O encontro de Michel Temer com o presidente da Nestlé, o
belga Paul Bulcke, no último dia 24, em Davos, na Suiça, e a realização do 8º
Fórum Mundial da Água em Brasília, em março, fazem parte da mesma agenda: a
consolidação de acordos entre o governo brasileiro e empresas com vistas à
privatização da água no Brasil. A opinião é do geólogo e professor emérito da
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Luiz Fernando Scheibe.
"Essa aproximação de Temer com a Nestlé é muito
preocupante, porque a água é um direito humano estabelecido pela Organização
das Nações Unidas (ONU), que tem de ser acessível a todos. Ao mesmo tempo, a
água é também mais uma fronteira da privatização. E quando se privatiza algo
assim, que é extremamente importante, fundamental para a vida, e que todos
devem ter o acesso garantido, tira-se a primazia do que é público e entrega-se
para o mercado", disse o especialista.
Destacando o papel das privatizações como fio condutor do
neoliberalismo, em que o controle dos bens públicos pelo setor privado é
"vendido como se fosse a solução para todos os problemas humanos, quando
na verdade é remédio para os próprios capitalistas", Scheibe pontuou:
"Empresas como a Nestlé e a Coca-Cola querem aumentar o controle sobre o
mercado da água não só por se tratar de matéria-prima fundamental para seus
principais produtos, mas também para explorá-la enquanto commodity."
Guerra da água
O processo de privatização da água, conforme Scheibe, ocorre
pela obtenção de concessão de fontes por meio de parcerias com prefeituras –
como acontece em cidades do circuito das águas em Minas Gerais, por exemplo –,
pelo engarrafamento e venda, participação e controle em empresas de saneamento
e até mesmo pela disputa por uma fatia maior do acesso à água.
No sul mineiro, a população e entidades ambientalistas
enfrentam o assédio da indústria por meio de parcerias firmadas com o governo
estadual, de Fernando Pimentel (PT). O temor é que a entrega das fontes de água
mineral à iniciativa privada em cidades como Cambuquira e Caxambu repitam o
desastre de São Lourenço, onde a parceria de 25 anos com empresas – atualmente
a Nestlé – secou uma das fontes. O caso está sendo investigado pelo Ministério
Público.
A "guerra da água" é travada também no Ceará, onde
populações indígenas e tradicionais do município de Caucaia, vizinho da capital
Fortaleza, seguem firmes na defesa da soberania hídrica e da preservação
ambiental. Um projeto do governador Camilo Santana (PT), para abastecer
Umarituba e Catuana, em Caucaia, o centro de São Gonçalo e indústrias do
Complexo do Pecém é questionado por essas populações, inclusive na Justiça, já
que as indústrias receberão a maior parte da água, em vez de priorizar o
consumo humano.
Em São Paulo, estado que enfrentou grave crise hídrica em
2014 e 2015 por má gestão dos recursos hídricos, o governador Geraldo Alckmin
(PSDB) quer retirar água do rio Itapanhaú, de Bertioga, litoral norte, para
reforçar o sistema Alto Tietê, que abastece grande parte da região
metropolitana, onde estão localizadas grandes indústrias. O projeto, alvo de
ação civil pública no Ministério Público Estadual, é criticado pelos impactos à
fauna, flora e à própria vazão do rio que estão sendo desconsiderados nos
estudos de impacto ambiental.
Um dos principais problemas, segundo Luiz Fernando Scheibe,
é o engarrafamento da água – uma das faces da privatização –, em garrafas
plásticas, derivadas de petróleo, mais conhecidas como "pet".
"Embora reciclável, a maior parte desses recipientes não é reciclada.
Junta-se ao meio ambiente, onde levará séculos para se decompor, e grande parte
vai para os oceanos, onde agride a fauna aquática. Além disso, quem pode
comprar água engarrafada deixa de exigir qualidade na água que chega pelas
torneiras. Com isso, a água pública perderá qualidade, como aconteceu com o
ensino público".
Para o especialista, a privatização da água está alinhada ao
projeto que inclui a privatização da educação – por meio do enfraquecimento do
sistema público de ensino básico e superior e a entrada do setor privado,
inclusive com elaboração de conteúdos e métodos "didáticos" a serem
repassados aos alunos –; da energia elétrica, por meio da entrega da
Eletrobras, da Petrobras e do pré-sal. "Toda a cadeia do petróleo e as
reservas estão sendo entregues a valores que não chegam a 1% do que a Petrobras
investiu em pesquisa para descobrir o pré-sal", destacou.
Para Scheibe, no entanto, a participação popular poderá
reverter o avanço do capital sobre setores que deveriam ser controlados pelo
poder público. Ele cita a vitoriosa guerra da água da Bolívia – a chamada
guerra de Cochabamba – entre janeiro e abril de 2000, contra a privatização do
sistema municipal de gestão da água, que dobrou o valor das tarifas. Os líderes
do movimento foram presos e houve até fechamento de estações de rádio.
"Mas a pressão popular fez o governo (do general do exército Hugo Banzer
Suárez) desistir da privatização, anulando o contrato e revogando a lei que
autorizava a privatização".
Outro espaço de resistência, segundo ele, é o Fórum
Alternativo Mundial da Água (FAMA), que também será realizado em Brasília, de
17 a 22 de março, paralelamente ao evento empresarial que terá entre seus
patrocinadores a Sabesp, estatal que vem abrindo seu capital ao setor privado,
e o governo do Estado de São Paulo que protagonizaram a grande crise hídrica há
quatro anos.
Via – Portal Vermelho
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