O Brasil conta com uma longa tradição de autores a que se
costuma dar o nome de Intérpretes do Brasil - nomes do quilate de Gilberto
Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior, cujas análises foram
publicadas nas décadas de 1930 e 1940. Há ainda outros, de obras um pouco
posteriores, como Antonio Candido, Raymundo Faoro, Celso Furtado, Florestan
Fernandes e Jacob Gorender. E há, finalmente, ensaios mais recentes, como os de
Alfredo Bosi e de Jessé Souza, novas leituras já consagradas do que se pode
chamar de experiência brasileira - o cotidiano em que, de maneira geral, se
manifestam as nossas especificidades econômicas, sociais, políticas e culturais
sempre em associação com a condição primeva de colônia, no nascedouro do
capitalismo e de sua internacionalização.
Poucos serão os brasileiros, entretanto, que discordarão da
hipótese de que as melhores expressões dessa experiência não são acadêmicas -
como o são todas as obras elencadas acima - mas artísticas. A questão é
polêmica, e não pretendo dá-la por encerrada aqui, mas não será exagero afirmar
que talvez a experiência brasileira esteja sintetizada de maneira mais bem
acabada num romance de Machado de Assis, numa composição de Noel Rosa ou no
gingado e nos dribles de Garrincha.
Daí a hipótese, sem a intenção de investigá-la a fundo neste
texto, mas que talvez possa orientar muita pesquisa acadêmica e muito projeto artístico:
não haverá também uma interpretação do Brasil no conjunto da obra de grandes
artistas brasileiros?
É evidente que não sou o primeiro a formular essa hipótese.
Em Machado de Assis: Ficção e História, o pesquisador inglês John Gledson fez
história na crítica literária ao afirmar que é possível identificar na obra da
maturidade de Machado de Assis o projeto de "retratar a natureza e o
desenvolvimento da sociedade em que vivia". E se assim é, por que não
afirmar - e acredito que seja possível fazê-lo - que é Machado de Assis um
intérprete do Brasil, como aqueles apontados acima?
Não acredito apenas que seja possível que Machado seja um
dos intérpretes mais argutos da sociedade brasileira, como também defendo que a
literatura e as outras artes têm pelo menos uma vantagem em relação às
pesquisas acadêmicas. Estas são quase sempre delimitadas por campos de estudo
específicos. De maneira geral os estudos dos intérpretes tradicionais assumem
uma linha de pesquisa que não deve e nem pode abarcar a experiência brasileira
como um todo.
A linguagem artística, ao contrário, nos seus raros e
melhores momentos, tenderá a sintetizar na obra núcleos de experiência que
talvez não caibam nos texto acadêmicos nem sejam adequadas a eles. Dizendo de
maneira fácil: toda a carga da experiência brasileira parece vibrar nas grandes
obras da nossa arte. É o caso de considerá-las também interpretações do Brasil
e de tratar de mergulhar-lhes na linguagem, de modo a deslindar aqueles
núcleos, apenas sugeridos nas obras da academia.
Tudo é questão de ponto de vista. Por isso, para muitos
pesquisadores, talvez seja exagero dizer que o Brasil mudou nos últimos dez
anos. Mas acredito que nenhum deles dirá que nada mudou no Brasil nesse período
- em que muito mais gente teve acesso aos bens de consumo, à universidade, à
casa própria e às viagens de avião. Nesse contexto, a fratura causada pelas
manifestações de 2013 teve uma consequência única: trouxe de volta às
prateleiras das editoras, às salas de aula e às conversas de botequim as
interpretações do Brasil, das primeiras às mais recentes, devido ao desejo dos
leitores de entender o Brasil, como não se via há bastante tempo. Sem dúvida, é
de celebrar esse olhar crítico, que terá muito a ganhar com as contribuições
dos artistas brasileiros.
Carlos Rogerio Duarte Barreiros é doutor em Literatura
Portuguesa pela Universidade de São Paulo e professor convidado na Fundação
Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP).
Via – Jornal GGN
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