quinta-feira, 22 de setembro de 2016

A apreciação da denúncia contra Lula


Por *Sergio Sérvulo

Observe-se, de início, quão atípica é a denúncia formulada, contra o ex-presidente Lula, pelos 13 procuradores. Atípica, em primeiro lugar, pela sua extensão (149 páginas), e, em segundo lugar, porque grande parte dessas páginas não diz respeito, especificamente, ao objeto da denúncia; ou seja, grande parte dos fatos aí referidos, não tem apoio nas provas produzidas ou indicadas, mas em elementos extra-autos.

Dizem, os 13 procuradores, que esses elementos são referidos para “contextualizar” a denúncia. Acontece que, não sendo necessários à compreensão dos fatos indicados como criminosos, eles são despiciendos, impertinentes, e estranhos aos fins objetivos da denúncia.

Essa narrativa, entretanto, se faz em detrimento do denunciado, tentando envolve-lo na prática de crimes de que não é, ou não foi ainda formalmente acusado. Por exemplo: entidades que lhe são ligadas (o Instituto Lula, a L.I.L.S.) teriam recebido R$55.000.000,00 de empresas investigadas pela “Operação Lava Jato”; desses R$55.000.000,00, R$7.500.000 lhe teriam sido destinados pessoalmente.

Esse procedimento não se pode designar apenas como atípico: ele é ilegal, e injusto; ofende a dignidade do denunciado, rouba-lhe a oportunidade de defesa. Não honra, portanto, procuradores da República, membros de uma instituição à qual, dentre outras finalidades, cabe a defesa da democracia. À parte a inépcia da denúncia (quanto à segunda imputação), esse é o principal pelo motivo pelo qual ela deve ser liminarmente rejeitada pelo Juízo.

Mais do que ilegal, e insidiosa, a pretensa “contextualizão” revela a natureza política da peça acusatória. Como procuradores da República, e conhecedores do Direito, os autores da denúncia não ignoram as normas que protegem o arquivo documental dos ex-presidentes; nem ignoram que inexiste “propriedade de fato”; e sabem que, apesar da devassa que fizeram na vida pública e particular do ex-presidente, não conseguiram surpreendê-lo na prática de um único ato criminoso.

Por isso, ao invés de “contextualizar” os fatos, seu intuito é influenciar a opinião pública e formar a convicção do Juízo com base em elementos extra-autos. Com efeito, encontra-se nessa narrativa um amplo painel pretensamente histórico e científico sobre o governo Lula, passando pela sua eleição, as alianças que lhe deram sustentação, a natureza do “presidencialismo de coalização”, os apoios parlamentares que angariou, o escândalo do “mensalão”, as relações de amizade do ex-presidente com políticos que viriam a ser condenados por práticas de corrupção, e com empresários igualmente envolvidos nessas práticas. Tudo a indicar que, à falta de atos pessoais de corrupção, ele deve ser condenado segundo uma nova teoria criminal, que se poderia designar como “teoria da contaminação”.

O que, à falta de provas, se chamou de “convicção”, é, no fundo, predisposição contra o Partido dos Trabalhadores, e a intenção de exterminá-lo. É a mesma sub-reptícia intenção esboçada por um político catarinense que, num momento de descuido, deixou extravasar sua animosidade contra os petistas, aos quais se referiu, com supremo desprezo, como uma “raça” a ser varrida do cenário político.

Se o julgamento deverá ser político, peço licença para trazer, a estes autos públicos, outra contextualização, cujo principal eixo é a desigualdade e o teor profundamente discriminatório da sociedade brasileira, que tem início na colonização, acentua-se com a perseguição aos índios, exaspera-se com a escravidão do negro, culmina na questão social e o elitismo da república velha, e se debate na resistência ao que é novo; o novo que, brotando na década de (19)30, desabrocha na década de (19)60, e começa enfim a florescer a partir de 2003, quando um operário, nordestino e inculto, é eleito presidente da República.

Pertenço à geração que a ditadura militar impediu de fazer política. Em 1967 ingressei no MDB, e com o fim do bipartidarismo, filiei-me ao PSB. Quando, em 1988, esse partido me apresentou como candidato a vice-prefeito de Santos, em chapa liderada por Telma de Souza, do PT, um parente me advertiu: “- Sérgio, não se misture com essa gentinha.”

Mas eu já trilhava, desde a JUC, os mesmos caminhos percorridos por meu pai, que, não obstante tratado desde jovem, em sua casa, como “sinhozinho”, confraternizava com todas as pessoas, independentemente de sua raça e de sua condição social; que, tendo presidido a Congregação Mariana da Anunciação, onde se reuniam os jovens bem educados da elite santista, alguns anos depois, à frente do Sindicato dos Despachantes, aí acolheu o líder comunista Luiz Carlos Prestes. Foi assim: na campanha presidencial de 1945, em visita a Santos, Prestes não conseguiu da polícia a licença necessária à realização de seu comício.

A diretoria do Sindicato, então, permitiu que ele arengasse do balcão de sua sede, situada na praça da República. Outra lição inesquecível: meu pai tinha relações profissionais com uma importante família de banqueiros. Um dia ele me contou, com horror, o que tinha ouvido de um deles: “- Cunha, por quatrocentos réis, eu mato meu irmão”.

Assim como, seguindo seu exemplo, virei torcedor do Santos, também virei libertário.    

Por isso, minha contextualização da denúncia se faz a partir de Antonio Vieira, José Bonifácio, Luiz Gama, Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha, Gilberto Freire, o marechal Rondon, Sérgio Buarque de Holanda, Raimundo Faoro, Paulo Freire, Darcy Ribeiro, dom Helder Câmara, Florestan Fernandes, dom Paulo Evaristo Arns.

(Chega-me, neste momento, a notícia de que o juiz Moro, como se esperava, aceitou a denúncia. Isso é, em parte, o tema do próximo editorial).

*Sergio Sérvulo da Cunha é dvogado, autor de várias obras jurídicas. Foi procurador do Estado de São Paulo e chefe de gabinete do Ministério da Justiça. (site:  www.servulo.com.br).

Via – Jornal GGN

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