sábado, 9 de julho de 2016

Heróis da América: Carlos Dittborn, o chileno que fez tudo quando não havia nada

Este texto faz parte da série Heróis da América, que aborda jogadores, treinadores e dirigentes que fizeram história nos países latino-americanos, mas que nem sempre são bem conhecidos por aqui.


Por *Diego Freire

Selo homenageia Dittborn 
após sua morte
Em tempos de escândalos na Fifa é difícil imaginar a figura de um dirigente querido, considerado herói em seu país. Hoje pensamos em corrupção, superfaturamento e todo tipo de irregularidade quando é anunciada uma sede da Copa, mas há seis décadas, quando o Chile foi escolhido para receber o Mundial de 1962, esse processo funcionava de maneira mais autêntica e bem intencionada. Era uma época em que personagens como Carlos Dittborn construíam seu legado.

Filho de um diplomata, Dittborn nasceu no Rio de Janeiro em 1924, seis anos antes da realização da primeira Copa do Mundo. Ainda criança se mudou para Santiago, onde estudou no Colégio Sagrados Corazones, escola que formou futuros presidentes, empresários e escritores de prestígio. Seus estudos tiveram continuação na Universidade de Notre Dame, nos Estados Unidos, onde se formou em Construção Civil. Na década de 50, já consolidado como um profissional bem-sucedido, passou a dedicar cada vez mais tempo à  sua maior paixão: o futebol.

Após ocupar cargos menores, foi eleito presidente da Universidad Católica em 1953, conduzindo o clube ao título chileno no ano seguinte. Pouco depois assumiu a frente da Conmebol, sucedendo o conterrâneo Luís Valenzuela. Nessa condição, viajou o mundo defendendo a candidatura chilena para sediar o Mundial de 1962, projeto que tinha a concorrência de Alemanha Ocidental e Argentina, postulantes mais poderosos e influentes.

Nada favorecia o sonho chileno – dentre os interessados, o país era o mais pobre. Mesmo quando a Fifa oficializou que seu principal torneio seria na América do Sul (após duas edições na Europa), as possibilidades não aumentaram tanto. Os alemães desistiram, mas os argentinos seguiam como favoritos: eles se preparavam para receber uma Copa havia mais de 20 anos, quando entraram na disputa para sediar a edição de 1934 e, posteriormente, também a de 1942, cancelada por conta da Segunda Guerra Mundial. Somente uma imensa reviravolta poderia mudar o destino do torneio.

Antes de discursar no Congresso da Fifa,
Dittborn viajou o mundo divulgando a 
candidatura chilena.
Essa reviravolta se chamava Carlos Dittborn. Depois de anos usando sua influência e persuasão para manter a candidatura do Chile viva, o então presidente da Conmebol fez história definitivamente em 10 de junho de 1956, discursando no Congresso da Fifa em Lisboa.

Pouco antes, Raúl Colombo, representante da Federação Argentina de Futebol, finalizou sua apresentação com uma promessa de efeito: “podemos realizar o Mundial amanhã mesmo porque já temos tudo”.

Dittborn tomou a palavra na sequência e, em tom bastante franco, reconheceu que o país vizinho estava mais avançado, a ponto de brincar com a afirmação anterior. O dirigente chileno teria dito: “porque não temos nada, faremos tudo”.

A clássica frase é contestada por alguns historiadores, mas o poder da oratória daquele discurso não se questiona. Ele evitou comentar sobre estádios e infraestrutura, porém falou de estabilidade política (a Argentina havia passado por um golpe militar um ano antes) e exaltou as qualidades da sua terra.

Contrariando a maioria dos prognósticos, ao final do dia o Chile recebeu 32 votos, contra 11 argentinos, além de 14 abstenções. O improvável aconteceu: então com apenas 6 de milhões de habitantes e pouca relevância internacional, o isolado país teria seis anos para “fazer tudo” e receber uma Copa do Mundo.

A princípio, os planos geraram desconfiança até mesmo na população chilena. Ampliar a capacidade do Estádio Nacional de Santiago para 70 mil torcedores e construir novos campos no interior do país parecia muito audacioso, mas, aos poucos, o projeto foi ganhando crédito à medida em que as obras saíam do papel.

O espírito nacional era de grande euforia em 21 de maio de 1960, quando uma tragédia quase colocou tudo a perder.

Terremotos no sul do Chile em 1960
 estão entre os maiores desastres da história
Na manhã daquele sábado, um terremoto de 7,5 graus na escala Richter, acompanhado de outros sismos, destruiu a cidade de Concepción. Dois dias depois, um temor ainda maior, de 9,5 graus, atingiu Valdivia, devastando definitivamente o sul do país.  A série de eventos, que também gerou um tsunami no Oceano Pacífico e causou a erupção do vulcão Puyehue, representou um dos piores desastres naturais da história, com saldo de mais de cinco mil mortos e dois milhões de desabrigados.

A prioridade nacional deixou de ser o futebol e a realização da Copa voltou a ser encarada como algo improvável.

Mas Dittborn conseguiu liderar uma nova reviravolta. Com sua perseverança, recebeu uma doação de 20 mil dólares da Fifa e garantiu a manutenção do evento, embora com programação totalmente reformulada. 

Em meio a destroços, Talca, Concepción, Talcahuano e Valdivia foram descartadas como sedes, além das desistências de Antofagasta e Valparaíso, motivadas por questões financeiras. A saída foi buscar o apoio dos municípios de Rancagua, Viña del Mar e Arica, ainda em condições de se organizar em pouco tempo. A competição seria menor, com jogos apenas na capital e três outras sedes, mas aconteceria.

Seleção chilena estreou no Mundiial
com tarja preta abaixo do escudo
O país se reergueu e realizou um brilhante Mundial, porém o grande responsável por aquela conquista não viveu para aproveitá-lo. A 32 dias da partida inaugural, no dia 28 de abril de 1962, o ainda jovem Carlos Dittborn, com apenas 38 anos, morreu vítima de um ataque cardíaco. Seu funeral foi acompanhado emocionadamente por uma grande multidão, que reconheceu a bravura do dirigente.

Muitas homenagens ainda viriam depois. Os filhos de Dittborn içaram a bandeira nacional na cerimônia de abertura e o uniforme da seleção teve uma tarja preta abaixo do escudo no primeiro jogo.

O estádio de Arica, um dos construídos para o torneio, foi batizado Carlos Dittborn e uma copa amistosa disputada entre Chile e Argentina por 14 anos também recebeu seu nome.

Mais ainda, sua suposta frase no Congresso da Fifa permanece até hoje enraizada na cultura chilena como palavras de motivação diante de grandes desafios: “porque não temos nada, faremos tudo”.


*Diego Freire - Já escreveu profissionalmente sobre esportes para os portais Virgula e Terra, mas mudou de área e hoje mata as saudades do futebol colaborando com o UD. Tentou (sem sucesso) criar uma torcida do Linense na Austrália e teve a honra de escrever sobre Copa do Nordeste enquanto acontecia a Copa do Mundo 2010.

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