Por Paulo Moreira
Se há vários motivos para aplaudir o filme "Eu, Daniel Blake," de Ken Loach, Palma de Ouro do Festival de Cannes, um dos mais importantes do mundo, é fácil reconhecer a razão principal.
Se há vários motivos para aplaudir o filme "Eu, Daniel Blake," de Ken Loach, Palma de Ouro do Festival de Cannes, um dos mais importantes do mundo, é fácil reconhecer a razão principal.
Centrado na luta de um carpinteiro para proteger seus
direitos, a obra apresenta um retrato sem enfeites do colapso do Estado de
bem-estar social na Inglaterra, país que, entre outros benefícios sociais,
construiu um sistema público de saúde gratuito e universal, ponto de partida
para diversos países, inclusive o nosso SUS.
Do ponto de vista dos 200 milhões de brasileiros, Eu, Daniel
Blake ganha uma importância especial pela conjuntura política, de guerra aberta
do governo Temer e da equipe de Henrique Meirelles contra a CLT e programas
sociais como Bolsa Família, Previdência Social e Minha Casa Minha Vida. Loach
mostra o destino de um dos países mais ricos do planeta, antiga potência imperial,
que se encontra numa etapa posterior do processo que leva ao Estado Mínimo.
"Eu, Daniel Blake" registra numa cena a condição
de cidadãos britânicos que passam fome. Já imaginou?
A tradução para a realidade brasileira exige adaptações
importantes, como uma renda per capta menor, um patrimônio acumulado também
menor - apesar do crescimento dos últimos anos. Considerando que os seres
humanos tem necessidades básicas semelhantes em qualquer latitude, pode-se
imaginar o tamanho da tragédia em curso, o abismo mais à frente.
O mundo que se vê na tela retrata uma classe trabalhadora
capaz de gestos individuais de solidariedade mas vencida em derrotas sociais
imensas, onde homens e mulheres são obrigados a lutar de forma individual por
seus direitos e improvisar caminhos no limite da ilegalidade para reforçar a
dispensa. Num momento divertido, retrata-se um cidadão que engorda os ganhos
pelos labirintos da globalização, fazendo contrabando de tênis produzidos na
China.
No mundo pós-moderno de Eu, Daniel Blake, as ações coletivas
sequer são cogitadas. A existência de sindicatos, que já foram uma glória do
movimento operário, nem é mencionada. Ao longo do filme, o protagonista está
mergulhado numa realidade que os brasileiros conhecem muito bem: no combate por
direitos estabelecidos junto aos serviços de telemarketing, enfrentando um
exasperante labirinto de recomendações e explicações que nada resolvem. São
apenas uma forma cínica encontrada pelos governantes para adiar a entrega de um
direito que as duas partes sabem que é liquido e certo -- mas dificilmente será
reconhecido.
Nas cenas finais, o filme mostra o que vem depois. Após
perder os direitos como trabalhador, o protagonista também é destituído de
direitos como cidadão e acaba sendo tratado como criminoso comum quando tenta
de realizar um protesto por conta própria.
Com preciosas lições para a atualidade, Eu, Daniel Blake tem
uma omissão do ponto de vista histórico. Você vai para casa perguntando como
tudo aquilo pode acontecer.
Em vários momentos, o filme faz referências esparsas ao
governo responsável pela tragédia social do país, o Partido Conservador. Está
correto. Nos 18 anos em que permaneceram no poder, onze deles com Margaret
Thatcher como primeira-ministra, os conservadores fizeram um trabalho
meticuloso e profundo para destruir o Estado de Bem-Estar Social. O problema é
que, a seguir, o Partido Trabalhista ocupou o governo por treze anos. Em dez
deles, Tony Blair foi o primeiro ministro e, contrariando as expectativas da
maioria dos britânicos, nada fez para reverter a herança recebida. Em 2010, o
Labour sofreu uma nova derrota nas urnas e até agora não se recuperou.
Cabia ao Labour, pelo seu lugar na história do país, o papel
de resistir aos ataques contra os direitos da maioria. A recusa em assumir este
lugar também ajudou a criar um mundo no qual a questão social virou caso de
polícia - e este também é um debate que interessa aos brasileiros de 2017. Sem
resistência, seus direitos também vão se transformar em poeira.
Via - Blog do Miro
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