terça-feira, 26 de abril de 2016

Interpretar o Brasil pela arte


Por *Carlos Rogerio Duarte Barreiros

O Brasil conta com uma longa tradição de autores a que se costuma dar o nome de Intérpretes do Brasil - nomes do quilate de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior, cujas análises foram publicadas nas décadas de 1930 e 1940. Há ainda outros, de obras um pouco posteriores, como Antonio Candido, Raymundo Faoro, Celso Furtado, Florestan Fernandes e Jacob Gorender. E há, finalmente, ensaios mais recentes, como os de Alfredo Bosi e de Jessé Souza, novas leituras já consagradas do que se pode chamar de experiência brasileira - o cotidiano em que, de maneira geral, se manifestam as nossas especificidades econômicas, sociais, políticas e culturais sempre em associação com a condição primeva de colônia, no nascedouro do capitalismo e de sua internacionalização.

Poucos serão os brasileiros, entretanto, que discordarão da hipótese de que as melhores expressões dessa experiência não são acadêmicas - como o são todas as obras elencadas acima - mas artísticas. A questão é polêmica, e não pretendo dá-la por encerrada aqui, mas não será exagero afirmar que talvez a experiência brasileira esteja sintetizada de maneira mais bem acabada num romance de Machado de Assis, numa composição de Noel Rosa ou no gingado e nos dribles de Garrincha.

Daí a hipótese, sem a intenção de investigá-la a fundo neste texto, mas que talvez possa orientar muita pesquisa acadêmica e muito projeto artístico: não haverá também uma interpretação do Brasil no conjunto da obra de grandes artistas brasileiros?

É evidente que não sou o primeiro a formular essa hipótese. Em Machado de Assis: Ficção e História, o pesquisador inglês John Gledson fez história na crítica literária ao afirmar que é possível identificar na obra da maturidade de Machado de Assis o projeto de "retratar a natureza e o desenvolvimento da sociedade em que vivia". E se assim é, por que não afirmar - e acredito que seja possível fazê-lo - que é Machado de Assis um intérprete do Brasil, como aqueles apontados acima?

Não acredito apenas que seja possível que Machado seja um dos intérpretes mais argutos da sociedade brasileira, como também defendo que a literatura e as outras artes têm pelo menos uma vantagem em relação às pesquisas acadêmicas. Estas são quase sempre delimitadas por campos de estudo específicos. De maneira geral os estudos dos intérpretes tradicionais assumem uma linha de pesquisa que não deve e nem pode abarcar a experiência brasileira como um todo.

A linguagem artística, ao contrário, nos seus raros e melhores momentos, tenderá a sintetizar na obra núcleos de experiência que talvez não caibam nos texto acadêmicos nem sejam adequadas a eles. Dizendo de maneira fácil: toda a carga da experiência brasileira parece vibrar nas grandes obras da nossa arte. É o caso de considerá-las também interpretações do Brasil e de tratar de mergulhar-lhes na linguagem, de modo a deslindar aqueles núcleos, apenas sugeridos nas obras da academia.

Tudo é questão de ponto de vista. Por isso, para muitos pesquisadores, talvez seja exagero dizer que o Brasil mudou nos últimos dez anos. Mas acredito que nenhum deles dirá que nada mudou no Brasil nesse período - em que muito mais gente teve acesso aos bens de consumo, à universidade, à casa própria e às viagens de avião. Nesse contexto, a fratura causada pelas manifestações de 2013 teve uma consequência única: trouxe de volta às prateleiras das editoras, às salas de aula e às conversas de botequim as interpretações do Brasil, das primeiras às mais recentes, devido ao desejo dos leitores de entender o Brasil, como não se via há bastante tempo. Sem dúvida, é de celebrar esse olhar crítico, que terá muito a ganhar com as contribuições dos artistas brasileiros.

Carlos Rogerio Duarte Barreiros é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e professor convidado na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP).

Via – Jornal GGN

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