segunda-feira, 25 de março de 2019

Simbologia do Pavão Misterioso

O Romance do Pavão Misterioso, criado por José Camelo de Melo Resende, presumivelmente em 1923, e levado ao prelo com muitas modificações por João Melchíades, que assumiu a sua autoria, é o grande clássico do cordel brasileiro e, sem dúvida, o seu maior símbolo. O que chama a atenção na história é a hábil combinação dos motivos integrantes de contos novelescos e maravilhosos. O enredo gira em torno do amor devotado pelo jovem turco Evangelista à condessa grega Creusa (há que se atentar para a rivalidade histórica entre gregos e turcos como um ingrediente da trama):

Gravura de Jô Oliveira
Eu vou contar uma história
De um pavão misterioso
Que levantou voo na Grécia
Com um rapaz corajoso
Raptando uma condessa
Filha de um conde orgulhoso.

O retrato da princesa. 
Evangelista a “conhece” por meio de um retrato pintado por um hábil artista, presente de seu irmão mais velho, João Batista. A jornada do herói para conquistar a amada envolve um hábil “engenheiro”, que inventa um maquinismo voador, similar a um pavão, que pode pousar até no alto de uma palmeira, e, a um toque de botão, se transformar numa mala.

Entrelaçamentos

Os demais motivos também são familiares aos contos de tradição oral. O cativante episódio do retrato da jovem de rara beleza, pelo qual o rei (herói) se apaixona sem conhecê-la, é encontrado no conto O fiel João, dos Irmãos Grimm, e na versão brasileira Dom José, de Luís da Câmara Cascudo.

João Batista retirou
O retrato de uma mala
Entregou ao rapaz
Que estava de pé na sala
Quando ele viu o retrato
Quis falar tremeu a fala.

O isolamento da jovem por ordem do pai, o tal “conde orgulhoso” no Romance do Pavão, para preservar sua inocência ou evitar o cumprimento de uma profecia, como no mito grego de Dânae, é outro motivo recorrente e está presente no conto popular brasileiro O rei doente do mal de amores, recolhido por João da Silva Campos. No cordel O papagaio misterioso, de Luís da Costa Pinheiro, a princesa vive reclusa no palácio por estar fadada a casar-se com um rapaz plebeu. O herói que penetra numa fortaleza no bojo de um animal mecânico aparece na História de Carlos Magno, no capítulo dedicado ao “leão de ouro”, com o qual o paladino Roldão penetra na fortaleza de Tristeféa para resgatar a princesa Angélica, filha de Abderraman, seu grande inimigo, com quem se casará. O gatilho da história, aliás, também é um retrato de uma jovem de beleza inigualável que o herói adquirira junto a um mercador. A versão em cordel, de João Melchíades, pode ser uma das prováveis inspirações de José Camelo.

As três noites no quarto da (o) amada(o) são constantes dos contos de encantamento. O truque, que equivale ao recurso Deus ex machina, com o qual o herói ludibria os soldados do conde, pegando a mala/Pavão no alto da palmeira, denuncia a origem oriental da história, encontrando similar num dos episódios do conto O cavalo encantado (também uma máquina voadora) das Mil e uma noites.  Há quem associe equivocadamente, no entanto, o enredo do Pavão Misterioso ao de Aladim e a Lâmpada Maravilhosa, por conta, talvez, da aproximação óbvia entre a ave mecânica e o tapete voador. Se há uma aproximação, essencialmente no motivo do rapto, esta se dá com o conto do Cavalo encantado, que, na tradição sufi, na história do príncipe Tambal, se transmuta num cavalo de madeira fabricado por um marceneiro, com botões que, girados em determinadas posições, elevavam-no ao ar, tal e qual no romance de cordel:

Evangelista subiu
Pôs um dedo no botão
Seu monstro de alumínio
Ergueu logo a armação
Dali foi se levantando
Seguiu voando o pavão.

Pavão Misterioso. Xilogravura de Lucélia Borges (matriz)
Simbologia



Para além dos motivos estruturantes da história, outro aspecto relevante deve ser levado em conta: o simbolismo do pavão. Não nos esqueçamos de que, segundo uma tradição indiana, ele é a montaria de Buda e de outras divindades, talvez por sua identificação ao Sol. É também a ave de Krishna, que com ela se confunde. No Islamismo, representado de cauda aberta, é um símbolo do universo, da totalidade. Associado aos cem olhos do cão Argos, morto por Hermes, tornou-se, na mitologia grega, a ave de Hera, a deusa do casamento. Em se tratando do nosso cordel, apesar de muitos enxergarem em seu enredo elementos da ficção científica, o adjetivo “misterioso”, presente desde o título, ressalta seu complexo simbologia, ressaltada pela vigorosa composição musical do cearense Ednardo: “Tudo é mistério nesse seu voar”.

Blogue do poeta e pesquisador Marco Haurélio.

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