segunda-feira, 8 de outubro de 2018

Muito Prazer, chamo-me Jararaca

Salvo engano, há tempos quase ninguém mais lê o Caramuru – poema épico em dez cantos, de Santa Rita Durão, publicado em 1781. A premissa é duplamente infeliz: em primeiro lugar, porque sugere que cada vez se lê menos e pior, na universidade (e fora dela, haja vista o império do senso comum); o segundo motivo é que os internautas deixam de conhecer uma das personagens mais impactantes do que se convencionou chamar de poesia “árcade”, praticada no Estado do Brasil, possessão ultramarina do reino português, durante o Ancién Regime.


Por JEAN PIERRE CHAUVIN

Salvo engano, há tempos quase ninguém mais lê o Caramuru – poema épico em dez cantos, de Santa Rita Durão, publicado em 1781. A premissa é duplamente infeliz: em primeiro lugar, porque sugere que cada vez se lê menos e pior, na universidade (e fora dela, haja vista o império do senso comum); o segundo motivo é que os internautas deixam de conhecer uma das personagens mais impactantes do que se convencionou chamar de poesia “árcade”, praticada no Estado do Brasil, possessão ultramarina do reino português, durante o Ancién Regime.

Refiro-me, em particular, a Jararaca – índio retratado como malvado, violento e pérfido pelo talentoso frei/poeta luso-brasileiro. Por que recorro a um texto tão “ultrapassado”, ademais setecentista, coalhado de artifícios retórico-poético-teológicos? Porque, no dia de hoje (anotem esta data), um vetusto órgão veiculou editorial em que um historiador best-seller sugeriu extirpar o “lulo-petismo” na Universidade a que deve sua formação e onde ele mesmo leciona.

Um leitor que ainda acredite restar algo da res publica dos Estados Unidos do Brasil, poderia argumentar que se trata de jornal “sério”, com “credibilidade”, “isenção” etc. Afinal, é lido/assinado por uma quantidade considerável de brasileiros (que sonham com Miami ou Paris) dispostos a nivelar coração e mente ao nível rasteiro de incertas reportagens ou “artigos” de opinião.

Mas, como defender que, no mesmo editorial (gênero jornalístico, sujeito a regras do decoro e da etiqueta, vale lembrar), o distinto historiador aluda ao ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva como Jararaca? Seria uma referência ao vilão hiperbólico do poeta Durão? Parece não ser o caso.

Parêntese: a essa altura, porventura até mesmo o leitor mitomaníaco concorde que o referido jornal terá ido longe demais. É que, desde que passou a engrossar o discurso conservador de incerta (mas poderosa) elite socioeconômica brasileira – pretensamente culta, incorruptível, suprema, santa e civilizada – tornou-se mais difícil aderir ao que a maioria de seus articulistas dizem.

Convenhamos: uma coisa é determinado veículo adotar (ou avalizar) a postura refratária a determinado partido e/ou “ideologia” política (o que o transforma em plataforma política com sinal invertido, pois elege outra corrente ideológica e partido como “seus”); coisa bem diversa é atribuir a Lula a denominação comum a uma espécie rastejante da classe dos répteis.

Haverá cabimento em nomear como Jararaca um homem preso, sem provas materiais que justifiquem a sua reclusão arbitrária, orquestrada por uma trinca constituída pela toga, o conglomerado midiático e parte de nossa elite financeira?

Mas não desanime. Ainda. O melhor do pior está por vir.

Em determinado momento, o celebrado historiador (a quem o veículo recorre como enunciador do argumento de autoridade) indaga-se como a “jararaca (ainda) não foi morta”? Poderíamos responder a essa pergunta de várias formas.

Escolho uma.

Lula não foi aniquilado porque, durante o seu governo, a vida de dezenas de milhões de brasileiros mudou, deveras, para melhor. Isso porque o projeto de seu partido, com todas as ressalvas que possamos fazer, foi o mais inclusivo de nossa história, mediada por golpes de Estado.

Convido o especialista, tão afinado com a ideologia do veículo, a fazer contas honestas e mostrar como decresceram os investimentos em Educação, no pobre-rico Estado de São Paulo, à proporção que a legenda entreguista, que nada tem de social-democrata se manteve no poder.

Por obséquio, o internauta, que é discreto, apartidário e atento, releia o editorial a que me refiro e repare: ele é um acinte aos (e)leitores – quer eles votem, ou não, em Haddad/Manuela etc.

Caso tenha restado alguma ética na redação do jornal, que o veículo admita de pronto o seu, digamos, “equívoco” (reparem como é possível soar de modo educado). Ou será pedir demais que um jornal “de grande porte” não proceda de modo tão rasteiro, para não dizer... serpenteante?

Sugerir a extinção de uma Jararaca, ou pior, a morte de uma pessoa (cujos direitos estão em suspenso graças aos caprichos de um punhado de sujeitos, com o aval da imprensa dita “tradicional”) será desejo latente do historiador que colabora do editorial? Ou incitação manifesta ao crime?

Via Jornal GGN

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