em alto mar, durante meses, na Frota Cubana de Pesca. Fiz nas
prisões, várias vezes. Há pouco fizemos um concerto no bairro de Lugano, em
Buenos Aires. No Chile falei com Michelle Bachelet para que fizesse uma lei que
obrigasse os estrangeiros a fazer um concerto gratuito. Parece que não pode.
Atingir a sistematização do Giro pelos Bairros em Cuba (ou Giro Interminável)
me deu uma satisfação muito grande. Mais que qualquer outra coisa.
Como vê as possibilidades de que se mantenha o projeto
social da revolução?
Os projetos sociais humanistas, revolucionários, se manterão
sempre que existir quem os leve adiante.
Quando no seu blog Segunda Cita [“Segundo Encontro”] lemos
“em evolução”, a gente pensa se em algum outro momento você não teria dito
“blog em revolução”. Há alguma contradição entre esses dois conceitos?
Não há contradição, o que há é consequência. A Revolução
Cubana foi uma realidade imensa, reconhecida com um legado inquestionável. Fui
uma partícula desse turbilhão o tempo todo. Não duvido que haja outra revolução
no futuro. Mas, até que chegue esse momento extraordinário, o que nos cabe é
evoluir.
Qual deve ser o papel dos artistas em meio à transformação
que vive Cuba?
Este assunto de papeis me causa angústia. Chegamos ao que
chamam arte, e ao que isso signifique, de diferentes maneiras; por chaves às
vezes coletivas, mas também pessoais. Então, nem sempre há respostas genéricas
fáceis; tudo tem aspectos que são assunto de cada um, e isso é muito respeitável.
A cada um cabe empurrar os processos para onde acreditamos
ser certo. Pensamos igual? Obviamente não. Mas há matizes. Posso ter sonhos
complicados, mas me identifico com coisas muito básicas. Estou contra o
bloqueio, e vejo todos os que estão contra o bloqueio como família. Os que
estão em favor de uma sociedade responsável em relação ao planeta e aos menos
favorecidos também são minha família.
Que é a poesia para você? Como a concebe hoje? É necessária
no processo de mudança de Cuba?
A poesia é imprescindível onde quer que existam seres
humanos. É alcançável de muitas formas — sem dúvida, também com o jornalismo.
Quando era jovem li Arte Poética, de José Zacarías Tallet, e me pareceu um
disparate fabuloso; mas hoje eu poderia subscrever cada um dos versos. Por
isso, garanto que há poesia “até na roda de uma bicicleta” e que, em qualquer
circunstância, “o problema é encontrá-la”.
Quer enviar alguma mensagem a seus seguidores espanhóis?
Sempre senti que devo muito à Espanha. Cheguei lá em 1977,
quando muitos povos latino-americanos tinham governos militares. Alguns
exilados levaram minha música a seus países porque na Espanha era possível
conseguir meus discos. Eram camuflados com outras capas. Em 2016, fará nove
anos que não faço concertos lá. Tentei em várias ocasiões, mas a crise
econômica não permitiu. Queria voltar ao menos uma vez mais e fazer algumas
apresentações para, no final, me dar o prazer de fazer um concerto bem lindo
num bairro dos mais necessitados; talvez on de também haja imigrantes. Sonho
com fazer esse regalo. Oxalá possamos nos ver lá.
*Tradução de Inês Castilho para o site Outras Palavras
Via – Brasil de fato
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