domingo, 13 de março de 2016

De onde nascem as bruxas

Em seu primeiro longa,Robert Eggers mergulha, sem distanciamento crítico, no folclore e nos mitos. Está em busca da substância do “pecado”: o sexo da mulher, no que tem de desconhecido, incontrolável, ameaçador.


Por José Geraldo Couto, no blog do IMS

A substância da bruxa, bem como do demônio e do pecado em geral, sempre foi uma só: o sexo, no que este tem de desconhecido, incontrolável, ameaçador. Em especial o sexo da mulher, visto desde Eva como fator de instabilidade, quando não de danação e queda, pelo pensamento judaico-cristão.

Pois bem. A bruxa, de Robert Eggers, dá a ver claramente essa conexão ao condensar cinematograficamente uma profusão de crenças e fantasias sobre bruxaria arraigadas no imaginário popular. Não à toa Eggers (originalmente diretor de arte) foi buscar para seu longa de estreia narrativas orais perpetuadas no folclore da Nova Inglaterra.


Palavra e corpo

Tudo se concentra aqui em poucos personagens e num território circunscrito. Trata-se de uma família – homem, mulher e cinco filhos – expulsa de um vilarejo de colonos britânicos na região que viria a ser o nordeste dos Estados Unidos, em 1630. A expulsão, deduzimos pelo diálogo inicial, deu-se pelo fanatismo religioso do chefe da família, William (Ralph Ineson), que colidia com regras e práticas da própria igreja instituída.

Antes de ver o rosto de William, ouvimos sua voz trovejante, de ressonâncias bíblicas. É quase uma voz abstrata, vinda do alto, das esferas da pura fé. Ao longo de todo o filme, o que se verá serão as inúmeras formas de embate entre a Palavra (assim mesmo, em maiúscula) e o corpo, com suas impurezas e ameaças.

Esse conflito acaba por se dar no interior de cada indivíduo, a começar pela filha mais velha, Thomasin (Anya Taylor-Joy), em pleno desabrochar da sexualidade adolescente – que o cineasta insinua de modo sutil e contido. A primeira coisa que ouvimos dela é uma oração em que pede perdão a Deus por seus pecados em pensamento. O descompasso entre a consciência e o desejo, entre o espírito e a carne, moverá todo o filme.

Desastres sucessivos abatem-se sobre a família: o filho caçula, ainda bebê, é roubado (por um lobo? por uma bruxa?), a colheita é arruinada, vêm à tona segredos e conflitos entre os irmãos e entre os pais. Tudo é interpretado como sinal, castigo ou vaticínio.

Adesão ao folclore

A organização do espaço é precisa. Há a casa, o barracão dos animais, a lavoura e, ao fundo, a floresta – misteriosa, impenetrável, interdita. É lá que se escondem todos os pesadelos.

Ao longo do relato, enquanto cresce a tensão entre os personagens, proliferam os signos carregados de sentido erótico-religioso: a maçã, o bode e, claro, a bruxa. O filme não adota um distanciamento crítico, por assim dizer “materialista”, diante do folclore e dos mitos. Ao contrário: adere a eles, penetra fundo, como que para revelar suas entranhas.

Impressiona a segurança narrativa de Eggers, seu domínio do ritmo e da composição. A fotografia é notável sobretudo nas cenas internas noturnas, com seu magnífico claro-escuro de pintura barroca, que deixa sempre boa parte do quadro num negro profundo, os objetos e seres cambiando sob a luz bruxuleante das velas. Tudo acentua a atmosfera ameaçadora e imprevisível.


Um admirável longa-metragem de estreia, em suma. Duas últimas observações: A bruxa ganhou o prêmio de direção no festival Sundance; um de seus produtores é o brasileiro Rodrigo Teixeira, que, coproduziu, entre outros filmes significativos, o brasileiro Quando eu era vivo, de Marco Dutra, e o francês Love, de Gaspar Noé.

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