sábado, 12 de janeiro de 2019

Depois da meia-noite

Tive aquele sonho. De novo. Ele nunca muda. E ainda que eu não queira contar, eu conto, porque você pede, e eu sempre falo.

Ilustração - Keops Ferraz
Por *André Cordeiro

O começo é o mesmo: estou em minha cama, não conseguindo dormir. O relógio da cabeceira mostra que já passa da meia-noite. Por alguma razão, sinto medo. Medo de uma presença estranha nos cantos do meu quarto. Como se estivesse me observando, respirando.

Isso dificulta que eu me acalme, que respire direito, que pense. Prefiro ficar debaixo das cobertas. Não posso sair. Tento raciocinar, digo a mim mesmo que tudo não passa da minha imaginação, que no escuro é igual na luz, nada muda. Mas é mentira.

Nada, nada vai me fazer achar que estou sozinho. Sei que não estou. Pelo menos não naquela noite.

O mais sensato seria permanecer ali. Mas você já ouviu esse sonho, sabe que não é isso que acontece. O barulho de um vaso se quebrando vem da sala num eco sibilante. Aquele som ressoa e prolonga-se até minha cabeça não aguentar de tanta dor. Quando ele para, noto algo errado: eu não tenho um vaso.

Nenhum vaso.

Decido sair da cama. Não acendo nenhuma luz, guio-me pela parede, conheço aquele apartamento muito bem. Abro a porta e sigo pelo corredor. Os móveis estão todos em seu devido lugar. Aquela estranha presença que havia sentido volta, porém com mais intensidade. Algo parecido com uma respiração rouca vem da sala. Ela é ritmada.

Avanço.

Ela aumenta.

Acelera.

Aumenta a cada passo que dou, a cada passo que estou mais próximo da sala. Volto a tremer. Minhas pupilas dilatam. Não quero olhar. Não posso. Tem alguma coisa ali, algo me observa.

Tem alguém ali.

Não consigo me conter. Preciso ver.

E vejo.

Ao fundo, numa poltrona, uma figura repousa. Está com as pernas cruzadas. Parece ser um homem de terno. É um homem. Sua pele é pálida. Vejo que ele sorri, mas só isso. Porque do nariz para cima só há sombra, como se tivesse apenas metade do seu rosto. Como se os dentes flutuassem no escuro.

Fico sem reação. Quando tento voltar ao quarto, ele solta uma risada. Ela me prende ao chão. O homem gesticula com os dedos, indicando para que eu sente próximo a ele. Não consigo fugir. Obedeço.

Tento não entrar em pânico. E por mais que eu deseje que aquilo seja mero delírio, o homem de terno parece mais real a cada passo. E aquele sorriso não fecha.

Quando sento, fico de frente a ele. O sorriso continua.

Encaramos um ao outro. Não consigo me mover. O seu sorriso abre-se ainda mais.

Até que ele me surpreende. Ele me faz uma pergunta, “o que você sonhou na noite passada?”. Eu respondo que é o mesmo sonho, que estou em minha cama, que ouço um barulho, que vou até a sala, que encontro um homem de terno e que ele me pergunta o que eu havia sonhado na noite passada.

“Como você sabe que sempre é um sonho?”. Porque o homem de terno sempre me pergunta o que eu sonhei na noite passada, que depois me faz essa mesma pergunta, que depois pergunta como eu gostaria de morrer.

Eu respondo que não penso na morte, que não me importo. Ele diz que é mentira. “Mentiroso, mentiroso, mentiroso”.

Ele se aproxima de mim. Me abraça. Suas mãos cravam em minhas costas. Ele volta a rir. E eu rio também. Nossas risadas ressoam em uníssono. Meu sorriso se torna o dele. Minha pele fica pálida. Meu corpo entorpecido.

Sento em sua poltrona.

Encaro a negritude da sala, sorrindo.

E espero por mim mesmo aparecer, para que eu possa me perguntar o que eu havia sonhado na noite passada.


*ANDRÉ CORDEIRO
Nasceu em São Paulo-SP (1993). É formado em Direito pela PUC-SP, trabalha como repórter e escreve nas horas vagas. Já publicou um conto na Revista Ponto da Editora SESI-SP e escreve poesias e frases no Instagram @andremmcordeiro

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