Pesquisa de laboratório da UFRJ quantifica a movimentação
econômica e monetiza os impactos sociais e ambientais das bikes.
Os benefícios individuais da bicicleta são bastante
conhecidos, principalmente por quem já pedala regularmente. Revelar seus
impactos coletivos é uma tarefa um pouco menos simples. Para isso, é
fundamental definir indicadores que possam mostrar de forma objetiva os ganhos
que a sociedade obtém quando a prática se dá em maior escala. O estudo Economia
da Bicicleta no Brasil encarou esse desafio e traz uma proposta metodológica
bastante interessante para mensurar o complexo econômico da bicicleta, que se
compõe de todas as atividades direta e indiretamente ligadas ao seu uso.
Nascido de uma parceria entre o Laboratório de Mobilidade
Sustentável (LABMOB), ligado à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, e a Associação Brasileira do Setor de
Bicicletas (Aliança Bike), o estudo realiza um admirável esforço metodológico
para, mesmo diante da dificuldade em obter alguns dados, construir indicadores
que permitem quantificar a movimentação econômica gerada em função do uso da
bicicleta e monetizar impactos sociais e ambientais da adoção desse modal em
detrimento de outras formas de deslocamento. O estudo é bastante honesto ao
falar das próprias limitações, resultantes da dificuldade de se conseguir
dados. E aqui reside seu caráter inovador. Em alguns casos, os dados necessários
não estavam disponíveis simplesmente porque nunca haviam sido medidos. Em
outros, os dados específicos referentes à bicicleta se encontram agregados a
outros dados, mais gerais.
Assim, por mais que uma das fontes utilizadas se refira, por
exemplo, a “Comércio Atacadista de Bicicletas, Triciclos e Outros Veículos
Recreativos” (grifo nosso), o estudo demonstra de diversas maneiras que a
bicicleta no Brasil é bem mais que um brinquedo para levar as crianças passear
aos domingos. Por mais que as estimativas estejam sujeitas a imprecisões,
oferecem provavelmente uma boa aproximação e são um ponto de partida bastante
sólido para pesquisas futuras. Talvez mais importante, constituem um relevante
documento para pautar o poder público nas cidades de todo o país, não somente
as capitais, na criação de seus indicadores internos (sujeitos a serem
publicizados por meio da Lei de Acesso à Informação) e, sobretudo, de seus
planos de metas.
O estudo foi estruturado em cinco dimensões: Cadeia
Produtiva, Políticas Públicas, Transporte, Atividades Afins e Benefícios, cada
uma delas subdividindo-se em temas e abordando diferentes aspectos do complexo
econômico da bicicleta. O restante desta matéria é dedicado a apresentar e
comentar algumas descobertas feitas pelo estudo, sem jamais pretender
substituir a sua leitura. A Economia da Bicicleta no Brasil é um documento que
precisa ser lido na íntegra e divulgado. Exceto no que se refere aos dados e
conclusões extraídos do estudo, as considerações que seguem são de
responsabilidade desta coluna.
A atividade diretamente relacionada à produção e ao comércio
de bicicletas é tratada dentro da dimensão Cadeia Produtiva. Por exemplo, as
5.178.356 bicicletas produzidas no Brasil em 2015 geraram um faturamento de
728,3 milhões de reais. O total de salários pagos na indústria em um ano (2016)
é da cifra de 174 milhões de reais, e o número de postos de trabalho na
fabricação de bicicletas caiu de 2013 para 2016, sendo que o número de
estabelecimentos fabris cresceu no mesmo período. O estudo destaca a
importância do comércio varejista de bicicletas e componentes, por ser a
atividade que conta com maior número de estabelecimentos e empregos, espalhados
por todo o país. A massa salarial total no varejo foi de 206 milhões de reais
em 2016.
Enquanto os dados de produção e comércio exterior sofrem
variações, por vezes bruscas, no período coberto pelo estudo, os números do
varejo mostram relativa estabilidade, especialmente a partir de 2010. No que se
refere a postos de trabalho, a comparação parece mostrar isso também. A queda
do emprego no setor fabril foi de 20,8% em três anos (redução de 8.869 postos
de trabalho em 2013, maior valor da série, para 7.028 em 2016), enquanto que no
setor varejista a queda foi de 8,7% em cinco anos (de 15.088 empregos em 2011,
maior valor da série, para 13.783 em 2016). Os dados mostram a inserção da
bicicleta em dois universos econômicos, cada um sujeito a forças de naturezas
diferentes: o universo dos grandes negócios e o universo das atividades
econômicas que servem diretamente às pessoas. O varejo, mais próximo do
cotidiano, mostra-se bem mais estável do que a indústria brasileira de
bicicletas, mais sujeita a fatores externos, inclusive do comércio
internacional.
A estabilidade do varejo parece ser mais um indício de que a
bicicleta está mais solidamente inserida na cultura brasileira do que
normalmente se pensa. Quem vive nas regiões mais centrais e observa o aumento
do número de ciclistas bem arrumados se deslocando rumo aos seus escritórios
muitas vezes não percebe a quantidade de pessoas que já estavam pedalando nas
periferias, ao raiar do dia, tendo na bicicleta o seu principal ou às vezes
único meio de transporte. Muitos moradores das capitais que, por andar de
bicicleta, acreditam fazer parte de uma revolução da mobilidade talvez ignorem
o quanto a bicicleta é um hábito consolidado, há décadas, em milhares de
localidades país adentro. Seja por escolha, hábito local, tradição de família
ou falta de alternativa, milhões de cidadãs e cidadãos brasileiros já usam e
continuarão usando esse meio de transporte. Isto mais uma vez reforça a
necessidade de as administrações públicas começarem a enxergar a bicicleta como
um fato relevante no campo da mobilidade e passar a levá-la em consideração em
suas decisões. Até porque, para aqueles a quem este tipo de argumento é
necessário, a bicicleta movimenta de diversas formas a economia, como está tão
bem demonstrado neste estudo.
A dimensão Políticas Públicas mede a parcela do complexo
econômico da bicicleta correspondente aos gastos que a administração pública
realiza para dar apoio ao uso desse modal de transporte. Em outras palavras
esta dimensão traz indicadores que podem mostrar, em séries históricas ou em
comparativos entre cidades, o quanto a bicicleta é levada a sério como um meio
de mobilidade urbana. Naturalmente, esperamos que estes indicadores cresçam
muito nos próximos anos.
Em 2017, investiu-se 1,2 bilhão de reais no Brasil inteiro
em Infraestrutura de Circulação para bicicletas, que compreende ciclovias,
ciclofaixas, faixas compartilhadas e sinalização de ciclorrotas. Se São Paulo
concentra o maior montante gasto, fica apenas em 11º lugar entre as capitais no
investimento per capita, sendo que Rio Branco ocupa o 1º lugar neste indicador.
No que se refere a Infraestrutura de Estacionamento, chama a
atenção o fato de o investimento em bicicletários e paraciclos se mostrar pouco
incorporado às políticas públicas na maioria das cidades estudadas, sobretudo
tendo em vista o fato de se tratar de um custo relativamente barato para o
grande efeito de incentivo ao uso do modal. Os dados obtidos para a cidade de
São Paulo, por exemplo, revelam um valor de 300 reais por cada paraciclo
instalado em 2016. Interessante notar que, em algumas cidades, poder público se
limita a ser apenas um incentivador da implantação de bicicletários e
paraciclos, por meio de leis ou recomendações, deixando a instalação a cargo do
setor privado.
BICICLETÁRIO PÚBLICO NO LARGO DA BATATA, EM SÃO PAULO. FOTO: JOÃO LUIZ/SECOM |
Quando falamos em infraestrutura de estacionamento, as
bicicletas funcionam de maneira semelhante aos automóveis: toda viagem começa e
termina em uma vaga de estacionamento (inclusive quando essa vaga fica na sala
ou no quarto do ciclista). Aliás, oferecer vagas gratuitas nas vias públicas é
uma das formas de as prefeituras incentivarem e subsidiarem o uso do transporte
individual motorizado. Além de reduzirem esse tipo de incentivo ao automóvel,
as prefeituras deveriam aumentar a oferta de bicicletários e paraciclos, como
uma forma inteligente e barata de fomentar o uso da bicicleta. É difícil
proteger uma bicicleta de furtos. A existência de um lugar seguro para deixá-la
pode muitas vezes ser condição para que a pessoa use a bicicleta no lugar de
algum outro modal.
Se queremos que as pessoas possam ir trabalhar, estudar,
fazer compras e frequentar bares e restaurantes usando a bicicleta, precisamos
de uma boa infraestrutura de estacionamento, ou seja, bicicletários seguros em
pontos estratégicos por toda a cidade. Para que os cidadãos possam
beneficiar-se da intermodalidade, é preciso oferecer bicicletários de
capacidade compatível com a demanda junto a todos os terminais de ônibus e
estações de trem e metrô.
Além disso, as prefeituras poderiam deixar de apenas
incentivar e passar a exigir que os edifícios comerciais privados ofereçam
vagas para bicicletas em número igual ou superior ao de vagas para automóveis.
Os efeitos disso na taxa de utilização da bicicleta e, consequentemente, na
paisagem urbana, apareceria em poucas semanas. E, voltando para a economia, a
movimentação no mercado de paraciclos e equipamentos para bicicletários seria
visível, com números significativos, nas edições posteriores deste estudo.
Os Sistemas Públicos de Bicicletas Compartilhadas existentes
hoje no Brasil são contratos nos quais uma operadora responsável pelo sistema
atua em conjunto com um patrocinador (sobretudo bancos e empresas do setor
médico), que paga à prefeitura um valor referente à outorga de utilização do
serviço para divulgar a sua marca. São apresentados dois estudos de caso,
feitos junto a duas operadoras que atuam em diferentes estados do país, com
base em dados fornecidos pelas próprias empresas. A verba movimentada por uma
delas, patrocinada por um banco, é da ordem de 80 milhões de reais para
implantação e mais 40 milhões de reais por ano investidos na manutenção do
sistema, gerando uma receita média anual de 5,8 milhões de reais.
Na realidade, muito longe de se tratar de uma política
pública, o que esses dados mostram é o valor de um espaço de mídia publicitária
instalado sobre uma frota de bicicletas. Para os patrocinadores deste tipo de
serviço, trata-se de uma oportunidade sem igual para fazerem a exposição qualificada
de suas marcas, associando-as a conceitos como saúde, estilo de vida e
sustentabilidade. Ao utilizar o sistema, o ciclista oferece seu corpo e sua
energia para compor um anúncio publicitário tridimensional ambulante.
Carros-propaganda com megafone e uma marca ou figura política aplicada pela
lataria, assim como aviões que puxam faixas publicitárias sobre as praias no
verão, ambos são modalidades similares de propaganda ambulante. Seria mais
justo se os ciclistas fossem remunerados para usar essas bicicletas ou, no
mínimo, pudessem usá-las sem custo em vez de pagar por isso, como acontece em
muitas versões desses sistemas. Mais correto ainda, o serviço deveria passar a
existir como uma política pública de fato, deixando a publicidade comercial
fora disso.
O estudo destaca a pouca atuação do Estado na regulamentação
e fiscalização dos sistemas de bicicletas compartilhadas. O resultado é que não
só a qualidade do serviço mas também muitos outros aspectos de sua operação,
como por exemplo os critérios para a distribuição das estações, são deixados a
cargo das operadoras e, consequentemente, das estratégias econômicas dos
patrocinadores. Assim fica difícil salvaguardar o interesse público desse tipo
de serviço que tem, entre outros, o importante papel de ajudar pessoas a
migrarem para esse modal.
Outro grande desafio encarado pelo estudo foi justamente o
de monetizar a economia obtida pelo uso da bicicleta no transporte urbano.
Dentro da dimensão Transporte, a temática Uso Pessoal avaliou os hábitos de
cinco famílias, de diferentes níveis econômicos, nas quais pelo menos um dos
membros utiliza a bicicleta regularmente em seus deslocamentos. Foram feitas
estimativas de qual seria o impacto anual no orçamento dessas famílias caso as
viagens atualmente realizadas em bicicleta fossem feitas por outros modais
(automóvel particular, ônibus, taxi e Uber). Os montantes são bastante diversos
entre as famílias mas, apenas para citar o automóvel particular, os gastos das
famílias ficariam entre 10 mil e 15 mil reais. O estudo teve o cuidado de levar
em conta não somente as despesas com combustível mas também os gastos
relacionados, como licenciamento, depreciação e seguro do automóvel. Estes
últimos são gastos que as pessoas normalmente esquecem ou têm mais dificuldade
de quantificar quando procuram calcular os custos do transporte motorizado
individual em suas vidas.
No que se refere a Ciclologística, foram realizados dois
estudos de caso, um dos quais fez uma contagem exaustiva dos estabelecimentos
comerciais no bairro paulistano do Bom Retiro. Dos 698 estabelecimentos que
fazem entregas, 114 (16%) o fazem por bicicleta e/ou triciclo, totalizando mais
de 2300 entregas a cada dia. Há ali 220 trabalhadores envolvidos com entregas,
sendo que 96% desses estabelecimentos são proprietários das bicicletas
utilizadas. Ainda que se trate de um caso bem localizado no território, os
dados mostram o grande potencial da bicicleta como meio de transporte de
mercadorias nos locais em que as condições geográficas e o tipo de negócio são
favoráveis para tal. De fato, 88% dos estabelecimentos que fazem entregas por
bicicletas afirmaram que a escolha se deve à rapidez e praticidade desse tipo
de transporte, enquanto apenas 8% mencionaram razões econômicas.
A dimensão Atividades Afins mede o impacto econômico de
atividades que têm a bicicleta como temática. Com maneiras bastante diversas de
atuação, as organizações que atuam no Cicloativismo movimentam verbas públicas
e privadas, que totalizaram R$ 5,1 milhões em 2016. De qualquer forma, um
levantamento como este dificilmente seria capaz de computar os valores
movimentados pelos inúmeros grupos informais que atuam de alguma forma em favor
da bicicleta e também pelas pessoas envolvidas com organizações formais e que
doam a elas o seu tempo e conhecimento de forma não remunerada.
A distribuição das verbas para pesquisa indica quais são os
assuntos que uma sociedade considera relevantes. Pesquisas produzem
conhecimento que vai nortear tomadas de decisão no futuro. Daí a importância de
se monitorar o universo de Pesquisa e Inovação sobre este assunto. O estudo
levantou 124 projetos de pesquisa focados na bicicleta, seus usos e seus
efeitos nas pessoas e na sociedade, entre 2007 e 2017. Esses projetos
movimentaram R$ 3,7 milhões e envolveram 270 pesquisadores.
Há no mundo países onde a cultura da bicicleta, no sentido
mais amplo do termo, é muito mais desenvolvida do que aqui. Muita gente pode
supor que a tendência é seguirmos pelos mesmos caminhos e, sendo assim,
bastaria tomar esses países como modelos e replicá-los. Pesquisas sobre o
universo da bicicleta, especialmente aquelas centradas em fenômenos sociais,
podem revelar informações importantes e propor soluções próprias, bem mais
sintonizadas com as características da nossa sociedade.
Neste capítulo do estudo encontram-se ainda as seções
Cicloturismo, Cicloempreendedorismo e Eventos Esportivos, nas quais são
apresentados estudos de caso que exemplificam o potencial desses setores para
gerar postos de trabalho e movimentar economias locais de maneira direta e
indireta.
Alguns dos impactos positivos decorrentes do uso da
bicicleta são abordados dentro da dimensão Benefícios. No que se refere a Clima
e Energia, supondo que as viagens feitas de bicicleta no Brasil aconteçam em
substituição a viagens que seriam feitas de automóvel, estima-se que o universo
de ciclistas brasileiro deixa de emitir 1.664 toneladas de material particulado
e 36.608 toneladas de monóxido de carbono por ano. Se as viagens de bicicleta
estiverem substituindo viagens de ônibus, pode-se dizer que os ciclistas
contribuem para que 30.784 toneladas de material particulado e 348.608
toneladas de monóxido de carbono por ano deixem de ser emitidas. Foi também
estimado que o total de quilômetros rodados em bicicleta por ano no Brasil
equivale a uma economia de combustível da ordem de R$ 291 milhões em gasolina
(caso essas viagens fossem feitas de automóvel) ou a R$ 80 milhões em diesel
(caso fossem feitas de ônibus).
Finalizando o estudo, o tema Saúde traz uma coletânea de
trabalhos científicos sobre o assunto. Encontramos aí as fontes primárias de
informações já um tanto familiares: a bicicleta contribui para a redução da
obesidade, da ansiedade, do estresse, do risco de derrame, diabetes, câncer e
doenças do coração; ajuda a aumentar a capacidade cardiorrespiratória, a
autoestima, o humor, a qualidade do sono. Por mais que, num certo grau, já
sejam parte do senso comum, é importante que esses benefícios continuem a ser
repetidos como mantras, para fazer frente a outros velhos mantras da sociedade
de consumo carrocrata como “Você fica mais bonito dentro de um carro”, “Pedalar
pela cidade é perigoso”, “Quem anda a pé é gentalha”.
CICLISTAS NO EIXÃO DO LAZER, EM BRASÍLIA. FOTO: ANDRÉ BORGES/AGÊNCIA BRASÍLIA |
Há também pesquisas que aprofundam essas questões. Uma delas
mostra que mesmo em cidades com níveis de poluição atmosférica como os de São
Paulo, os benefícios à saúde proporcionados pela bicicleta só começam a ser
superados pelos malefícios da poluição após sete horas ininterruptas de pedal,
tempo muito superior à duração dos deslocamentos em bicicleta com finalidade de
transporte pessoal. Portanto a poluição das grandes cidades, por vezes usada
como desculpa para a não adoção da bicicleta, está longe de representar aos
ciclistas riscos à saúde mais graves do que o simples fato de viver nesses
lugares.
Ao conceituar o complexo econômico da bicicleta, este estudo
está propondo indicadores úteis não apenas àqueles que podem ser economicamente
beneficiados de maneira direta pelo crescimento do setor. Indicadores como
estes refletem mudanças de hábito, tendências culturais e até mesmo
perspectivas de alteração significativa na paisagem urbana. Daí a importância
de se continuar monitorando estes e outros dados referentes ao uso da
bicicleta.
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