Fernando Braga da Costa é um psicólogo social brasileiro que
viveu uma experiência transformadora e que revela muitas coisas sobre o
comportamento humano, em relação às pessoas que consideram, de alguma forma,
“inferiores”.
Por Luiza Fletcher
Ele, voluntariamente, trabalhou por oito anos como gari, nas
ruas da Universidade de São Paulo. Com todas as experiências que viveu durante
todos esses anos, Fernando chegou à conclusão de que, para a maioria das
pessoas, os trabalhadores são vistos como “seres invisíveis, sem nome”.
Braga não trabalhava toda a jornada, apenas meio período, e
também não recebia o salário de R$ 400 como seus companheiros, mas, para ele, o
mais valioso não era o dinheiro, mas, sim, as experiências de vida que ganhava
todos os dias. Ele diz que essa experiência lhe ensinou a maior lição de sua
vida:
“Descobri que um simples bom dia, que nunca recebi como
gari, pode significar um sopro de vida, um sinal da própria existência”.
As coisas não eram fáceis e ele conta que experimentou como
é ser tratado como indiferente, com descaso e, muitas vezes, até mesmo com
falta de humanidade:
“Professores que me abraçavam nos corredores da USP passavam
por mim, não me reconheciam por causa do uniforme. Às vezes, esbarravam no meu
ombro e, sem ao menos pedir desculpas, seguiam me ignorando, como se tivessem
encostado em um poste, ou em um orelhão”
Baseado nessa experiência, Fernando conseguiu provar em sua
tese de mestrado, pela USP, publicada no ano de 2008, a existência da
“invisibilidade pública”, que prova que pessoas em determinadas funções de
trabalho não são vistas como pessoas, apenas como representantes das funções
que exercem. Por exemplo: muitas vezes garis não são vistos como pessoas,
apenas como “juntadores de lixo”.
Em uma entrevista realizada por Plínio Delphino, Fernando
conta melhor sobre como foi sua experiência durante os oitos anos como gari,
confira abaixo.
Como é que você teve essa ideia?
Fernando Braga da Costa – Meu orientador desde a graduação,
o professor José Moura Gonçalves Filho, sugeriu aos alunos, como uma das provas
de avaliação, que a gente se engajasse numa tarefa proletária. Uma forma de
atividade profissional que não exigisse qualificação técnica nem acadêmica.
Então, basicamente, profissões das classes pobres.
Com que objetivo?
A função do meu mestrado era compreender e analisar a
condição de trabalho deles (os garis), e a maneira como eles estão inseridos na
cena pública. Ou seja, estudar a condição moral e psicológica a qual eles estão
sujeitos dentro da sociedade. Outro nível de investigação, que vai ser
priorizado agora no doutorado, é analisar e verificar as barreiras e as aberturas
que se operam no encontro do psicólogo social com os garis. Que barreiras são
essas, que aberturas são essas, e como se dá a aproximação?
Quando você começou a trabalhar, os garis notaram que se
tratava de um estudante fazendo pesquisa?
Eu vesti um uniforme que era todo vermelho, boné, camisa e
tal. Chegando lá, eu tinha a expectativa de me apresentar como novo
funcionário, recém-contratado pela USP para varrer rua com eles. Mas os garis
sacaram logo, entretanto, nada me disseram. Existe uma coisa típica dos garis:
são pessoas vindas do Nordeste, negros ou mulatos em geral. Eu sou branquelo,
mas isso talvez não seja o diferencial, porque muitos garis ali são brancos
também. Você tem uma série de fatores que são ainda mais determinantes, como a
maneira de falarmos, o modo de a gente olhar ou de posicionar o nosso corpo, a
maneira como gesticulamos. Os garis conseguem definir essas diferenças com
algumas frases que são simplesmente formidáveis.
Dê um exemplo?
Nós estávamos varrendo e, em determinado momento, comecei a
papear com um dos garis. De repente, ele viu um sujeito de 35 ou 40 anos de
idade, subindo a rua a pé, muito bem arrumado com uma pastinha de couro na mão.
O sujeito passou pela gente e não nos cumprimentou, o que é comum nessas
situações. O gari, sem se referir claramente ao homem que acabara de passar,
virou-se para mim e começou a falar: “É Fernando, quando o sujeito vem andando,
você logo sabe se o cabra é do dinheiro ou não. Porque peão anda macio, quase
não faz barulho. Já o pessoal da outra classe você só ouve o toc-toc dos
passos. E quando a gente está esperando o trem logo percebe também: o peão fica
todo encolhidinho olhando para baixo. Eles não. Ficam com olhar só por cima de
toda a peãozada, segurando a pastinha na mão.”
Quanto tempo depois eles falaram sobre essa percepção de que
você era diferente?
Isso não precisou nem ser comentado, porque os fatos no
primeiro dia de trabalho já deixaram muito claro que eles sabiam que eu não era
um gari. Fui tratado de uma forma completamente diferente. Os garis são
carregados na caçamba da caminhonete junto com as ferramentas. É como se eles
fossem ferramentas também. Eles não deixaram eu viajar na caçamba, quiseram que
eu fosse na cabine. Tive de insistir muito para poder viajar com eles na
caçamba. Chegando no lugar de trabalho, continuaram me tratando diferente. As
vassouras eram todas muito velhas. A única vassoura nova já estava reservada
para mim. Não me deixaram usar a pá e a enxada, porque era um serviço mais
pesado. Eles fizeram questão de que eu trabalhasse só com a vassoura e, mesmo
assim, num lugar mais limpinho, e isso tudo foi dando a dimensão de que os
garis sabiam que eu não tinha a mesma origem socioeconômica deles.
Quer dizer que eles se diminuíram com a sua presença?
Não foi uma questão de se menosprezar, mas sim de me
proteger.
Eles testaram você?
No primeiro dia de trabalho, paramos para o café. Eles
colocaram uma garrafa térmica sobre uma plataforma de concreto. Só que não
tinha caneca. Havia um clima estranho no ar, eu era um sujeito vindo de outra
classe, varrendo rua com eles. Os garis mal conversavam comigo, alguns se
aproximavam para ensinar o serviço. Um deles foi até o latão de lixo pegou duas
latinhas de refrigerante cortou as latinhas pela metade e serviu o café ali, na
latinha suja e grudenta. E como a gente estava num grupo grande, esperei que
eles se servissem primeiro. Eu nunca apreciei o sabor do café. Mas,
intuitivamente, senti que deveria tomá-lo, e claro, não livre de sensações
ruins. Afinal, o cara tirou as latinhas de refrigerante de dentro de uma lixeira,
que tem sujeira, tem formiga, tem barata, tem de tudo. No momento em que
empunhei a caneca improvisada, parece que todo mundo parou para assistir à
cena, como se perguntasse: ´E aí, o jovem rico vai se sujeitar a beber nessa
caneca?´ E eu bebi. Imediatamente a ansiedade parece que evaporou. Eles
passaram a conversar comigo, a contar piada, brincar.
“Essa experiência me deixou curado da minha doença burguesa”
O que você sentiu, na pele, trabalhando como gari?
Uma vez, um dos garis me convidou para almoçar no bandejão
central. Aí eu entrei no Instituto de Psicologia para pegar dinheiro, passei
pelo andar térreo, subi escada, passei pelo segundo andar, passei na
biblioteca, desci a escada, passei em frente ao centro acadêmico, passei em
frente a lanchonete, tinha muita gente conhecida. Eu fiz todo esse trajeto e
ninguém em absoluto me viu. Eu tive uma sensação muito ruim. O meu corpo tremia
como se eu não o dominasse, uma angustia, e a tampa da cabeça era como se
ardesse, como se eu tivesse sido sugado. Fui almoçar não senti o gosto da
comida voltei para o trabalho atordoado.
E depois de oito anos trabalhando como gari? Isso mudou?
Fui me habituando a isso, assim como eles vão se habituando
também a situações pouco saudáveis. Então, quando eu via um professor se
aproximando – professor meu – até parava de varrer, porque ele ia passar por
mim, podia trocar uma ideia, mas o pessoal passava como se tivesse passando por
um poste, uma árvore, um orelhão.
E quando você volta para casa, para seu mundo real?
Eu choro. É muito triste, porque, a partir do instante em
que você está inserido nessa condição psicossocial, não se esquece jamais.
Acredito que essa experiência me deixou curado da minha doença burguesa. Esses
homens hoje são meus amigos. Conheço a família deles, frequento a casa deles
nas periferias. Mudei. Nunca deixo de cumprimentar um trabalhador. Faço questão
de o trabalhador saber que eu sei que ele existe. Eles são tratados pior do que
um animal doméstico, que sempre é chamado pelo nome. São tratados como se
fossem uma coisa.
Abaixo está o vídeo da entrevista com Fernando Braga da
Costa.
Que história incrível, não é mesmo? Ela nos convida a ter
mais empatia e respeito por todas as pessoas, independentemente de sua posição
social ou profissão.
Compartilhe essa incrível lição com seus amigos!
Nenhum comentário:
Postar um comentário