Sobre os 100 anos da Revolução Russa.
Por Fernando Horta
No Sul 21
Grupos bolcheviques cercando o Palácio e aguardando ordens
do Soviete, 25 de outubro.
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Por volta das nove horas da noite do dia 25 de outubro de
1917, no antigo calendário juliano, Lev Bronstein (Trotsky), convencido pelos
apelos de Vladimir Ulianov (Lênin), decide não esperar qualquer deliberação do
Conselho dos Soviets (que iria se reunir em alguns dias) e inicia a tomada do
Palácio de Inverno. A última das fortalezas que ainda continha simbolicamente o
poder do regime provisório de Kerensky. Desde o final da manhã, a cidade de São
Petersburgo (capital do império russo) já via os bolcheviques tomarem os prédios
públicos, correios, comunicações, e tudo de forma bastante rápida, sem qualquer
combate. O apoio dos trabalhadores e de corpos militares, especialmente os
marinheiros, foi essencial para que o intento de derrubar o ilegítimo governo
de Kerensky fosse bem sucedido.
Posteriormente, se mostrou acertada a decisão de Trotsky e
os pedidos de Lênin. Kerensky havia conseguido, da “pré-constituinte” montada,
uma ordem de prisão contra Trotsky e a desmobilização total dos bolcheviques,
com ataques à legitimidade dos soviets. Apoiado por Cossacos, por parte da
antiga nobreza czarista, pela burguesia e com o silêncio complacente de
Mencheviques e de grupos Social Revolucionários de direita, Kerensky tentaria,
no dia seguinte, acabar “de uma vez por todas” com a sedição bolchevique. O
Congresso dos Soviets, que teoricamente seria o órgão apropriado para deliberar
sobre uma ação armada, havia sido postergado por duas vezes, através de
manobras políticas de Mencheviques e grupos favoráveis ao governo provisório.
Chegada dos Marinheiros Revolucionários a São Petesburgo,
25
de outubro – Foto Ria Novosti
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Os bolcheviques, ainda que com consideráveis meios militares
e apoio proletário, se valem da retórica trotskysta para desmobilizar
contingentes militares resistentes e mesmo grupos urbanos que não estavam
certos de que a postura bolchevique fosse legítima ou correta. A palavra, a
oratória se aliava à percepção comum para formar o consenso moral que impelia
as ações que viriam a transformar o século XX. Se é verdade que o governo de
Kerensky tentou um golpe, se aliou aos antigos senhores opressores e quer
manter a Rússia na guerra, deve ser correto que aqueles que sempre se opuseram
a ele tenham, enfim, alguma legitimidade. A ação bolchevique foi no último
minuto, suficiente para evitar um levante contrarrevolucionário, que implicava
em reais chances de afastar o partido do cenário da Revolução.
Até 2005 a Rússia comemorou este dia simbólico, sempre no 07
de novembro. Até em 1941, com a cidade sitiada por forças nazistas, Stalin
ordenou uma parada de 15 minutos com celebrações ao momento fundante da
identidade soviética. Foram 88 anos de comemorações, com a data sobrevivendo
até mesmo ao fim da própria URSS. Mas, como os Estados sabem como usar a
História com fins políticos, em novembro de 2004, foi aprovado pelo parlamento
Russo o fim do feriado nacional do dia 07 e a criação do “Dia da Unidade”, no
dia 04 de novembro, supostamente comemorando eventos históricos ocorridos em
1612 quando uma coligação de nobres e a igreja ortodoxa teriam sitiado Moscou
para retomar a cidade das mãos de invasores poloneses (liderados pelo príncipe
Vladislav). De fato, esta data é o momento fundante da dinastia dos Romanov.
O processo de desmonte da memória da Revolução Russa
pretendeu passar uma borracha em toda a experiência da URSS, tornando um feriado
nacional – em pleno século XXI – o momento fundante da dinastia dos Romanov. Um
dos problemas atuais da Rússia é exatamente refundar sua identidade nacional. O
processo de “esquecimento” das experiências de esquerda está em curso em todo o
mundo e não apenas no Brasil.
E vale mesmo forçar a homenagem a um regime que foi
considerado pelos próprios russos, no início do século XX, insustentável. A
vontade de apagar todos os feitos do chamado “socialismo real” e a criação da
narrativa de que nada prestava criou um enorme espaço vazio nas identidades da
população russa atual.
Grupos Cossacos, leais a Kerensky,
com artilharia pesada à
frente do palácio 25 de outubro.
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O que são eles? Soviéticos? Czaristas? A quais histórias e
narrativas russas eles devem se filiar? Quais devem ser exaltadas? Quais
símbolos e quais memórias? Vladimir Putin reforça as memórias da primeira e da
segunda guerra, tentando, de alguma forma, evitar a rememoração soviética.
Sobra uma fragmentação identitária que busca na figura do governante atual um
referente com o qual possa dialogar. E Putin amealha poder dentro da Rússia.
Paul Ricoeur, em seu “A memória, a História e o
esquecimento”, mostra os usos políticos dos processos históricos para forjar
consensos nacionais, identidades e mesmo suportar grupos e ideias contemporâneas.
Se lembrar é um ato político, o “esquecer” também o é. O jogo com as memórias
coletivas, com os espaços de fortalecimento de um nacionalismo são sempre fruto
de pressões políticas contemporâneas.
Celebremos, pois, o dia de 25-26 de outubro duas vezes. Nós,
aqui, faremos hoje e no dia 07 de novembro. E que possamos recuperar a
narrativa da Revolução Russa com todo o respeito àqueles que, em dias nublados,
souberam acreditar no sol.
Grupos leais a Kerensky dentro do Palácio aguardando durante
o dia 25 de outubro.
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Invasão ao Palácio pelos bolcheviques.
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Fotos tiradas do Palácio após a invasão bolchevique.
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População em frente ao Palácio na Manhã do dia 26 de
outubro.
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Discurso de Lênin para as massas, após a tomada do Palácio,
no dia 26 (Foto por Keystone/Getty Images)
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