“O desgaste da Constituição Federal de 1988 não foi obra do
povo brasileiro: foi o resultado de políticas antidemocráticas e antipovo”.
Exemplo do constitucionalismo da modernidade, a Constituição
Federal de 1988 resultou influenciada pelo chamado constitucionalismo
dirigente, egresso da Segunda Guerra e que teve sua inspiração ainda no período
entre as duas guerras mundiais: a Constituição Mexicana de 1917 e a de Weimar
de 1919. Ambas procuraram dirigir o Estado e seu papel no desenvolvimento
econômico, na ampliação de direitos a todos, na defesa das riquezas nacionais,
num compromisso mínimo capaz de oferecer dignidade a trabalhadores e ao povo em
geral. Com forte intervenção no direito de propriedade – “terrível, não era
necessário que fosse um direito"(1) – a Constituição de Weimar, por
exemplo, sucumbiu, no que pese o reconhecimento dos grupos e partidos políticos
democráticos em sua defesa. Comunistas, democratas, socialistas e
sociais-democratas viram-me impotentes ante um inimigo tão poderoso e que
contou com amplo apoio de atores institucionais como conglomerados financeiros
e da imprensa, militares, judiciário, que permitiram o sucesso do nazismo e sua
tragédia, apesar de todas as advertências.
O compromisso mínimo de 1988 previu o Estado social, onde a
soberania econômica teria destaque, o que se materializou pelo art. 170 de
nossa Constituição. Um extenso rol de direitos e garantias fundamentais, com
determinação evidente de que o Brasil estraria inserido no panorama
internacional de defesa dos direitos humanos, terminava por fechar um arco de
objetivas pretensões da Constituição que não deixava dúvidas sobre sua opção.
Se nossos atores políticos democráticos tiveram capacidade de realizar uma
assembleia constituinte, de promulgar a Constituição, parece que não tiveram a
mesma capacidade diante de inimigos tão poderosos como os que terminaram por
relativizar os pontos centrais de nossa Constituição. A dilatação da atuação do
Poder Judiciário, amparada num apoio nunca visto da grande mídia, esvaziou o
sentido democrático da política em tal alcance, que membros do STF não hesitam
em falar abertamente de que ao Poder Judiciário cabe a vanguarda “iluminista”,
ou “a refundação da República e da Nação”. Igualmente, o mesmo Judiciário e os
órgãos de investigação como o Ministério Público tornam-se os primeiros a
defenderem a relativização do sentido de garantias constitucionais como aquela do
art. 5º, LVII – a presunção da inocência – exatamente num ponto em que a
Constituição definiu de forma inequívoca esta garantia como cláusula eterna. O
STF também permitiu que uma Presidente da República fosse destituída do cargo
sem crime de responsabilidade, enquanto poderia intervir, pelo menos para
figurar perante a história noutro patamar, a que nunca havia chegado.
Porque a melhor das Constituições que tivemos não foi capaz
de impedir o regresso? Talvez ainda seja cedo para organizar a complexa explicação.
Porém, parece-me possível que reflita sobre o papel de nossa sociedade. E vem
do maior representante do pensamento conservador autoritário brasileiro,
Oliveira Vianna, o olhar sobre a sociedade; não sobre o Estado. Somos
escravocratas; oligarcas, preferimos o privilégio dos estamentos sociais;
gostamos de ser servidos; nossas elites econômicas são incapazes de abdicarem
de sua posição subalterna ao capitalismo internacional. Temos enormes
dificuldades com a igualdade de todos perante a lei. Como almejar uma
República?
O desgaste da Constituição Federal de 1988 não foi obra do
povo brasileiro: foi o resultado de políticas antidemocráticas e antipovo.
Quando se viram os primeiros resultados de políticas concretas de inclusão e
diminuição de desigualdade entre os brasileiros, a reação não tardou e
deixou-se fantasiar de discursos, como o da meritocracia, na vã tentativa de
disfarçar o desprezo de uma elite que tem vergonha de seu povo; ao contrário da
benfazeja falta de vergonha que Constituição de 1988 exibiu neste sentido.
Decorridos 30 anos, nossa tarefa é dura, pois consiste em resgatá-la, o que
significa o enfrentamento decisivo contra o passado.
*Martonio
Mont'Alverne Barreto Lima é professor doutor da Universidade de Fortaleza
(Unifor)
Nota:
(1)Cesare Beccaria. Dei delitti e dele pene. Milano:
Letteratura italiana Einaudi. A cura de Renato Fabietti, 1973, p. 61. No
original: “... terribile, e forse non necssaroi diritto”.
Via - Portal Vermelho
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