sexta-feira, 22 de abril de 2016

As duas mortes de Tiradentes

Em nome de um liberalismo a serviço da Inglaterra, D. Maria, a Louca, proibiu o funcionamento de fábricas no Brasil e enforcou Tiradentes. Há 224 anos...


Por José Carlos Ruy

D. Maria I, “A Louca”, rainha de Portugal, tomou duas medidas radicais referentes ao Brasil que, além de intimamente ligadas, evocam temas que continuam perfeitamente atuais em nosso tempo: a primeira delas foi o decreto de 1785, que proibiu o funcionamento de fábricas no Brasil, e mandou apreender as máquinas e desmontar as fábricas eventualmente existentes. A outra foi a sentença de morte contra Tiradentes, como punição exemplar por sua participação na Inconfidência Mineira, executada em 21 de abril de 1792.

O elo que liga esses dois acontecimentos de forma indissolúvel, e os remete ao presente, é a questão nacional, independentemente da consciência ou não que os personagens históricos tivessem dela.
Aquelas medidas de D. Maria, a Louca – que, ironicamente, foi declarada incapaz de exercer o governo, por doença mental, no mesmo ano da morte de Tiradentes – tinham o sentido claro de manter o Brasil nos quadros do sistema colonial, impedindo o seu crescimento econômico autônomo.

O ouro e os diamantes de Minas Gerais conseguiram manter o fôlego da economia portuguesa durante o século 18, mas quando a mineração começou a dar sinais de esgotamento, o reflexo de sua crise em Portugal foi o ressurgimento e aprofundamento das dificuldades econômicas.

Isso numa época de mudanças internacionais importantes: a revolução industrial inglesa criou as condições para o lançamento das bases mundiais do Império Britânico, e uma nova forma de imperialismo começava a se sobrepor ao velho colonialismo, do qual Portugal foi um dos principais representantes.

A ideologia liberal, que acompanhava a atividade dos industriais e comerciantes britânicos, dizia que os antigos monopólios comerciais – característicos do pacto colonial vigente até então – deviam ser eliminados, os entraves ao comércio internacional deviam ser destruídos, dando acesso livre, aos comerciantes britânicos, a todos os portos e mercados do mundo.

Foi a época em que apareceu a teoria das vantagens comparativas, sistematizada pelo economista David Ricardo, que previa uma divisão internacional do trabalho onde cada nação devia se dedicar à atividade econômica em que sua produtividade e eficiência fosse maior. E adquirir, no mercado mundial, os outros bens necessários ao consumo de seus povos. Uns produziam produtos industrializados (como a Inglaterra, que era então a “oficina do mundo”), outros produziam alimentos, outros ainda forneciam matérias-primas para o mercado mundial. E com isso, dizia aquela teoria (reabilitada em nosso tempo pelos defensores do neoliberalismo e da modernização conservadora), todos seriam felizes.

Aquela época, como agora, conheceu uma redefinição profunda do cenário mundial. Gestava-se então o mundo moderno, dominado pelo industrialismo, pela doutrina dos direitos dos homens, e pelas primeiras formas democrático-burguesas de governo.

Aquelas mudanças foram completadas com dois outros acontecimentos de alcance mundial.

O primeiro deles foi a revolução americana, iniciada em 1776 com a proclamação da Independência dos Estados Unidos, e completada em 1788, com o reconhecimento da independência pela Inglaterra.

O outro foi a revolução francesa de 1789, onde a plebe de Paris e as massas camponesas das províncias francesas varreram os privilégios feudais, a monarquia absoluta e a aura sagrada que havia em torno dos reis, eliminada pelos golpes da guilhotina que executaram Luiz XVI e Maria Antonieta.

Essa situação internacional refletiu-se no Brasil em toda a sua complexidade.

A economia mineradora criou, pela primeira vez, uma plutocracia urbana sofisticada, culta, que acompanhava de perto as mudanças mundiais. As ideias francesas tiveram forte impacto entre seus membros – principalmente as ideias dos reformistas aristocráticos que pretendiam substituir o absolutismo por alguma forma de monarquia constitucional.

Tomás Antônio Gonzaga, o poeta conspirador, membro da equipe de notáveis que, se a conspiração prosperasse, seria o redator da Constituição da nova Nação, e ocuparia a chefia do governo provisório, tinha ideias políticas talvez mais atrasadas do que os constitucionalistas franceses. Na década de 1780, ele escreveu um tratado sobre a lei natural onde dizia que democracia era o pior sistema de governo: “constituem ao Rei como mandatário, obrigado a dar contas ao povo, como seu mandante”. Suas reservas à democracia tinham ainda como base o direito divino dos reis: “o Rei é um Ministro de Deus” e o fim “para que ele se pôs é a utilidade do seu povo”.

Além disso, diz o historiador Kenneth Maxwell (de cuja obra foi extraída a referência a Gonzaga), “até onde as provas o revelam”, nem mesmo a palavra democracia chegou a ser usada pelos conspiradores.

Naquela época, os conspiradores mineiros pareciam interessados em não perder o bonde da história, como se diz hoje, e aproveitar a conjuntura internacional para eliminar os entraves colonialistas que impediam nosso desenvolvimento político, econômico e social.

O exemplo da Independência dos Estados Unidos parecia animar projeto semelhante em muitos espíritos e os conspiradores chegaram mesmo a fazer gestões para obter seu apoio ao projeto emancipatório.

O apoio britânico também era esperado. Kenneth Maxwell diz que José Álvares Maciel, quando estudante em Coimbra, em 1788, discutira “a possibilidade da independência do Brasil com homens de negócios da Inglaterra, que lhe mostraram que o fato da América portuguesa deixar de seguir o exemplo dos norte-americanos era visto com surpresa, e que qualquer iniciativa contra o domínio português teria o imediato apoio dos empresários britânicos”.

Ainda não se podia falar, há mais de 200 anos, em consciência nacional no sentido moderno dessa expressão – a consciência de se pertencer a uma pátria comum, a um mesmo povo, com uma cultura comum, em um mesmo território e com a economia partilhada por todos, que hoje faz do Brasil uma nação integrada, do Amapá ao Rio Grande do Sul.

Ao contrário, há duzentos anos o sentimento regionalista era muito forte, embora os revolucionários mineiros pensassem que seu movimento só teria êxito caso São Paulo e Rio de Janeiro aderissem.

O forte sentimento autonomista e anticolonialista dos inconfidentes, ligado à defesa de seus interesses econômicos ameaçados pela Coroa portuguesa, levou-os a definir um programa de modernização que, embora social e politicamente conservador, poderia ter iniciado a criação de uma nação moderna.

Ao contrário dos pregoeiros modernos do neoliberalismo e da modernidade conservadora, aqueles revolucionários procuraram demarcar com clareza a distinção entre seus interesses e os interesses antinacionais das potências estrangeiras.

A maioria dos líderes mineiros tinha motivações pessoais para sua ação anticolonialista. Alvarenga Peixoto, por exemplo, “em 1788 estava diante de uma situação crítica”, ameaçado, inclusive, por uma ação que corria contra ele na Junta do Comércio de Lisboa, pela cobrança de uma dívida de 11 mil contos de réis, uma fortuna para a época.

As dívidas moviam à conspiração outra categoria de gente: a dos contratantes dos dízimos. Eram particulares contratados pelo governo para cobrar impostos. Em Minas, cabia-lhes recolher as taxas cobradas aos mineradores; posteriormente deviam prestar contas à Fazenda Real, o que não acontecia com regularidade, gerando assim suas dívidas. Eles eram particularmente interessados no rompimento com Portugal. Domingos de Abreu Vieira, por exemplo, era um contratante intimamente ligado a muitos oligarcas mineiros; ele tinha uma dívida superior a 197 mil contos de réis. João Rodrigues de Macedo, cuja mansão em Vila Rica era um ativo centro da conspiração, e Joaquim Silvério dos Reis, também eram grandes contratantes, com dívidas enormes. Macedo, por exemplo, devia uma soma oito vezes superior a seu ativo.

Padres como José da Silva de Oliveira Rolim e Carlos Correa de Toledo e Melo cobiçavam as vantagens pecuniárias que anteviam com a emancipação.

Rolim era um latifundiário, traficante de escravos e diamantes e usurário no Distrito Diamantino; ele “foi denunciado”, diz Maxwell, “à Fazenda pelo juiz investigador Cruz e Silva” e era apontado como exemplo da ostensiva corrupção reinante entre os influentes caixas locais do governo. Toledo também era um rico e ambicioso proprietário de terras e escravos.

Militares nascidos no Brasil, como Francisco de Paula Freire de Andrade ou Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, não conseguiam progredir em suas carreiras, preteridos por concorrentes portugueses que tinham a preferência nas promoções. Freire de Andrade era oficial da Companhia dos Dragões, sendo frequentemente deixado para trás nas promoções feitas pelo governo português. Tiradentes, por sua vez, nunca conseguiu passar do posto de alferes.

Tiradentes pode ser considerado um típico representante da camada urbana intermediária que se desenvolveu nas cidades da região das minas. “Joaquim José da Silva Xavier foi, em toda a conspiração de Minas Gerais, um dos únicos – se não o único – destituídos de posses e riquezas”, dizem os historiadores Ricardo Maranhão e Antônio Mendes Jr. “Pertencia à ‘classe média’ pobre da Capitania, sendo obrigado a exercer vários ofícios ao mesmo tempo, para sobreviver. Foi mascate, ‘dentista’ (o que lhe deu o apelido) e soldado do regimento de cavalaria, onde não passou do posto de alferes (espécie de sub-oficial) devido à discriminação contra os brasileiros, que raramente chegavam ao oficialato. Também não era culto e ’letrado’, como a maioria dos seus companheiros. Mas tinha o que nenhum deles podia oferecer à conjura: a postura do grande agitador político, do líder revolucionário, do ‘homem de massas’. Sua atividade e capacidade de trabalho eram espantosas. Enquanto seus companheiros discutiam questões teóricas, ele agia, procurando aliados, fazendo propaganda, viajando para outras capitanias, sondando as possibilidades”.

O programa da Inconfidência refletia as contradições dessa composição social, prevendo a satisfação de múltiplos interesses. Refletia, por um lado, as dificuldades econômicas que haviam afastado muitos magnatas da coroa, “forçando-os no rumo da revolução”. Por outro lado, essa conjura de oligarcas catalisou o descontentamento de outras camadas a que, hoje, se poderia chamar de classe média letrada, formada principalmente de profissionais liberais, magistrados, advogados e do clero, sensíveis às ideias francesas de legalidade constitucional, e ao exemplo norte-americano de Independência e formação de uma república constitucional.

O programa dos rebeldes mineiros previa o fim da proibição de atividades econômicas no Distrito Diamantino e, principalmente, a anistia das dívidas com a Fazenda Real. Além disso, seria criada uma Casa da Moeda cujas emissões seriam lastreadas pelo ouro que, previa-se, seria proibido de deixar a República. Previa-se também a implantação de manufaturas, o estímulo à exploração dos depósitos de minério de ferro, a criação de uma fábrica de pólvora, a criação de uma Universidade em Vila Rica, a restrição ao direito de os padres cobrarem o dízimo (em contrapartida a essa cobrança, eles deviam prestar serviços nas áreas de saúde, educação e assistência social), o incentivo à natalidade, a abolição nas distinções e restrições no vestuário, a obrigatoriedade de uso de produtos manufaturados localmente. Do ponto de vista político, previa-se a formação de um governo republicano provisório, chefiado por Gonzaga, com a duração de três anos, ao fim do qual os governos passariam a ser eleitos a cada três anos. Os direitos políticos somente eram extensivos aos homens livres, e os escravos, evidentemente, ficavam de fora da cidadania.

Cada cidade teria seu parlamento, subordinado ao parlamento principal sediado na capital, e o exército permanente seria abolido (e seu lugar ocupado por cidadãos armados que, quando necessário, deveriam servir na milícia nacional).

Finalmente, encontraram uma solução de compromisso para a questão da escravidão, tema de controvérsia entre os conjurados. Tiradentes declarava-se abolicionista, enquanto outros conspiradores temiam o comportamento dos escravos. Maciel, por exemplo, disse em seu depoimento: “sendo o número dos homens pretos e da escravatura no país muito superior ao dos brancos, toda e qualquer revolução que aqueles pressentissem nestes seria certo motivo para que eles mesmos se rebelassem” (citado por Clóvis Moura).

A solução que o sargento Luís Vaz de Toledo pregava para isso era a abolição. “Um negro com uma carta de alforria na testa se deitava a morrer”, disse ele. “O certo, porém”, diz Clóvis Moura, “é que a abolição da escravatura não figurou como ponto programático na Inconfidência”.

Segundo Kenneth Maxwell a solução de compromisso a que se chegou, equacionando os interesses dos proprietários de escravos com a segurança do Estado, foi a liberdade apenas para os negros e mulatos nascidos no território da nova república.

A revolução almejada, contudo, não chegou a sair dos planos. Sua história é por demais conhecida. Joaquim Silvério dos Reis, em troca do perdão de sua dívida com a Fazenda Real, delatou seus companheiros. As prisões se sucederam, os conspiradores foram processados, e as autoridades coloniais prepararam um grande espetáculo público para o enforcamento de Tiradentes, no dia 21 de abril de 1792. Pretendiam uma grande demonstração de força para eliminar, pela raiz, qualquer veleidade autonomista e toda oposição não só ao pacto colonial, mas também ao regime monárquico em Portugal.

Seu êxito, entretanto, foi precário. A própria dinâmica dos acontecimentos europeus, conjugada com a luta dos nacionalistas brasileiros, levaria poucas décadas mais tarde à Independência do país.

“A revolta planejada não se materializara”, diz Maxwell, “mas isto não escondia o fato de que um importante segmento do grupo social em que o governo metropolitano devia confiar para exercer seu poder em nível local, numa das mais importantes, populosas, ricas e estrategicamente bem situadas capitanias brasileiras, tinha tido o atrevimento de pensar que podia viver sem Portugal. (…) Jamais o status quo anterior seria restabelecido”.

As contradições de classe que existiam entre os conspiradores, e que provavelmente explodiriam se de fato chegassem ao poder, tiveram uma ocasião menos nobre para manifestar-se. Elas tornaram-se visíveis nas declarações de júbilo e de fidelidade à Rainha quando os condenados tiveram conhecimento da comutação das penas de morte de todos os conjurados ricos em degredos perpétuos para a África.

Em contrapartida, Tiradentes, o lado popular da articulação, teve mantida sua cruel pena de enforcamento, esquartejamento e exposição pública dos pedaços de seu corpo nos locais onde pregou a possibilidade e a necessidade de o país livrar-se do jugo português.

Ele teve um comportamento heroico diante da morte, como até mesmo testemunhas oficialistas como o padre confessor que o acompanhou nos últimos momentos tiveram que reconhecer. Esse comportamento, eivado do misticismo próprio da época, criou a lenda que, depois da Monarquia, quase cem anos após sua morte, transformou-o em Patriarca da Independência e herói máximo do ideal republicano.

Aquela foi sua primeira morte. Hoje, mais de duzentos anos depois, Tiradentes talvez sofresse uma segunda morte, quando grande parte da elite conservadora e reacionária compactua com o imperialismo da mesma forma como, no passado, compactuou com D. Maria, a Louca.

Bibliografia

Maranhão, Ricardo e Mendes Jr., Antônio, “Um Homem do Povo na Forca”. Jornal Bloco, nº 1, 1º de maio de 1979.

Maxwell, Kenneth. A Devassa da Devassa – A Inconfidência Mineira: Brasil e Portugal, 1750-1808. Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 1977.

Moura, Clóvis. “Inconfidência Mineira, Uma Utopia Republicana”. In Movimento, nº 95, 25 de abril de 1977.

A partir do artigo publicado originalmente na revista Princípios, nº 25, 1992



Nenhum comentário:

Postar um comentário