terça-feira, 3 de abril de 2018

Três importantes lições sobre o caso Marielle e a manipulação midiática

Duas semanas após a execução da vereadora e do motorista Anderson, uma pensata sobre o papel da mídia comercial no episódio.

ILUSTRAÇÃO DE ROBERT CRUMB, 1977

Por *Miguel Freitas
Duas semanas após a execução da vereadora Marielle e do motorista Anderson, ainda não solucionada, é possível aprender três importantes lições sobre o funcionamento da mídia comercial a partir deste caso: o que os jornais sabem; o que eles publicam; e o que eles pretendem.

1. Os jornalistas conheciam Marielle

Dos diversos jornalistas e colunistas dos grandes jornais que escreveram sobre Marielle Franco a maioria tratou a vereadora de forma muito sensível, mostrando estar sinceramente chocados não apenas com a barbaridade do crime mas também com a dimensão da perda de uma personalidade como ela. Os jornalistas sabiam que Marielle já era um mito.

O Globo, por exemplo, publicou logo no dia seguinte uma boa coletânea de textos de colunistas sobre Marielle. Homenagens ressaltaram a trajetória de Marielle e mostraram compreender que nenhuma sociedade dita civilizada pode aceitar um crime político desses passivamente.

É claro que nada disso chega a surpreender, pois jornalistas são, de modo geral, pessoas bem informadas. Ademais, o Rio de Janeiro tem algo de provinciano e os jornalistas sabem quem são os bons e os maus políticos, mesmo que não publiquem. O que nos leva precisamente à segunda lição:

2. Os jornais não publicavam Marielle

Alguns amigos me questionaram com certa incredulidade: “mas você conhecia a vereadora executada antes do assassinato dela?” Sim, conhecia. Acredito que todos os outros 46 mil eleitores que também votaram nela fizeram isso após conhecer sua história de vida e ativismo. Foi certamente um dos votos mais convictos e sem nenhum arrependimento que já tivemos.

Na minha opinião, Marielle era a maior renovação na política carioca em muito tempo. E digo isso não porque ela fosse de esquerda ou de direita, mas porque era sincera, honesta e totalmente dedicada às causas que se propunha. Marielle era uma autêntica representante da população e, mesmo que alguém possa contra-argumentar que representasse apenas um segmento específico da população, não há como negar: ela não estava na Câmara para conseguir “uma boquinha”. É exatamente este tipo de dedicação à vida pública que deveríamos valorizar como critério para a tão falada renovação política.

Marielle era a maior renovação na política carioca em muito tempo. E digo isso não porque ela fosse de esquerda ou de direita, mas porque era sincera, honesta e totalmente dedicada às causas que se propunha
O que vemos, no entanto, são jornais tentando vender que o “novo” seria lançar um apresentador de auditório como candidato a presidente, sendo apoiado pelas velhas raposas de sempre. É essa a renovação que vocês querem?

Por acaso os jornais publicaram alguma notinha quando Marielle propôs a Lei do Espaço Coruja, um espaço onde as mulheres que trabalham à noite possam deixar suas crianças pequenas? Ou quando ela denunciou a violência do 41º  BPM de Acari, o batalhão que mais mata no Rio? E onde estavam os jornais enquanto Marielle ajudava o Coronel da PM Robson Rodrigues a agilizar os processos de pensões das viúvas de policiais mortos no Rio?

Não, os jornais não publicavam Marielle. Não tinham interesse. Para se ter uma ideia, apenas agora, depois de toda esta repercussão, é que ficamos sabendo pelos jornais que a vereadora Taliria Petrone, de Niterói, amiga de Marielle, está recebendo ameaças de morte.

Vale refletir: será que os jornais estão realmente preocupados em nos informar? Estariam eles autenticamente interessados em ajudar a renovar a política?

3. A Rede Globo quer manipular o significado de Marielle

O jornalista Glenn Greenwald publicou uma excelente análise sobre as técnicas e os objetivos ocultos da Globo ao dedicar 45 minutos do Fantástico para falar de Marielle.

Além de jornalista premiado, Greenwald era amigo pessoal da vereadora, colega de Câmara de seu marido, David Miranda, também do PSOL. Traçando paralelos com o esvaziamento feito nos Estados Unidos do significado e da luta de Martin Luther King, Greenwald mostra que a estratégia da Globo é explorar o drama humano do crime bárbaro e do luto, escondendo porém as opiniões radicais de Marielle.

Marielle fazia questão de se apresentar sempre como mulher negra, favelada e LGBT. Agora, após o assassinato dela, simplesmente não há mais nenhuma vereadora negra no Rio. Dá para imaginar que os interesses das mulheres negras (que correspondem a 1/4 da população brasileira) estão sendo considerados na hora de definir políticas públicas?

É hora de denunciar essa tentativa de esvaziamento do significado de Marielle Franco pela mídia comercial. Que isso seja feito por ela e para que todos os nossos amigos e conhecidos tenham acesso à informação correta.

A melhor forma de lembrar e homenagear Marielle é conhecer suas ideias e sua luta. Um bom começo seria baixar o capitulo escrito por Marielle para um livro ainda não publicado e que foi disponibilizado pela editora Zouk na internet, A emergência da vida para superar o anestesiamento social frente à retirada de direitos: o momento pós-golpe pelo olhar de uma feminista, negra e favelada.

É hora de denunciar essa tentativa de esvaziamento do significado de Marielle Franco pela mídia comercial. Que isso seja feito por ela e para que todos os nossos amigos e conhecidos tenham acesso à informação correta e não manipulada.

Caso contrário, em breve poderemos estar assistindo a uma nova convocação de passeata pela Globo, onde “manifestoches” exibem orgulhosamente cartazes com o rosto de Marielle em defesa de Temer e da intervenção militar como solução para a violência no Rio. Tudo aquilo que ela era radicalmente contra em vida.

*Miguel Freitas é engenheiro e coordena um laboratório de pesquisas na PUC-RJ, a mesma universidade onde Marielle se graduou em Sociologia.

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