MULHERES FAZEM CAMINHADA NO RIO EM 2016. FOTO: FERNANDO FRAZÃO/AGÊNCIA BRASIL |
Por Elvis Cesar Bonassa
Do site da Kairós
No período de dez anos, entre 2007 e 2016, 9,3 mil mulheres
de 15 a 59 anos morreram devido a ferimentos e traumas causados com “intenção
não determinada”, isto é, sem que fique caracterizada ou descartada agressão.
Isso equivale a aproximadamente 25% do total de casos caracterizados
oficialmente como agressão (38,2 mil). Das mortes com intenção não determinada,
há 4,4 mil (47%) em que nem mesmo a origem dos ferimentos é identificada –são
classificados como “fatos ou eventos não especificados e intenção não
determinada”.
A análise, feita pela Kairós na base de dados de atestados
de óbitos do DATASUS, indica que para homens da mesma idade o percentual de óbitos
violentos com “intenção não determinada” no período analisado equivale a apenas
12% das mortes efetivamente caracterizadas como resultantes de agressão –metade
do percentual feminino. Ou seja, a obscuridade em torno das circunstâncias de
mortes violentas é proporcionalmente muito mais frequente no caso das mulheres.
Os ferimentos de intenção indeterminada são causados
principalmente por objetos contundentes, armas de fogo, enforcamento ou
estrangulamento e afogamento. Os casos mais obscuros de “fatos ou eventos não
especificados e intenção indeterminada” se referem a traumatismos diversos
(traumatismo craniano, traumatismo múltiplos, traumatismo de órgãos internos,
entre outros) e hemorragia causada por traumatismo, além de casos de
queimaduras e asfixia, sem nenhuma explicitação de como isso ocorreu.
As mortes femininas por ferimentos e traumas sem intenção
definida equivalem a 2,5 mulheres por dia. Embora não seja possível afirmar
quantos desses casos se referem a agressões não reveladas, há aqui um
feminicídio oculto. As informações utilizadas na definição da causa da morte
têm origem em boletins de ocorrência, informações prestadas por familiares ou
pelo hospital, no caso de ter havido atendimento médico, e pela necropsia
realizada no Instituto Médico Legal (IML).
Há um dado que reforça a especificidade do não
esclarecimento de casos de morte feminina. O percentual de óbitos registrados
como causadas por “fatos ou eventos não especificados e intenção não determinada”
caiu significativamente entre 2007 e 2016, em termos gerais, mas se manteve
praticamente estável no caso de mulheres. De 3,8 mil casos em 2006, esses
registros caíram para 2,8 mil em 2016 –um recuo de 26%. No caso de mulheres, no
entanto, os números passaram de 454 para 439 –queda de 3%, praticamente
estável– no período de 10 anos, embora com variação significativa nos anos de
2008 e 2009.
As mulheres negras (considerando-se a soma das classificações
oficiais pretas e pardas utilizadas no atestado de óbito) são as principais
vítimas, mas com variações significativas na definição da causa. As mulheres
negras representam 61,4% de todos os casos caracterizados como agressão. Já no
caso de “intenção não determinada”, esse percentual cai para 54%. Em sentido
inverso, as mulheres brancas são 33,5% das vítimas de agressão e 39,7% dos
casos de “intenção não determinada” (sem considerar raça/cor amarela, indígena
e ignorada, sempre de acordo com as classificações oficiais).
Considerando que no Brasil, por razões sociais e históricas,
a população negra tem em média patamar de riqueza inferior à população branca,
é possível adotar a hipótese de que a não apuração das circunstâncias de mortes
violentas de mulheres varie em parte de acordo com o nível socioeconômico.
Metodologia
De 2007 a 2016 (dez anos) houve 1.175.287 óbitos femininos.
As três principais causas são neoplasias (26,3%), doenças do aparelho
circulatório (23,5%) e causas externas (11,5%).
Entre as causas externas podemos separar os grupos abaixo
(há mais grupos de causa externa, não pertinentes para esta análise, como ação
policial, complicações médicas ou acidentes cirúrgicos, reação a medicamentos,
sequelas, entre outros): a – Acidentes em geral, acidentes de transporte, morte
provocada por animais, incêndios, entre outros; b – Suicídio; c – Agressão; d –
Intenção não determinada.
Nesse último grupo (intenção não determinada), estão os
mesmo fatos catalogados como agressão, mas não se sabe se foi ou não agressão.
Não há informações sobre o que aconteceu: pode ter sido acidente, ainda que com
a participação de outra pessoa, ou pode ter sido suicídio, dependendo do caso.
Entre os casos de intenção não determinada, existem ainda as mortes em razão de
fatos ou eventos também não determinados. Ou seja, em que não se sabe nem mesmo
como o ferimento foi causado.
As mortes de intenção não determinada são causadas
principalmente por objetos contundentes, arma de fogo, enforcamento ou
estrangulamento e afogamento. No caso dos fatos não determinados, referem-se,
em geral a traumatismos, fraturas, asfixia, queimaduras. Os atestados de óbito
trazem a intenção não determinada na causa básica, acompanhada dos outros
fatores (causas secundárias) que permitem identificar os ferimentos ou traumas
encontrados.
Os casos reconhecidos de feminicídio estarão registrados
entre as agressões; os feminicídios não reconhecidos, entre os casos de
intenção não determinada. Ou seja, uma parte das mortes de mulheres com causas
de intenção não determinada é de feminicídio oculto. Nem todos os casos de
morte classificados com intenção não determinada podem ser considerados como
feminicídio oculto, mas todos os casos de feminicídio oculto estarão nessa
classificação.
O universo de análise do feminicídio, portanto, são todas as
mortes registradas nos grupos agressão e intenção não determinada. Para a
análise do feminicídio oculto, o universo é o grupo de mortes com intenção não
determinada, que é objeto da presente pesquisa (códigos Y10 a Y34 da CID –
Classificação Internacional de Doenças).
O recorte da faixa etária (15 a 59 anos) foi motivado por
dois fatores, para evitar distorções. Para a faixa de até 15 anos,
considerou-se que os casos não são diretamente relacionáveis a feminicídio.
Nessa faixa etária não há variação significativa entre os percentuais masculino
e feminino de mortes por intenção não determinada em relação a mortes por
agressão. Não há uma especificidade feminina.
Na faixa etária a partir de 60 anos, há a utilização da
classificação de intenção indeterminada para um grande número de casos de
fratura de fêmur ou bacia, associados a osteoporose, e outros eventos comuns
entre idosos – diferentemente do que acontece entre 15 e 59 anos, em que há
predomínio de traumas, fraturas, asfixias, armas de fogo, entre outros que
indicam mais claramente a possibilidade de agressão. Embora não se deva
descartar a existência de feminicídio nessa faixa etária, a análise dos
atestados de óbito seria distorcida.
Para a realização da análise, os mesmos tipos de óbito, na
mesma faixa etária, foram catalogados para o sexo masculino, a fim de realizar
as comparações necessárias.
A fonte dos dados são os arquivos de declarações de óbito de
2007 a 2016 do DATASUS.
Elvis Cesar Bonassa é doutor em Filosofia pela USP e diretor
da Kairós Desenvolvimento Social
Via – Socialista Morena
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