sexta-feira, 3 de maio de 2019

Há 22 anos, Brasil perdia Paulo Freire

Apesar do renome internacional do pedagogo, Jair Bolsonaro tenta apagar legado do patrono nacional da educação.


Lu Sudré

No dia 2 de maio de 1997, o filósofo e educador Paulo Freire falecia vítima de infarto no miocárdio. Foram 75 anos de vida, a maior parte dedicada à criação de métodos inovadores de educação com foco na transformação social. Essa militância tornou a imagem do senhor de barbas brancas e óculos arredondados, assim como sua obra, reconhecida internacionalmente.

Brasileiro mais homenageado da história, o pernambuco autor de quase 40 obras ganhou dezenas de títulos de doutor honoris causa de universidades da Europa e América. Em 1986, recebeu o prêmio da Unesco de Educação para a Paz. 

Seu modelo de educação, utilizado no mundo todo, parte do princípio da humanização do ensino e do reconhecimento da história e da cultura do aluno que, junto com o professor, passa a construir o processo de aprendizagem. Um ensino horizontal, onde todos ensinam e aprendem.

:: Por que as ideias de Paulo Freire ainda incomodam? ::

Durante a ditadura civil-militar brasileira, o método de alfabetização do pedagogo foi considerado uma ameaça à ordem. Para fugir da perseguição dos militares, Paulo Freire permaneceu exilado durante 16 anos.

Mesmo passadas mais de duas décadas de sua morte, as ideias do educador ainda incomodam. Por ser considerado um “propagador de ideias perigosas” e “doutrinador marxista”, em 2017, o Movimento Brasil Livre (MBL) organizou um abaixo-assinado online pela revogação da lei 12.612, de 2012, sancionada pela presidenta Dilma Rousseff, que concedeu o título a Freire.

O documento atingiu as 20 mil assinaturas necessárias para se converter em sugestão legislativa e foi debatido no Senado Federal. No entanto, após análise da proposta, a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) da Casa manteve a honraria à Paulo Freire.

Mesmo com o pedido negado pelo Senado, o educador continua sendo alvo de ataques. Em declarações recentes, Jair Bolsonaro (PSL) disse que pretende alterar o patrono da educação brasileira, título concedido a Paulo Freire em 2012. O desejo do presidente é acompanhado de muitos outros. A deputada Caroline de Toni (PSL-SC), já havia apresentado um projeto de lei na Câmara para revogar o título.

Na contramão do bolsonarismo, nesta quinta-feira (2), em memória, o governador Flávio Dino (PCdoB), concedeu ao educador a condecoração máxima do Estado do Maranhão por “Reconhecimento à importância de sua monumental obra para a educação em todo o mundo”.

:: Paulo Freire, 97 anos: o legado do brasileiro que ensinou o mundo a ler a si mesmo ::

Em entrevista à revista argentina La Garganta Poderosa, da organização de vilas e favelas La Poderosa, a também educadora Sofia Freire Dowbor, neta de Paulo Freire, criticou as ofensivas do governo contra a imagem de seu avô.

“Bolsonaro propôs entrar com um lança-chamas no Ministério da Educação para destruir até o último vestígio do que meu avô nos deixou. Quer anular o pensamento crítico e o trabalho em grupo”, disse Dowbor.

“Hoje, mais do que nunca, a educação popular é fundamental para gerar um ser coletivo, porque como bem dizia meu avô, ‘quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor’”, afirmou, exaltando o legado do pedagogo.

Autor do livro “Comunicação e cultura: As ideias de Paulo Freire”, publicado em 2011, Venício Artur de Lima explica ainda que o pedagogo também deixou um marco na área da comunicação.

Venício estuda os conceitos de Freire desde a década de 70, quando estava exilado e fez doutorado na área de comunicação social no exterior. “Ele deu uma contribuição teórica e prática para quem se interessa pelo campo da comunicação que, do meu ponto de vista, é válida até hoje. Já havia uma tradição anterior a ele de se estudar a comunicação, mas ele introduziu uma dimensão política nesse estudo”, comenta o especialista.

:: Para esse novo golpe, tentam exilar de novo Paulo Freire ::

O professor emérito da Universidade de Brasília (UNB) também destaca as contribuições de Freire na área dos estudos da cultura. “Ele introduziu o conceito de cultura do silêncio, que se aplica até hoje. Faz parte da história dos oprimidos, dos excluídos no Brasil. A contribuição dele para a comunicação e para a cultura é absolutamente fundamental”, ressalta Venício.

Referência internacional

Lançado em 1968, o livro "Pedagogia do Oprimido", sua principal obra, completou 50 anos ano passado e se mantém como único livro brasileiro citado na lista dos 100 títulos mais pedidos pelas universidades de língua inglesa.

Venício de Lima relembra que, em dezembro do ano passado, a “Revue Internationale D’Éducation”, importante publicação da área de educação desenvolvida pela Universidade de Sorbonne, na França, produziu um dossiê sobre as figuras mais importantes da educação de todos os tempos.

:: Paulo Freire entre os maiores educadores de todos os tempos ::

Entre os nomes de Confúcio, Platão, Sócrates, Rousseau e Freud, estava o de Paulo Freire. “É no mínimo paradoxal que haja esse reconhecimento universal sobre a obra e importância do Paulo Freire e no Brasil esteja acontecendo o que está acontecendo. Eu só posso atribuir isso ao desconhecimento”, argumenta.

Sobre os ataques à figura do educador, Lima afirma concordar com a opinião de Ana Maria Freire, viúva do filósofo, cedida em entrevista ao jornal O Globo no início do mês passado.

“Aqueles que, inclusive o senhor presidente da República, combatem Paulo Freire hoje desconhecem o que ele escreveu, o que ele fez, o que ele pensou e o que ele era. Basta ver o reconhecimento dele fora do Brasil”, critica.

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