Estive por duas semanas na China, atendendo ao gentil
convite do Comitê do Povo Chinês pela Paz e o Desarmamento dirigido ao Centro
Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta Pela Paz (CEBRAPAZ). Foram dias de
espanto, maravilha, quebra de paradigmas e muito aprendizado.
Creio que precisarei de alguns meses ou anos para compreender
tudo o que vi e aprendi naqueles dias, esforço de pensamento ao qual será
necessário somar o estudo aprofundado deste impressionante fenômeno social que
é a construção do socialismo com características chinesas.
Dentre os muitos temas que foram abordados pelos mestres que
nos acompanharam nessa visita, segui com particular interesse as explanações
acerca do sistema político chinês. É certo que eu já não acreditava na velha
cantilena de que a China é uma ditadura, tão propagada pelos meios de comunicação
monopolísticos e por um bom punhado de “entendidos”, inclusive cientistas
políticos e sociólogos do “mundo ocidental”. Explicar o sucesso da ação do
Estado chinês no planejamento econômico nacional pela simples fórmula de
“Estado autoritário” tem sido, há décadas, a explicação preguiçosa de boa parte
do que se produz nas academias a respeito da China. Na falta de vontade de
reconhecer a superioridade do planejamento socialista, que alavancou a economia
chinesa a um ritmo de crescimento que ultrapassa todas as grandes economias
capitalistas do planeta – em uma nação que era feudal e dividida entre
potências imperialistas há pouco mais de 70 anos -, evoca-se o autoritarismo de
Estado e o sufocamento do debate político e econômico como meios de se garantir
a estabilidade política necessária ao planejamento – como se aplacar os
dissensos sociais fosse a fórmula do sucesso. Por essa fórmula preguiçosa,
portanto, todos os governos autoritários deveriam obter sucesso econômico.
Sabe-se (e nós latinoamericanos o sabemos bem!) que isso não condiz com a
realidade.O socialismo com características chinesas vem sendo perseguido pelo
povo chinês sob a liderança do Partido Comunista, em um sistema político
complexo e extremamente capilarizado que compreende a existência de nove
partidos políticos. Além do PCCh, atuam o Comitê Revolucionário do Partido
Komintang na China; a Liga Democrática; a Associação da Construção Democrática;
a Associação Chinesa pela Democracia; o Partido Democrático de Camponeses e
Operários; o Partido Zhi Gong da China; a Sociedade Jiusam (Sociedade Três de
Setembro) e a Liga pela Democracia e Autonomia de Taiwan. Desde a vitória da
revolução de 1949, os partidos assinaram o compromisso em torno de um programa
mínimo, em torno do qual comprometeram-se com a unidade e o trabalho em um
regime de coexistência duradoura e supervisão mútua.
O mecanismo legislativo chinês é formado pela Assembleia
Popular Nacional (APN), que é a autoridade suprema do país e pela Conferência
Consultiva Política do Povo Chinês. A Assembleia Popular Nacional elabora,
modifica e executa a Constituição do país; verifica, modifica e aprova o
orçamento; supervisiona o governo, fiscaliza a aplicação dos recursos e também
fiscaliza a ação do Tribunal Popular Soberano.
APN é composta por 2.980 deputados mais 35 delegados
regionais (um para cada uma das 34 regiões e um representante das Forças
Armadas). Não há salário para a maioria dos deputados, que devem seguir
exercendo suas profissões (professor, operário, camponês, engenheiro etc.)
normalmente, afastando-se temporariamente para as sessões da Assembleia, que
ocorrem em março, depois da qual retornam ao trabalho. Para formar a Assembleia
Nacional são eleitos 2,67 milhões de deputados, em cinco níveis. As eleições
não são disputadas entre os partidos, mas entre os próprios cidadãos em suas
comunidades. Cada 10 eleitores podem indicar um representante para o primeiro
nível eleitoral, onde os mais votados passam a compor a lista para o segundo
nível e assim sucessivamente, saindo do nível comunitário para os níveis
seguintes: distrital, de províncias, regional e nacional. A Assembleia elege
159 deputados para participar de 10 comissões permanentes que têm a atribuição
de implementar as políticas aprovadas nas sessões. A ANP reúne-se,
simbolicamente, sempre no mês de março, porque é o mês da primavera, época de
semear.
O outro mecanismo, a Conferência Consultiva Política do Povo
Chinês, também é formado em cinco níveis. Sua primeira reunião ocorreu em 1949,
quando aprovou-se o Programa Comum, segundo o qual os partidos não comunistas
aceitavam a direção política do PCCh e todos comprometiam-se com a construção
de um país justo, soberano e moderno. A CCPPC promove consultas políticas,
supervisão mútua, acompanhamento da implementação do programa político e a
composição e participação dos partidos e representantes do povo no governo.
Chama atenção, ainda, a presença do PCCh em todos os níveis
da sociedade. As vilas, as fábricas, as empresas, todas contam com uma sala de
reuniões da célula local do partido. Além disso, a Constituição obriga as
empresas a garantir o espaço de organização sindical dos trabalhadores. A Liga
da Juventude Comunista da China conta com quase 100 milhões de membros,
distribuídos tanto no sistema educacional secundário e superior quanto nos
espaços de trabalho e zonas rurais.
Ao contrário do que se procura divulgar fora da China, o
sistema político implantado após a revolução de 1949, com as modificações que
sofreu ao longo dos anos, especialmente nos anos 1970, com a mudança no
estatuto do PCCh – que agregou à função de “vanguarda do proletariado” também a
de “representante de toda a nação” -, envolve a participação popular em todos
os níveis, conferindo ao governo e às decisões emanadas da Assembleia Nacional um
alto grau de legitimidade. Esta parece ser a melhor explicação para a adesão da
maioria do povo chinês ao sistema político vigente, ao invés das complicadas
fórmulas de “país com tradição autoritária e feudal” que teria substituído o
respeito ao imperador pelo respeito do Partido Comunista. Um argumento falso e
logicamente frágil, basta pensar que se o respeito ao imperador fosse tão forte
e inquebrantável a violenta revolução nacionalista de 1911, que derrubou a
dinastia Manchu e, depois, a revolução de 1949, que levou os comunistas ao
poder, não teriam sido possíveis. Ambos os movimentos políticos nasceram e
puderam se consolidar pela adesão massiva do povo chinês. Os setenta anos de
caminho para o socialismo, por sua vez, com todas as dificuldades que se
enfrentou e que ainda precisam ser enfrentadas, tampouco podem ser entendidos
como obra de um petit comitê desconectado de seu povo. A adesão dos chineses às
transformações sociais, políticas e econômicas é, sem sombra de dúvida, fator
central dos sucessos obtidos até aqui e deve-se, antes de mais nada, à sua
efetiva participação nos processos políticos.
* socióloga, Dra. em Geografia e membro do Conselho
Consultivo do Cebrapaz.
Fonte: Desacato
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