domingo, 1 de janeiro de 2017

Boas Festas e um 2017 pleno de Brasil


Entrando no restaurante, o sujeito que não conheço me olha de um modo que não traduzo. Em outros tempos, seria um bom início de conversa. Puxaríamos assunto, fosse turista ou nativo falaríamos da velha Poços de Caldas, descobriríamos afinidades musicais, às vezes amigos comuns e raramente se falaria de política.

Agora, o clima é tenso. Fico imaginando que, a qualquer momento, o sujeito virá em minha direção de dedo em riste, deblaterando contra minhas posições políticas, me acusando de "petralha" e me obrigando a bate-boca em público.

A direita saiu do armário, dirão os especialistas. Mais que a direita, a intolerância.

Não apenas a direita troglodita, mas também uma nova direita cheia de maneirismos, travestida de um humanismo de boutique, defensora das grandes teses de igualdade apenas para o eixo Rio-Miami, para seus círculos sociais, mas avalizando todos os ataques políticos aos inimigos e todas as ameaças às políticas sociais que amparam  a plebe malcheirosa.

Ao contrário, os verdadeiros humanistas identificam a si mesmo em cada ser humano, veem no próximo um pedaço da humanidade. Foi o que levou o grande liberal conservador Sobral Pinto a defender Luiz Carlos Prestes.

Ao meu lado, a notável defensora dos direitos humanos me explica o processo simples, e ao mesmo tempo desafiador, de entender a vulnerabilidade do outro que não é igual a você. Difícil é entender a vulnerabilidade de um outro com quem você não se identifica, até o ponto de não existir mais o outro, mas uma única identidade humana. Isto é humanidade.

E me recomenda o poema de John Donne:

“Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma partícula do continente, uma parte da terra; se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria; a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”.

Os liberais brasileiros de agora são tão superficiais quanto os alicerces dos traillers da Florida, carregando convicções mutantes a caminho da rodovia que conduza à última moda, com a mesma superficialidade dos que querem ser “in” nas colunas sociais, nos programas de entrevista e na Academia. Apresentavam-se como juristas de esquerda, quando era chic ser de esquerda. Agora, se assumem ultraliberais de direita, porque é a nova moda. E o sistema enaltece apenas a erudição que se adequa aos modismos.

Os trogloditas que saem pelas ruas expelindo fogo pelas ventas apenas incomodam. É a direita falsamente sofisticada que mata, que convalida a PEC 55, o desmonte de programas sociais, a destruição de cadeias produtivas em nome de um conceito de modernidade, tão superficial quanto cruel.

Não é a direita dos conservadores convictos como Sobral Pinto, que passou por cima de diferenças ideológicas e se pôs a defender as vítimas do arbítrio. Ou dos construtores de Nação, de Campos a Bulhões, de Dias Leite a Beltrão, de juristas com a convicção de Pedro Aleixo e Sobral, construtores do país ou defensores das teses civilizatórias. Agora é uma direita rentista, superficial, com juristas prenhes de maneirismos e escassos de humanidade.

Me lembro de Manuel Bonfim descrevendo o Brasil do início do século 20: os líricos fizeram a Abolição, a elite fez a Guerra do Paraguai.

O Brasil nunca foi uma sociedade pacífica, mas havia os rituais preservados, as festas de fim de ano, as canções infantis, o aconchego familiar. Desta vez, o ódio cultivado diuturnamente pela mídia, ao longo de anos e anos, regando com fel as ervas daninhas da intolerância, que, crescendo, conseguiram penetrar até nos círculos mais íntimos da brasilidade, contaminando redes de amigos, laços familiares, ambientes sociais em geral.

Tudo isso passa pela minha cabeça quando, no restaurante, percebo o sujeito me mirando e já me despertando instintos agressivos. Vou tirar satisfações? Seria conferir a vitória final ao ódio.

E o Brasil é bem maior. O país que deu Caymmi, João, Carlinhos e Jobim, Ary, Noel e Custódio, Gilberto Freire e Bonfim, Sérgio, Caio e Florestan, que  hoje dá Nicolelis, e ontem deu Clodowaldo, que juntou Aziz e Lutz, sem rio Jordão e sem Gaza, Paulo Freire e Josué, Milton e Carlos Chagas, Zé do Norte e Luiz Gonzaga, Chico e Luiz Vieira, Edu, Capiba e Joubert, Celso Furtado e Ignácio, não pode se render a esse simulacro de país, dos Marinhos e dos Frias, de Temer e Eliseu, do intocável Padilha,  e de um monte de Zebedeus, de Meirelles e Ilan, de Gilmar e de Barroso , tão iguais e tão diversos, um é prosa, o outro  é verso, o boquirroto e o centrado, o perverso e o bondoso, o escarrado e o sibilino, o ostensivo e o medroso, um, Gilmar, outro, Barroso, jogando do mesmo lado, hipotecando o destino 

2016 não é o final, é o início. Há uma rapaziada cheia de energia, na música, na vida e nas escolas, uma tomada de consciência alicerçada nos mais autênticos valores nacionais, uma reconstrução renovada de princípios de solidariedade, de luta contra o arbítrio, ainda que em um público mais restrito, mas dotado da fortaleza dos cristãos nas catacumbas lutando contra a barbárie.

Que em 2017 toda essa energia possa implodir as cidadelas do obscurantismo, da intolerância, o pesado sentimento antinacional que tomou conta das instituições. Do mesmo que a elite fazendeira descobriu o Brasil profundo através da Semana de 22 e dos sons de Villa-Lobos, e a classe média urbana descobriu o Brasil autêntico através dos cantores populares.

Viva o Brasil!
Por Luis Nassif no Jornal GGN

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