segunda-feira, 28 de novembro de 2016

O Fidel que conheci

O jornalista espanhol Ignacio Ramonet, diretor do Le Monde Diplomatique em espanhol e autor, junto com o próprio Fidel, do imbatível Fidel Castro: biografia a duas vozes, divulgou neste sábado (26) o seguinte testemunho sobre o líder e ex-presidente cubano.


O livro é amplamente considerado o testamento político de Fidel Castro. Clique aqui para ler o texto de apresentação dele à biografia, disponibilizado integralmente no Blog da Boitempo.

O Fidel que conheci

Por *Ignacio Ramonet:

Fidel faleceu, mas é imortal. Poucos homens conheceram a glória de se tornar lenda e entrar para a História ainda vivos. Fidel é um deles. Pertenceu à geração dos insurgentes míticos (Nelson Mandela, Patrice Lumumba, Amilcar Cabral, Che Guevara, Camilo Torres, Turcios Lima, Ahmed Ben Barka) aqueles que perseguiram um ideal de justiça e se lançaram à ação política, naqueles já distantes Anos 50, com a ambição e a esperança de mudar um mundo de desigualdades e de discriminações, marcado pelo começo da Guerra Fria entre a União Soviética e os Estados Unidos.

Por Ignácio Ramonet

Naquela época, em mais da metade do planeta – no Vietnã, na Argélia, em Guiné-Bissau –, os povos oprimidos se sublevavam. A humanidade ainda estava, em grande parte, submetida à infâmia da colonização. Quase toda a África e em grande parte da Ásia ainda eram dominadas, avassaladas pelos velhos impérios ocidentais, enquanto as nações da América Latina – a maioria, em teoria, independentes há um século e meio –, seguiam sendo exploradas por privilegiadas minorias, submetidas à discriminação social e étnica, e muitas delas marcadas por ditaduras cruéis amparadas por Washington.

Fidel suportou as investidas de dez presidentes estadunidenses (Eisenhower, Kennedy, Johnson, Nixon, Ford, Carter, Reagan, Bush pai, Clinton e Bush filho). Teve relações com os principais líderes que marcaram o mundo depois da II Guerra Mundial (Nehru, Nasser, Tito, Jrushov, Olaf Palme, Ben Bella, Boumedienne, Arafat, Mandela, Indira Gandhi, Salvador Allende, Hugo Chávez, Lula da Silva, Brezhnev, Gorbachov, Mitterrand, João Paulo II, o rei Juan Carlos, etc.). Conheceu alguns dos principais intelectuais e artistas do seu tempo (Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Arthur Miller, Pablo Neruda, Jorge Amado, Rafael Alberti, Guayasamin, Cartier-Bresson, José Saramago, Gabriel García Márquez, Eduardo Galeano, Noam Chomsky, etc.).

Sob sua direção, seu pequeno país (de 100 mil quilômetros quadrados e 11 milhões de habitantes) impulsou uma política de grande potência de escala mundial, desafiando os Estados Unidos, país que durante décadas tentou mas não conseguiu derrubá-lo, nem eliminá-lo, e tampouco modificar o rumo da Revolução Cubana – finalmente, em dezembro de 2014, tiveram que admitir o fracasso de suas políticas anticubanas, uma de suas grandes derrotas diplomáticas, e iniciar um processo de normalização que implicava em respeitar o sistema político cubano.

Em outubro de 1962, a III Guerra Mundial esteve a ponto de começar devido à atitude do governo dos Estados Unidos, que protestava contra a instalação de mísseis nucleares soviéticos em Cuba, cuja função eram, sobretudo, impedir outro desembarque militar como o de Bahia dos Porcos, desta vez realizado pelas Forças Armadas estadunidenses, para derrocar o novo governo nascido a partir da Revolução Cubana.

Há mais de 50 anos, Washington impõe a Cuba um devastador embargo comercial – reforçado nos Anos 90 pelas leis Helms-Burton e Torricelli –, que se mantém apesar do restabelecimento das relações diplomáticas e obstaculiza o normal desenvolvimento econômico da ilha e traz brutais consequências para os seus habitantes. Washington insiste também numa guerra ideológica e midiática permanente contra Havana, através das potentes Rádio “Martí” e TV “Martí”, instaladas na Flórida, que vivem de inundar Cuba de propaganda anticastrista, assim como nos piores tempos da Guerra Fria.

Também existem várias organizações terroristas hostis ao regime cubano – como Alpha 66 e Omega 7 –, todas elas com sede na Flórida, que possuem campos de treinamento onde preparam agentes que são enviados regularmente, com a cumplicidade passiva das autoridades estadunidenses, e que são basicamente comandos armados para cometer atentados. Cuba é um dos países que mais contabiliza vítimas de atentados terroristas nos últimos 60 anos: ao menos 3,5 mil mortos.

Diante de tantos e tão permanentes ataques, as autoridades cubanas fortaleceram a união dentro do país. Aplicaram, à sua maneira, o velho lema de Santo Inácio de Loyola: “Numa fortaleza assediada, toda dissidência é traição”. Porém, nunca houve, até a morte de Fidel, nenhum culto à personalidade: nem retrato oficial, nem estátua, nem selo, nem moeda, nem rua com seu nome, nem edifício, nem monumento à sua figura, assim como a de nenhum dos líderes vivos da Revolução.

Cuba é um pequeno país apegado à sua soberania, que obteve, sob a condução de Fidel Castro e apesar da permanente hostilidade exterior, resultados excepcionais em matéria de desenvolvimento humano: abolição do racismo, emancipação da mulher, erradicação do analfabetismo, redução drástica da mortalidade infantil, elevação do nível cultural geral… Em aspectos como educação, saúde, investigação médica e formação para os esportes, Cuba exibe níveis que situam no grupo das nações mais bem sucedidas do mundo.

Sua diplomacia se tornou uma das mais ativas do mundo. Nos Anos 60 e 70, Havana apoiou o combate das guerrilhas em muitos países da América Central (El Salvador, Guatemala e Nicarágua) e na América do Sul (Colômbia, Venezuela, Bolívia e Argentina). As Forças Armadas cubanas participaram em campanhas militares de grande envergadura, especialmente nas guerras da Etiópia e de Angola – neste último caso, sua intervenção se transformou numa derrota das tropas militares de elite da República da África do Sul, o que acelerou de maneira indiscutível o enfraquecimento daquele país e abriu caminho para a queda do regime racista do apartheid.

A Revolução Cubana, que tinha em Fidel Castro seu inspirador, o teórico e o líder político, ainda é, até hoje, uma importante referência para milhões de flagelados do planeta, graças às suas conquistas sociais e apesar de suas carências. Aqui na América Latina e em muitas outras partes do mundo, mulheres e homens protestam e lutam, e muitos morrer tentando estabelecer regimes inspirados pelo modelo cubano.

A queda do muro de Berlim e a desaparição da União Soviética, junto com o fracasso histórico do socialismo de Estado, não modificaram o sonho Fidel Castro de instaurar em Cuba uma sociedade diferente, mais justa, mais saudável, melhor educada, sem privatizações nem discriminações de nenhum tipo, e com uma cultura global total.

Até a véspera do seu falecimento, aos 90 anos, Fidel se mantinha mobilizado na defesa da ecologia e do meio ambiente, e contra a globalização neoliberal. Seguia na trincheira, na primeira linha, conduzindo a batalha pelas ideias que ele defendia, pelas quais nada nem ninguém o fez renunciar.

No panteão mundial consagrado àqueles que lutaram com mais empenho pela justiça social e que mais esbanjaram solidariedade a favor dos oprimidos da Terra, há um lugar reservado para Fidel Castro – por mais que isso incomode os seus detratores.

Eu o conheci pessoalmente em 1975, e tive o prazer de conversar com ele em inúmeras ocasiões, embora sempre em circunstâncias profissionais e bastante precisas: para alguma reportagem que realizava na ilha ou durante algum evento específico. Quando decidi escrever o livro Fidel Castro: biografia a duas vozes, ele me convidou a acompanhá-lo durante dias, numa viagem a diversos lugares, tanto em Cuba (Havana, Holguín, Santiago de Cuba) como em outros países (como o Equador). Viajamos de carro, de avião, caminhamos, almoçamos, e encontramos tempo para longas conversas, sem gravadora, onde abordamos todos os temas possíveis, desde as notícias do dia, passando por suas experiências passadas, até suas preocupações presentes. Conversas que eu reconstruía horas depois em meus cadernos. Durante três anos, nós nos víamos com certa frequência, nos juntávamos durante alguns dias ao menos uma vez por trimestre.

Assim, descobri um Fidel íntimo. Quase tímido. Muito educado. Escutando com atenção cada interlocutor. Sempre atento aos demais, em particular os seus colaboradores mais próximos. Nunca escutei dele uma palavra mais alta que outra. Nunca uma ordem. Com modos e gestos de uma cortesia típica de outros tempos. Um cavalheiro. Com um alto sentido de pudor. Alguém que vive, pelo que pude apreciar, de forma espartana. Mobiliário austero, comida leve. Modos de vida de monge-soldado.

Sua jornada de trabalho costumava terminar às seis ou sete da madrugada, quando o dia despertava. Mais de uma vez interrompia nossas conversas de madrugada porque devia participar de uma “reunião importante”. Dormia apenas quatro horas – mais, de vez em quando, cochilava uma ou duas horas em algum momento do dia.

Também era um grande madrugador. E incansável. Viagens, reuniões, uma após a outra, sem trégua. Um ritmo insólito. Seus assessores – todos jovens e brilhantes, de pouco mais de 30 anos – terminavam o dia exaustos. Pareciam dormir de pé. Esgotados. Incapazes de seguir o ritmo desse infatigável gigante.

Fidel pedia notas, informes, notícias, estatísticas, resumos de emissões de televisão ou de rádio, ligações telefônicas… Não parava de pensar, de matutar. Sempre alerta, sempre em ação, sempre na cabeça de um pequeno Estado maior – constituído por seus assessores e ajudantes –, preparando uma nova batalha. Sempre com ideias. Pensando no impensável. Imaginando o inimaginável. Com um atrevimento mental espetacular.

Uma vez definido um projeto. Nenhum obstáculo podia detê-lo. Ele trabalhava incansavelmente até realizá-lo. Seu entusiasmo inspirava a adesão dos que o conheciam. Despertava vontades. Quase como um fenômeno mágico, ele fazia as ideias se materializara, se tornarem fatos concretos, palpáveis, coisas, acontecimentos.

Sua capacidade retórica, tantas vezes descrita, era prodigiosa. Fenomenal. Não falo de seus discursos públicos, bem conhecidos, mas sim das simples conversações de sobremesa. Fidel era uma torrente de palavras. Uma avalanche, que acompanhava a também eloquente gestualidade de suas finas mãos.

Ele gostava da precisão, da exatidão, da pontualidade. Com ele, nada de aproximações. Uma memória exuberante, de uma precisão impressionante. Infalível. Tão rica que às vezes parecia impedi-lo de pensar de maneira sintética. Seu pensamento era conciso. Todos os argumentos sempre bem conectados. Tudo tinha que ver com tudo. Digressões constantes. Parenteses permanentes. O desenvolvimento de um tema o levava, por associação, pela lembrança de algum detalhe importante, de tal detalhe, ou situação, ou personagem, a evocar um tema paralelo, e outro, e outro, e outro. Se afastava do tema central, e o interlocutor temia, por um instante, que ele tivesse perdido o fio da meada. Até que ele habilmente retomava, com surpreendente naturalidade, a ideia principal.

Em nenhum momento, ao longo de mais de cem horas de conversações, Fidel me impôs algum limite sobre qualquer questão das que abordamos. Como intelectual que era, de um calibre considerável, não temia o debate. Pelo contrário, era o que ele queria, o que ele buscava, o que o estimulava. Sempre disposto a divergir com quem fosse. Com muito respeito para com os demais. E era um discutidor e polemista temível, com argumentos robustos. Apenas não suportava a má fé e o ódio.

*Nasceu na Galícia, em 1943. É diretor, em Paris, do Le Monde Diplomatique. Especialista em geopolítica e estratégia internacional, é professor de Teoria da Comunicação na Universidade Denis Diderot de Paris. É doutor em Semiologia e História da Cultura pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, onde foi aluno de Roland Barthes. É um dos fundadores da Attac e membro do Conselho Internacional do Fórum Social Mundial. Pela Boitempo, publicou Fidel: biografia a duas vozes (2006) e Mídia, poder e contrapoder: da concentração monopólica à democratização do poder (2013).

Fonte: Blog da Boitempo


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