domingo, 27 de março de 2016

O que você nunca soube sobre a escravidão moderna e jamais ficaria sabendo


Por Sebastião Nunes

Ivanildes Pereira da Silva mora nos cafundós da periferia e pula da cama às 5 horas para chegar ao trabalho às 7. Chega, bota avental, varre o chão da lanchonete, abre as portas e começa a fritar pastéis, coxinhas e quibes. Cartazetes anunciam: “6 pastéis por R$3,00”. “1 refresco e 3 pastéis por R$3,00”. Etc. Até 11 horas, quando almoça no “a quilo” em frente, fritou mais ou menos 350 pastéis, 280 coxinhas e 120 quibes. Recomeça às 12 e vai até às 16. Como muitos fregueses almoçam mesmo é salgado com refresco, o movimento aumenta bastante entre meio-dia e uma da tarde. Quando vai embora, depois de ceder o lugar a Francisca Oliveira dos Santos, terá fritado uma média de 700 pastéis, 560 coxinhas e 240 quibes. Trabalhando cerca de 26 dias por mês (folga às quartas-feiras), sua produção mensal de frituras é aproximadamente a seguinte:

Pastéis: 18.200 unidades

Coxinhas: 14.560 unidades

Quibes: 6.240 unidades

Total: 39.000 frituras/mês

Se não brigar com o patrão, não for suspensa por atraso, não perder o emprego por doença, terá totalizado depois de um ano a produção das seguintes frituras:

Pastéis: 218.400 unidades

Coxinhas: 174.720 unidades

Quibes: 74.880 unidades

Total: 468.000 frituras/ano

UMA VIDA DE DEDICAÇÃO

Quase certamente Ivanildes morrerá antes de se aposentar. Mas vamos supor que, por um desses acasos improváveis, consiga aguentar os anos de serviço exigidos das mulheres. Pulando de lanchonete em lanchonete, ganhando sempre o mesmo salário de empregada sem qualificação, perderá os dentes, a saúde e a beleza – se é que teve alguma –, mas não perderá o trabalho. E então, depois de 30 anos fritando pastel, coxinha e quibe, chegará o dia tão sonhado em que poderá ir para casa, sem horário, sem patrão e sem fedor de gordura queimada nos cabelos, na pele e nas roupas.

Estará encerrada sua vida produtiva. Não importa se casou, se teve filhos. Suas doenças não contam, nem suas opiniões, ideias, palpites. Quase certamente não teve tempo de pensar. Quando precisou votar, votou em quem era mais bonito ou ria com mais dentes. Namorou com certeza, foi talvez um bicho saudável na cama, quem sabe amou e foi amada. Algumas vezes, foi feliz; outras, infeliz. Até que certo dia, como acontece na vida de pobres e de ricos, aquela dorzinha persistente aumentou, aumentou – e não teve santo que desse jeito. Parentes e amigos no velório? Dois ou três gatos-pingados. Enterro miserável, poucas flores, meia dúzia de lágrimas, nenhuma saudade.

LOUVOR DE IVANILDES

Batalhadora incansável, Ivanildes Pereira da Silva foi exemplo de esforço, tenacidade e amor ao trabalho. Durante 30 longos anos, matou a fome de milhões, incontáveis milhões, que degustavam seus pastéis, suas coxinhas e seus quibes. Quantas vezes, olhando de esguelha, não surrupiou disfarçadamente um pastel para contentar aquele pivetinho que olhava faminto a vitrine embaçada? E quantas outras vezes não empurrou um copo de refresco para a velhinha que, escorando-se na porta, suava e tremia? Assim foi Ivanildes. Humilde exemplo de estoicismo, tão grande como as maiores heroínas antigas ou modernas, é um exemplo para todas as mulheres e – por que não? – para todos os homens. Não fez sucesso na TV, não gravou discos, não pintou quadros, não escreveu livros. Muito menos pintou discos, escreveu quadros, gravou livros. No entanto, ao cabo de 30 anos, sua vida representa – aos olhos de quem sabe ver – uma admirável carreira, digna dos maiores heróis antigos ou modernos, de Alexandre a Napoleão, de Anita Garibaldi a Teresa de Calcutá, de Tiradentes a Gandhi.

Na ponta do lápis, tim-tim por tim-tim, qual dos colossos acima seria capaz de igualar sua vastíssima produção de bens comestíveis e baratos, que abaixo revelo, perplexo com tanta grandeza e tenacidade?

LEGADO IMATERIAL DE IVANILDES

Pastéis: 6.552.000 unidades

Coxinhas: 5.241.600 unidades

Quibes: 2.246.400 unidades

Total: 14.040.000 unidades, ou seja, mais de 14 milhões de pastéis, coxinhas e quibes fritos em lanchonetes vagabundas, em 30 longos anos de pobreza e escravidão, nestes magníficos tempos de riqueza, biologia molecular e shoppings maravilhosos.

Ilustração: colagem sobre “Negra com turbante”, foto de Alberto Henschel (1827-1882)

Via – Jornal GGN

Nenhum comentário:

Postar um comentário