Há um engano renitente no pensamento político, aquele que
coloca um sinal de igual entre as palavras democracia e liberalismo.
Este engano é levado ao paroxismo em nosso tempo, quando o
liberalismo, antecedido da partícula neo, é dominante.
Engano partilhado muitas vezes mesmo por setores democráticos
ou de esquerda. E está enraizado na origem histórica que envolveu, desde o
século XVIII, a luta contra o poder absoluto das monarquias feudais (Ver Perry
Anderson, Linhagens do Estado Absolutista, São Paulo, 1985).
Naquela época a burguesia lutou para se desvencilhar do
poder dos reis que tolhia a livre ação do capital. Transformou a luta contra o
rei em luta contra o Estado, criando a confusão entre os conceitos de
liberalismo e democracia, passando a ver como democrática a luta pela livre
ação do capital que, segundo seus interesses, não podia ser regulamentado por
leis e regulamentos. Faz sentido, assim, que uma das primeiras providências do
governo que surgiu na França revolucionária de 1789 tenha sido alei de Le
Chapelier, de 14 de junho de 1791, que, a pretexto da liberdade para o capital,
proibiu os sindicatos, as associações de trabalhadores e as greves. E previa
penas que iam demultas à prisão e mesmo à pena de morte aos infratores. O
estado burguês que surgia, de liberal, transformou-se em tirania contra os
trabalhadores, colocando a liberdade de empresa (hoje diríamos “de mercado”)
acima de qualquer consideração democrática que reconhecesse os direitos do povo
e dos trabalhadores. Naquele momento já ficava clara a enorme diferença que há
entre os conceitos de liberalismo e democracia.
O liberalismo, como Domenico Losurdo demonstra em seus
escritos (como em Liberalismo - Entre civilização e barbárie, Editora Anita,
2006), conviveu inclusive com o mais nefando dos sistemas, a escravidão. Nele o
liberalismo colocou o direito de propriedade dos capitalistas acima do respeito
à liberdade individual. Liberaiscomo o brasileiro Nabuco de Araujo não tiveram
nenhum escrúpulo em relação à escravização de outros seres humanos.
Nos EUA, nação considerada como a “pátria” da democracia,
houve convivência semelhante desde os primeiros anos de independência. Thomas
Jefferson (1743–1826), um dos “pais fundadores” da nação, e o principal autor
da Declaração de Independência de 1776, ícone do liberalismo, que agiu para
criar um estado que não interferisse na vida dos cidadãos, foi um grande
latifundiário na Virgínia e foi dono de mais de180 escravos. Conciliou sua
crença liberal com aquilo que chamavam então de peculiar institution
(instituição peculiar), ou seja, a escravidão dos negros.
Outro ícone liberal estadunidense, John Calhoun, líder do
Partido Democrático e personagem de destaque na política dos EUA no início do
século XIX, foi um vigoroso defensor da liberdade individual, contra o poder do
Estado. Mas conciliava sua crença liberal com a defesa veemente da escravidão,
que via como uma forma de propriedade que devia ser garantida pela
Constituição.
Um exemplo recente, de nosso tempo, desta aliança entre
liberalismo e ditadura pode ser visto no apoio de economistas neoliberais que,
sob beneplácito de seu guru da Universidade de Chicago, Milton Freedman,
fizeram parte da quipe econômica da ditadura de Augusto Pinochet, no Chile.
Eles estivera, à frente das privatizações naquele país, e usaram a força da ditadura
para eliminar direitos sociais e trabalhistas (com o apoio da eliminação física
de opositores feita pela repressão da ditadura chilena), impondo as condições
favoráveis ao capital e aos “negócios”. Mesmo tendo tentado, anos depois,
distanciar-se de Pinochet, declarando que seu regime fora “terrível”, Milton
Freedman não economizou elogios à sua ação econômica em defesa dos interesses
do grande capital e da “livre empresa”.
A contradição mais forte, neste ponto, é justamente aquela
que há entre a defesa intransigente da propriedade e sua proteção contra a ação
regulatória que o Estado ou os governos podem promover, no sentido de
distribuir mais igualitariamente a renda e a propriedade.
A democracia efetiva, real, que beneficie a todos, e não
apenas aos donos do capital, não é a democracia formal que estes aceitam. E que
só consiste no exercício do direito de voto e de outras liberdades formais
(como a livre manifestação do pensamento, o direito de ir e vir, a liberdade
civil necessária para formalizar contratos, etc). A “igualdade perante a lei”
que existe nesta democracia, a única aceita pelos liberais, é apenas formal, e
nela impera a desigualdade social efetiva que deriva do poder do capital que se
sobrepõe a toda a sociedade, a todos os indivíduos que, confrontados com o
poder dos donos do dinheiro, são imensamente mais fracos e forçados à
submissão.
É nesse sentido que a democracia real,efetiva, exige a ação
da sociedade configurada em leis que regulam, para conter a ganância do capital
e tornar real a promessa contida na expressão “igualdade de todos perante a
lei”.
O liberalismo, desde meados do século XX, arremeda o
enfrentamento contra os reis, ocorrido duzentos anos antes, e simula
ideologicamente um antiestatista fora de moda e de época, baseado numa pretensa
ação “libertária” contra a presença do Estado.
Ora, a realidade social e política mudou! Os poderosos de
hoje são os capitalistas e o capital, sendo necessária a força e o pode do
Estado para promover o reequilíbrio entre os homens, para impedir que o
“mercado” impeça ao povo e aos trabalhadores o acesso à liberdade, aos bens
necessários à vida, ao trabalho, alimentação, moradia, saúde, educação, etc.,
etc., etc..
Capital e trabalho – capitalistas e trabalhadores – são
socialmente desiguais, a disparidade entre eles é produto da forma burguesa de
organização da sociedade e da produção de bens necessários a todos.
Desigualdade que jamais será eliminada pela mera aça do “mercado”, mas por
decisões sociais que cabe ao Estado democrático tomar.
Esta é a diferença fundamental entre liberalismo e
democracia: o liberalismo exige a liberdade que permita ao capital agir
livremente, concentrar riquezas e renda nas mãos de uma minoria ínfima e cada
vez mais poderosa e voraz, como a humanidade tem assistido nestes tempos de
domínio do neoliberalismo.
Para conter esta ganância destruidora do capital, a
democracia exige a força do Estado para ser efetiva e de fato permitir que
todos os seres humanos sejam iguais e tenham igual direito ávida e às
conquistas civilizatórias.
Via – Portal Vermelho
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