domingo, 9 de setembro de 2018

Feminicídio oculto: as mortes violentas de mulheres que não aparecem nas estatísticas

Cinco mulheres de 15 a 59 anos, a maioria negras, morrem a cada dois dias no Brasil por traumas e ferimentos com intenção "não determinada".

MULHERES FAZEM CAMINHADA NO RIO EM 2016. FOTO: FERNANDO FRAZÃO/AGÊNCIA BRASIL

Por Elvis Cesar Bonassa
Do site da Kairós

No período de dez anos, entre 2007 e 2016, 9,3 mil mulheres de 15 a 59 anos morreram devido a ferimentos e traumas causados com “intenção não determinada”, isto é, sem que fique caracterizada ou descartada agressão. Isso equivale a aproximadamente 25% do total de casos caracterizados oficialmente como agressão (38,2 mil). Das mortes com intenção não determinada, há 4,4 mil (47%) em que nem mesmo a origem dos ferimentos é identificada –são classificados como “fatos ou eventos não especificados e intenção não determinada”.

A análise, feita pela Kairós na base de dados de atestados de óbitos do DATASUS, indica que para homens da mesma idade o percentual de óbitos violentos com “intenção não determinada” no período analisado equivale a apenas 12% das mortes efetivamente caracterizadas como resultantes de agressão –metade do percentual feminino. Ou seja, a obscuridade em torno das circunstâncias de mortes violentas é proporcionalmente muito mais frequente no caso das mulheres.

Os ferimentos de intenção indeterminada são causados principalmente por objetos contundentes, armas de fogo, enforcamento ou estrangulamento e afogamento. Os casos mais obscuros de “fatos ou eventos não especificados e intenção indeterminada” se referem a traumatismos diversos (traumatismo craniano, traumatismo múltiplos, traumatismo de órgãos internos, entre outros) e hemorragia causada por traumatismo, além de casos de queimaduras e asfixia, sem nenhuma explicitação de como isso ocorreu.

As mortes femininas por ferimentos e traumas sem intenção definida equivalem a 2,5 mulheres por dia. Embora não seja possível afirmar quantos desses casos se referem a agressões não reveladas, há aqui um feminicídio oculto. As informações utilizadas na definição da causa da morte têm origem em boletins de ocorrência, informações prestadas por familiares ou pelo hospital, no caso de ter havido atendimento médico, e pela necropsia realizada no Instituto Médico Legal (IML).

Há um dado que reforça a especificidade do não esclarecimento de casos de morte feminina. O percentual de óbitos registrados como causadas por “fatos ou eventos não especificados e intenção não determinada” caiu significativamente entre 2007 e 2016, em termos gerais, mas se manteve praticamente estável no caso de mulheres. De 3,8 mil casos em 2006, esses registros caíram para 2,8 mil em 2016 –um recuo de 26%. No caso de mulheres, no entanto, os números passaram de 454 para 439 –queda de 3%, praticamente estável– no período de 10 anos, embora com variação significativa nos anos de 2008 e 2009.

As mulheres negras (considerando-se a soma das classificações oficiais pretas e pardas utilizadas no atestado de óbito) são as principais vítimas, mas com variações significativas na definição da causa. As mulheres negras representam 61,4% de todos os casos caracterizados como agressão. Já no caso de “intenção não determinada”, esse percentual cai para 54%. Em sentido inverso, as mulheres brancas são 33,5% das vítimas de agressão e 39,7% dos casos de “intenção não determinada” (sem considerar raça/cor amarela, indígena e ignorada, sempre de acordo com as classificações oficiais).

Considerando que no Brasil, por razões sociais e históricas, a população negra tem em média patamar de riqueza inferior à população branca, é possível adotar a hipótese de que a não apuração das circunstâncias de mortes violentas de mulheres varie em parte de acordo com o nível socioeconômico.

Metodologia

De 2007 a 2016 (dez anos) houve 1.175.287 óbitos femininos. As três principais causas são neoplasias (26,3%), doenças do aparelho circulatório (23,5%) e causas externas (11,5%).

Entre as causas externas podemos separar os grupos abaixo (há mais grupos de causa externa, não pertinentes para esta análise, como ação policial, complicações médicas ou acidentes cirúrgicos, reação a medicamentos, sequelas, entre outros): a – Acidentes em geral, acidentes de transporte, morte provocada por animais, incêndios, entre outros; b – Suicídio; c – Agressão; d – Intenção não determinada.

Nesse último grupo (intenção não determinada), estão os mesmo fatos catalogados como agressão, mas não se sabe se foi ou não agressão. Não há informações sobre o que aconteceu: pode ter sido acidente, ainda que com a participação de outra pessoa, ou pode ter sido suicídio, dependendo do caso. Entre os casos de intenção não determinada, existem ainda as mortes em razão de fatos ou eventos também não determinados. Ou seja, em que não se sabe nem mesmo como o ferimento foi causado.

As mortes de intenção não determinada são causadas principalmente por objetos contundentes, arma de fogo, enforcamento ou estrangulamento e afogamento. No caso dos fatos não determinados, referem-se, em geral a traumatismos, fraturas, asfixia, queimaduras. Os atestados de óbito trazem a intenção não determinada na causa básica, acompanhada dos outros fatores (causas secundárias) que permitem identificar os ferimentos ou traumas encontrados.

Os casos reconhecidos de feminicídio estarão registrados entre as agressões; os feminicídios não reconhecidos, entre os casos de intenção não determinada. Ou seja, uma parte das mortes de mulheres com causas de intenção não determinada é de feminicídio oculto. Nem todos os casos de morte classificados com intenção não determinada podem ser considerados como feminicídio oculto, mas todos os casos de feminicídio oculto estarão nessa classificação.

O universo de análise do feminicídio, portanto, são todas as mortes registradas nos grupos agressão e intenção não determinada. Para a análise do feminicídio oculto, o universo é o grupo de mortes com intenção não determinada, que é objeto da presente pesquisa (códigos Y10 a Y34 da CID – Classificação Internacional de Doenças).

O recorte da faixa etária (15 a 59 anos) foi motivado por dois fatores, para evitar distorções. Para a faixa de até 15 anos, considerou-se que os casos não são diretamente relacionáveis a feminicídio. Nessa faixa etária não há variação significativa entre os percentuais masculino e feminino de mortes por intenção não determinada em relação a mortes por agressão. Não há uma especificidade feminina.

Na faixa etária a partir de 60 anos, há a utilização da classificação de intenção indeterminada para um grande número de casos de fratura de fêmur ou bacia, associados a osteoporose, e outros eventos comuns entre idosos – diferentemente do que acontece entre 15 e 59 anos, em que há predomínio de traumas, fraturas, asfixias, armas de fogo, entre outros que indicam mais claramente a possibilidade de agressão. Embora não se deva descartar a existência de feminicídio nessa faixa etária, a análise dos atestados de óbito seria distorcida.

Para a realização da análise, os mesmos tipos de óbito, na mesma faixa etária, foram catalogados para o sexo masculino, a fim de realizar as comparações necessárias.

A fonte dos dados são os arquivos de declarações de óbito de 2007 a 2016 do DATASUS.

Elvis Cesar Bonassa é doutor em Filosofia pela USP e diretor da Kairós Desenvolvimento Social


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