terça-feira, 2 de maio de 2017

Belchior, uma morte anunciada

Foto: Gustavo Pellizzon/ Rádio Verdes Mares 810
Por *Jorge Hélio Chaves de Oliveira

Morreu, aos 70 anos e meio, o cantor e compositor cearense Belchior, o mais complexo letrista da MPB. E o corpo do autor de “Coração selvagem” cumpre um estranho ritual de volta. Sai de Santa Cruz do Sul, no interior dos Pampas, para a Sobral de sua infância, na região norte do seu Ceará natal. Faz o caminho inverso daquele que as charqueadas empreenderam no final do século XVIII, quando um certo Pinto Martins tangeu suas últimas cabeças de gado rumo às campinas do extremo sul da então colônia portuguesa. Foram, ele e seu gado, os precursores da BR-116.

Nestes tempos de profunda apreensão nacional - para ficar apenas no território do eufemismo -, a morte de um pensador urbano, um contumaz leitor de clássicos da literatura nacional e mundial, um cronista musical da migração Nordeste-Sudeste, um repórter das inquietações típicas da juventude universal soa emblemática em ambiente de tanta desesperança. Partiu, sendo o mais importante de seus parentes, sem dinheiro no banco, de volta pro interior. “Acreditou no sonho da cidade grande e, enfim, se mandou um dia. E (v)indo, viu e perdeu”, como vaticinou em “Notícia de terra civilizada”, parceria sua com Jorge Mello, o mais presente de seus parceiros em sua discografia.

Suas composições foram gravadas por mais de 150 artistas, rol que inclui Gigliola Cinquetti, que gravou uma versão italiana de sua “Paralelas” em seu disco de 1978, no qual há, também, outra raridade, esta desconhecida no Brasil: a música “Frutaflor matutina” (originalmente, “Tu sei di me”), a única versão de que se tem conhecimento que Belchior fez para a língua de Camões e Guimarães Rosa.  Os cearenses Fagner, Ednardo e Amelinha, além de Elis, Roberto, Erasmo, Vanusa, Antonio Marcos, Jessé, Zé Ramalho, Elba, João Bosco, Zélia Duncan, Ivan Lins, Margareth, Daniela, Cidade Negra, Engenheiros do Hawaii, Los Hermanos, Jair Rodrigues, Ana Carolina, Sergio Mendes, Nelson Gonçalves, Simonal, Oswaldo Montenegro, Ney Matogrosso, Guinga e Leila Pinheiro, Anna Ratto, Renata Arruda, Zé Geraldo, Djavan, Emílio Santiago, Guadalupe, Chitãozinho & Xororó, Carol Saboya, Luli e Lucina, Trio Esperança… é uma imensidão de cantores e cantoras que registraram músicas como “A palo seco”, “Na hora do almoço”, “Mucuripe”, “Como nossos pais”, “Velha roupa colorida”, “Comentário a respeito de John”, “Paralelas”, “Senhoras do Amazonas”, “Todo sujo de batom”, “Notícias de terra civilizada”, “Alucinação”, “Coração selvagem”, “Galos, noites e quintais”, “Espacial”, “Incêndio”, “Noves fora”, “Sensual”, “Do mar, do céu, do campo” etc.

Um capítulo especial, no quesito parcerias, é o encontro de Belchior com Toquinho. Saíram dali sete composições, seis das quais gravadas pelo eterno parceiro de Vinícius de Moraes, em seu disco de 1978, Toquinho Cantando - Pequeno perfil de um cidadão comum. Em seu sítio oficial, Toquinho demonstra profundo respeito pelo autor de “Tudo outra vez”, mas deixa claro que a parceria não deu certo. Para ele, as letras muito elaboradas e cheias de mensagens filosóficas não fizeram um bom casamento com sua música. “Meu cordial brasileiro” e “Pequeno perfil de um cidadão comum” foram registradas por Belchior em seu disco “Era uma vez o homem e o seu tempo”, de 1979.

Andava recluso, nos últimos anos. O cansaço do convívio com o incômodo civilizacional pareceu preceder a autorreclusão. Sabia e avisou: “Eu estou sempre em perigo e a minha vida sempre está por um triz” (em “Brincando com a vida”).

Contou, em já distante aparição pública, por volta de 2009, que estava traduzindo para o português A Divina Comédia, de Dante D’Alliguieri. Em sua “Divina Comédia Humana”, revelava-se um ser angustiado “como um goleiro na hora do gol”, pouco depois de reconhecer ser um “sujeito de sorte, porque, apesar de muito moço,”(sentia-se) “são e salvo e forte”: “Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro. Ano passado eu morri, mas este ano eu não morro.”

Também anunciou que estaria vertendo sua seleta obra para o espanhol. Em 1990, já gravara Eldorado, um álbum com os uruguaios Eduardo Larbanois e Mario Carrero. Algumas das pérolas de seu cancioneiro já se ouviam, ali, em castelhano, como “Na hora do almoço”, “Galos, noites e quintais”, “Como nossos pais” e “Quinhentos anos de quê?” - esta, uma ácida homenagem ao quinto centenário do descobrimento da América pelos espanhóis.

Antonio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes foi um escorpiano do Pós-guerra que viveu em conflito, que defendeu ser viver melhor que sonhar, mas que passou a vida sonhando de olhos abertos e mente ligada, sintonizada com o próprio umbigo, com sua oca original, com seu país e com o mapa mundi, cujo centro de preocupações sempre foi a Latino-América. “El Condor passa sobre os Andes e abre as asas sobre nós. Na fúria das cidades grandes, eu quero abrir a minha voz” (em “Voz da América”).

Sempre quis ser ouvido e assobiado pelo povão, sempre desejou tocar em rádio AM, nos alto-falantes das quermesses do interior do Brasil. Nunca curvou-se ao sucesso fácil, contudo, ressalvado o “Medo de Avião”, que mereceu críticas ásperas (e exageradas, convenhamos) de seu “alter guru” e parceiro de Robertinho do Recife em “Baby doll de nylon” Caetano Veloso. Ironicamente, “Medo..” ganhou uma versão-balada, com pequenas alterações na letra, e a parceria de… Gilberto Gil. Sim, existe “Medo de avião II”, insólita parceria do autor de “Conheço o meu lugar” e do compositor de “Pai e mãe”.

Belchior gravou 22 discos de carreira (além dos dois compactos simples - hoje, seriam “singles” - lá no início do início), alguns dos quais com regravações de sua obra e um deles em que interpretava canções de outros colegas de ofício.  Teve seu auge de público e crítica entre 1976 (ano do lançamento do cultuado “Alucinação” - um dos dez discos da minha vida) e 1980, período em que emplacou, em sequência, cinco discos espetaculares. A partir dali, os altos e baixos, vencendo finalmente estes, passaram a ser sua marca.

Em 2002, gravou Pessoal do Ceará, com Ednardo e Amelinha. Tirando os colecionadores, como eu, um disco dispensável, apesar das duas inéditas, uma dele e uma do criador de “Pavão mysteryozo”.

Em 2004, em parceria com a Editora Caras, o rapaz latino-americano fez publicar um combo com 31 retratos que ele mesmo pintara de Carlos Drummond de Andrade e 31 poemas musicados. “As várias caras de Drummond” foi o nome do projeto.

Particularmente, na condição de estudioso da produção discográfica de Belchior, desenvolvi idêntico interesse com relação a seus CDs mais desconhecidos e de menor sucesso. Coincidem com parcerias mais frequentes e gravações de canções alheias. Escassearam, neste período, as obras-primas, embora as haja, a exemplo de “Senhoras do Amazonas”, esplêndida parceria com João Bosco.

Tomara que Belchior vire moda, ao menos neste período. É uma figura cult da nossa música. Uma figura “Brasileiramente linda”.

Mas a imensa maioria das pessoas está muito pouco, quase nada, nada mesmo preocupada com reflexões existenciais e já optou por manter “o ar condicionado no 15”, como vocifera um certo conterrâneo do autor de ”Princesa do meu lugar”, que, modestamente, se avalia “99% anjo, perfeito, mas aquele 1% é vagabundo.” “E que tudo o mais vá para o céu”. E, chegando lá, ouça, ainda, “Ipê”, “Aguapé”, “Dandy” e “Em resposta a carta de fã”, e, por último, e por quantas vezes for possível, “Pequeno mapa do tempo”.


*Jorge Hélio Chaves de Oliveira é advogado e pesquisador musical. Estuda há alguns anos a obra de Belchior e trabalha em uma "não-biografia"

Via - Jornal GGN

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