Antonio Candido costumava ser chamado assim, segundo ele
mesmo, por quem o conhecia pela sua vida acadêmica. Para os mais íntimos, entre
os familiares e os amigos mais próximos, era simplesmente Candido. Foi assim
que o conhecemos, desde pequenos, como sobrinhos de um dos seus amigos mais
próximos, Azis Simão.
Não tínhamos ainda a dimensão da sua figura para a cultura
brasileira, mas conhecíamos sua genialidade, nas suas grandes tiradas irônicas,
revelando toda a inteligência que permearia toda a sua obra. Nascido no Rio de
Janeiro, há exatamente cem anos (24 de julho de 1918), cresceu em Poços de Caldas,
antes que sua família se mudasse para São Paulo. Ali, estudou na USP, onde
começou o curso de Direito, que abandonou antes de concluir, para estudar
Ciências Sociais na velha e histórica Faculdade de Filosofia da rua Maria
Antonia, sob a influência de Fernando de Azevedo.
Mas logo se concentrou na teoria da literatura, de que ele
se tornaria o maior expoente brasileiro e latino-americano, além de formador
das melhores gerações de estudiosos do tema aqui no Brasil. Mesmo antes disso,
ele foi autor de algumas das obras sociológicas mais importantes do pensamento
social brasileiro, Os parceiros do Rio Bonito, livro admirável também pela sua
beleza literária.
A formação da literatura brasileira deu início à construção
da obra de teoria literária que mudaria o panorama intelectual do Brasil,
tornando-se um clássico na mais clara acepção da palavra, adotado, estudado,
objeto de teses e edições em vários outros países.
Mas não me deterei aqui na obra de Candido e sim na sua
imagem de intelectual da esfera pública, de que ele foi a melhor expressão no
Brasil. Essa figura vem daquela da intelligentsia, do intelectual vinculado aos
grandes temas de interesse da sociedade, abordados em linguagem acessível e do
ponto de vista dos interesses populares, contra as oligarquias no poder. Um
intelectual de que Antonio Candido foi o melhor exemplo.
Ele pertence a um tempo em que o intelectual se vinculava
indissoluvelmente à esfera pública, à educação pública, à construção
democrática da sociedade e do Estado. Era socialista, porque esse era o projeto
que se identificava com aqueles interesses.
Pertenceu a grupos socialistas antes de participar da
fundação do Partido dos Trabalhadores, partido com o qual se identificou
sempre, em particular com a liderança do Lula. Como ele disse, sua
personalidade não tem os traços da militância política, mas seu interesse pela
política foi dado sempre pelo interesse pelas ideias que as práticas políticas
contém.
A crise dos intelectuais das esfera pública é resultado de
vários fatores, entre eles a burocratização da vida acadêmica, em que se
escreve mais para as agências de financiamento, prestando contas ou solicitando
recursos, do que para o grande público, para a opinião pública, para a
sociedade no seu conjunto. A própria linguagem se adapta a essas necessidades,
tornando-se hermética, inacessível, indecifrável.
Por outro lado, a disseminação dos campus universitários
contribuíram decisivamente para afastar as universidades da vida das cidades,
além de distanciar as próprias faculdades entre si, distanciadas também
geograficamente. Os professores e estudantes de Ciências Sociais e de História
da USP, por exemplo, não tendem a se encontrar, seus prédios são distintos,
seus cafés são distantes entre si.
Tempos muito diferentes daqueles que eu tive a sorte de
viver, em que no mesmo prédio da rua Maria Antonia se podia assistir cursos de
Antonio Candido, de Sergio Buarque de Holanda, de Florestan Fernandes, entre
tantos outros à disposição dos alunos de todos os cursos.
Além disso, a tendência permanente à hiper especialização
das disciplinas faz com que se perca a visão da totalidade da sociedade,
produzindo saberes cada vez mais restritos e distanciados da totalidade da
realidade.
A morte de Antonio Candido, o nosso Candido, representou um
novo momento na desaparição desse tipo de intelectual, do intelectual da esfera
pública, que ele soube encarnar como ninguém no Brasil, pela sua trajetória de
vida, pela sua obra, pela sua personalidade generosa e pelo exemplo que nos
deixou.
Via - Portal Vermelho
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