A partir da greve dos caminhoneiros, notícias e vídeos
mostraram faixas com apelos bárbaros de intervenção militar. Diante da onda
para a volta às trevas, houve historiadores e mestres que afirmaram ser a hora
e a vez de outra intervenção: a do esclarecimento e aulas sobre o que foi e o
que representou a ditadura brasileira. Cada um deve fazer o que pode para
trazer luz nesta selva escura. Então começo uma série sobre aquele tempo, que o
fascismo quer de volta.
Por *Urariano Mota
As pessoas nascidas nos últimos anos não sabem o quanto a
música foi também uma realização política, quase uma concreção, o objeto mais
próximo de uma arma possível na ditadura. O lugar da música popular na vida e
no imaginário da juventude rebelde foi um ato de identificação de vida, de
caráter e personalidade entre grupos de combate. Em mais de uma oportunidade,
já observei que podemos escrever a história política do Brasil incorporando o som,
a letra da sua música popular. Ainda que não tivesse claro esse objetivo,
procurei na literatura que escrevo a música do tempo. Nada de extraordinário ou
falso, esclareço. É que a música popular faz parte da narração dos jovens reais
que eu vi. Seria impossível contar a história sem falar da sensibilidade que
sonhava em ser livre, respirar livre, da militância. Assim foi, por exemplo, em
páginas de Soledad no Recife, quando a ressurreição dos malditos anos da
ditadura se fez com a memória dos tropicalistas:
“- Então aumenta o som, ele me disse olhando para os lados.
Então aumentei o volume do meu toca-discos. ‘Mamãe, mamão
não chore’ tocou mais alto.
E Júlio falou mais alto, a brigar com a música de Torquato
Neto:
- Sabe Daniel?
- Que Daniel?
- Aquele cara, marido de Sol ... aquela moça bonita, que a
gente conversou com ela, rapaz.
- Sei, eu disse, e olhei para um lado, para calar em mim uma
voz certeira: “Como não saber quem é Sol? Ela não me sai do pensamento. A sua
imagem me persegue”. Sei, repeti, que é que tem?
- Eu me encontrei com ele na Cidade Universitária. E ... ele
tem armas, rapaz. Ele tem facilidade para distribuir armas. Entende? O que a
gente precisa, ele tem.
Escrever sobre isso me dói até aqui, em meu ventre, até
hoje. É como a recuperação de uma dor, que volta. Coça-me como uma ferida que
pensei estar cicatrizada. Isso porque Júlio enfatiza com os olhos o que me
conta, inflamado:
- Ele tem armas, cara. Armas!
Difuso em mim cresce um sentimento de repulsa e de cautela.
Ora, entrar em posse de armas é uma definição que não quero. Como diria um
protestante, diretor de um colégio no Recife, numa noite de tempestade quando
um raio iluminou a sua sala:
- Senhor, eu ainda não estou preparado!
Eu poderia também dizer a Júlio, ‘eu ainda não estou
preparado’, mas isso era uma, como dizíamos então, uma reação subjetiva,
psicológica, que nada tinha a ver com a oferta objetiva de armas. Esse era o
bem sonhado que se oferecia. Armas! enfatizava Júlio, e por isso mais ergui o
grito de Gal Costa no toca-discos. Não sei se existe na gente um sexto, sétimo,
oitavo sentido. Mas digo que lá em um remotíssimo sentido, em uma ordem
indeterminada, aquela oferta acendeu em mim uma tênue luz vermelha. Como e por que
se davam essas armas tão boas e generosas? Essa pergunta não fiz, embora ela
começasse a crescer em mim. Certo, não a fiz também por medo, como escrevíamos
então para maior pavor com acento, mêdo, mêdo de que dissessem que estávamos
com mêdo. Por que essa oferta tão generosa de um Daniel que mal conhecíamos?
Havia uma razão imperiosa que poderia ser brandida de volta contra semelhante e
insultuosa pergunta: porque assim era a revolução. É claro. Porque assim era a
revolução. Esse era um estágio que suspendia todas as dúvidas, que resolvia
todas as questões, que mandava ao inferno toda e qualquer lógica. Porque assim
era a revolução. Os saltos mais miraculosos e mirabolantes a revolução poderia
dar. E o pior, ou o melhor, não sei, mas o certo é que ela dava. O oferecimento
de armas, que passava por cima de toda lógica, se nutria de casos em que a
lógica da conformação fora vencida. Por isso Júlio estava excitado,
excitadíssimo:
- Ele tem armas, cara! Armas, entende?
- Sei ... interessante.
- Interessante?! Bom demais, cara. Acorda! Esta é a maior
notícia de 1972.
- Claro, eu consegui dizer. Claro, mas ...
- Mas o quê?!
- Mas que tipo de armas, sim, de que tipo?
- Era só o que faltava. Sei lá. Fuzil, revólver, bomba,
metralhadora, sei lá.
- Deve ter tudo isso. Você acha.
- Não importa, rapaz. Presta atenção: não importa. O que ele
trouxer, cai do céu.
‘Mamãe, mamãe não chore, a vida é assim mesmo’, esse refrão,
cantado por Gal, talvez não estivesse mais a tocar na vitrola. Mas não posso me
recordar desse dia sem que essa música não venha a meus ouvidos, deles não
saia, como se estivesse a se repetir, bater e afundar no sulco ferido do disco.
‘Mamãe, mamãe não chore, a vida é assim mesmo, eu fui embora’...............
‘Mamãe, mamãe, não chore. A vida é assim mesmo, eu fui
embora...’ tocava na radiola da casa dos padres.
‘Eu tenho um beijo preso na garganta...’. Então Soledad, a
viejita, viejita desde os 5 anos de idade, teve um estremeço, um estremeço como
as mulheres possuídas por santos nos terreiros. ‘Ser mãe é desdobrar fibra por
fibra os corações dos filhos...’. E por isso descalçou as sandálias, e se pôs a
dançar, a bailar, sozinha, ela e seu fogo presente no útero. Abriu os braços, e
com toques graciosos nas mãos, com os pezinhos a bater com o calcanhar o ritmo.
A saia de estampas de flores ondulou nos quartos largos de mulher parideira.
‘Mamãe, mamãe não chore, eu nunca mais vou voltar por aí’. Os padres, as
freiras, abriram uma roda. Soledad Barret Viedma disso não se deu conta. ‘Eu
tenho um jeito de quem não se espanta’. Quem era essa Gal Costa que cantava tão
bem para uma guerreira no desamparo? ‘Leia um romance. Leia ‘Elzira, a morta
virgem’...’. Então ela, ela e o seu santo, ela e o seu útero, ela e aquele que
jamais teria nome ficaram tontos”.
De modo mais claro, assim foi no romance “A mais longa
duração da juventude”, quando retorna a música popular ao aprofundar a paixão
dos jovens na ditadura:
“– É o melhor! Caetano Veloso é o melhor compositor do tempo
da revolução.
Olho em volta e percebo que nas mesas vizinhas se faz um
silêncio. Todos nos escutam, concluo. Assuntos de música popular, no Brasil,
são os que mais despertam interesse, depois do futebol. Mas na ditadura falar
na altura da voz de Vargas, usando a palavra “revolução”, é demais. Nelinha lhe
toca o braço e sussurra “cuidado”. Ele sorri:
- Tranquilo, minha santa. Estou falando de cultura....
Eu não acho – falo. – Chico, para mim, é o melhor compositor
de música popular brasileira hoje. Ele tem uma poesia que não tem Caetano.
Chico é de fazer música, não é de dar espetáculo. Caetano é escandaloso,
entende?
- A revolução é um escândalo! – Vargas quase grita. Alberto
ri, Nelinha sorri para o companheiro, que se vê estimulado. – Chico é o
compositor de Carolina, Januária na janela. É o poeta dos olhos verdes das
meninas. Isso é revolucionário? Preste atenção: a música de Chico é o passado.
Ele é um compositor de 1960 pra trás.
- Olhe... – eu queria dizer, se compreendesse então, que
Chico ligava a tradição à música de 1970, assim como Paulinho da Viola fez essa
ligação com o samba. Mas há um tempo em que possuímos o sentimento, mas não
encontramos as palavras, que ainda não nos chegaram pela experiência. Então
arquejo, como um náufrago, diante da catilinária. – Olhe, você quer poesia
melhor que ... – e tento cantarolar ‘se uma nunca tem sorriso, é pra melhor se
reservar...’
Ou ‘a dor é tão velha que pode morrer’, hem? – E baixo a
voz: - Chico é a esquerda do futuro.
- Ele não é nem do presente – Vargas responde. – Que dirá do
futuro. Preste atenção, muita atenção: ‘sei que um dia vou morrer de susto, de
bala ou vício’. Escutou? Esta é a música de agora, dos jovens revolucionários
de hoje.
https://www.youtube.com/watch?v=VKWnJG1UaTc
- Isso não é de Caetano. É de Gil, Torquato e Capinam –
falo.
- De Gil? – Vargas responde. – Não importa. Está no disco de
Caetano. Ele fez da música um hino revolucionário. Isso é o que
importa.............
Meu Deus, o quanto a juventude pensa que sabe. Eu seria
capaz de trocar o que aprendi até hoje pelo que pensava muito conhecer aos 20
anos. Ou melhor, pelo fabuloso e risonho conhecimento, devo dizer. Penso no que
soube depois, jovens sendo trucidados, homens encolhidos em posição fetal, na
cela escura e sangrenta à procura do abrigo do útero da sua mãe. Penso também
no heroísmo raro, mais que a limitação da vida, em bravas pessoas. Penso na
mais longa duração da juventude, resistente nos cabelos brancos, no coração a
pulsar regenerado, no peito renascido para o amor. Como um broto que rebenta na
árvore envelhecida, penso. E, no entanto, eles que de nada sabiam vão pela
Imbiribeira, palmilhando a Estrada do Sol, de Jobim e Dolores Duran........
O ano de 1972 foi um dos mais luminosos de nossas vidas.
Como última luz de estrela, brilhou não somente por comparação às trevas do ano
seguinte. Mas em si mesmo. Se não antecedesse viradas trágicas, seria um ano
digno do mais caloroso afeto. 1972 foi como um disco vinil, uma canção que
ouvíamos sem parar na radiola de ficha wurlitzer. Da embriaguez na noite ao
arrependimento na manhã, havia sempre uma canção em nosso caminho, de Blue Moon
com Ella Fitzgerald a Yellow Submarine e Chovendo na Roseira. Mas ao confrontar
há pouco o sentido da memória, pude ver que levamos para um mesmo espaço
acontecimentos de tempos diferentes. Isso quer dizer, os anos às vezes se
confundem, unificados e na unidade do sentimento. Assim, guardei como de 1972 a
manhã de um sábado em que ouvi Chovendo na Roseira em 1974.
Por que a canção na voz de Elis Regina veio como se fosse de
1972? Entendo, ou procuro entender o amolecimento elástico do coração. É que na
mesa do bar no Pátio de Santa Cruz ouvimos a voz de Elis e o piano de Tom
Jobim. Ficamos suspensos na manhã de 1974 como se cantássemos em um jardim de
pétalas vermelhas. ‘Olha, está chovendo na roseira, que só dá rosa, mas não
cheira’. Vinha um nó na garganta que deixava a gente sem fala, e o empurrávamos
para baixo com goles de cerveja. ‘Adivinhou a primavera’, pensei há pouco, de
modo apressado, que podia ter sido no ano da luz de 1972. Mas se tivesse
pesquisado no íntimo, veria que o sentimento num instante de 1974 não poderia
ser o de 1972”.
Na próxima semana, retorno.
* Jornalista do Recife. Autor dos romances “Soledad no
Recife”, “O filho renegado de Deus” e “A mais longa duração da juventude”
Nenhum comentário:
Postar um comentário