quarta-feira, 3 de julho de 2019

Liberais vs. Conservadores: uma história muito recente

A aparente cisão entre liberais e conservadores talvez tenha uma história muito mais recente do que se costuma admitir. Existem diferenças de grau mas não de natureza entre o atual liberalismo e o conservadorismo e, da mesma forma, entre o neoliberalismo e o fascismo.

Clintons e Cheneys no enterro de John McCain: a oposição nominal é uma forma de manter conflitos aparentes, enquanto trabalham juntos no mesmo projeto político.

Por Rogério Mattos
No GGN

Ideias fora do lugar?

Existe no Brasil um estranho debate a respeito da recepção e implantação das ideias liberais por aqui. Num ensaio antigo e famoso, As ideias fora do lugar, Roberto Schwarz parece ter pautado pela primeira vez o problema de maneira mais ampla. Existe uma outra menção sobre essa “ideia fora do lugar”, isto é, da aplicação do liberalismo num país de tradição iliberal, que é uma menção feita por Celso Furtado em sua Formação Econômica do Brasil sobre o barão de Cairu: o liberalismo no Brasil seria resumido pela postura desse político conservador, ao mesmo tempo liberal e escravocrata.

Por outro lado, se olharmos do ponto de vista da história dos EUA ou a do Partido Democrata do século XIX, não só de Thomas Jefferson, mas também de Andrew Jackson e Aaron Burr, eles construíram o que popularmente se chamou de “democracia jeffersoniana”, ou seja, livre-mercado mais escravidão. Nesse caso, o Partido Republicano, do Hamilton, Carey e Lincoln, não era conservador, como também não era pró-escravidão nem livre-mercadista. Pelo contrário, estava muito mais próximo do que se chama hoje de “progressismo”.

O conservadorismo estava com a facção britânica, pró-mercado. O império britânico no século XIX, sendo comandado por um Tory ou Whig, é o lugar de difusão do livre-mercado e, ideologicamente, do liberalismo. O cinismo da política britânica, como é sabido, chegava ao ponto de afundar navios negreiros para “combater a escravidão”.

A aparente cisão entre liberais e conservadores talvez tenha uma história muito mais recente do que se costuma admitir. Existem diferenças de grau mas não de natureza entre o atual liberalismo e o conservadorismo e, da mesma forma, entre o neoliberalismo e o fascismo. É o que podemos ver em alguns poucos, mas relevantes exemplos, do século XIX ao atual.

A recente oposição entre “conservadores” e “liberais”
A dicotomia conservador-liberal aparece com força no pós-guerra, principalmente depois da década de 1970, com o avanço da desregulamentação financeira em todo o mundo [aqui]. Os setores não conservadores, cada vez menos dispostos a se voltar contra a hegemonia neoliberal, e muito menos propor políticas efetivas não só de controle fiscal (taxações), mas de crédito, passam a se identificar com o liberalismo a partir da pauta de costumes.

Quando o Estado nacional ou o executivo perde sua capacidade de gerar crédito em larga escala para o investimento na economia física, o discurso anti-liberalista (não conservador, talvez “progressista”) perde espaço. Assim, conservador e liberal atuam em áreas meramente ideológicas e no discurso das ações individuais, ou seja, a pauta dos costumes, como exemplifica bem a suposta oposição entre um Dick Cheney e uma Hilary Clinton, ou desta com McCain, sempre aliados em prol da “democracia”. Hillary foi parceira de McCain

É uma mescla interessante, com certeza. Dick Cheney, o presidente de fato dos EUA durante a era Bush Jr., é representativo da palavra considerada palavrão para muitos, o “liberal-fascismo”. Com a atual ascensão da extrema-direita como quinta coluna de um liberalismo em descrédito, a história se repete de novo. Parece que esqueceram um dos eventos fundadores da aliança perversa, quando a City de Londres articulou para perdoar as dívidas de guerra da Alemanha e ajudar no êxito do recém alçado ao pode, Adolf Hitler.

Atualmente se dá a mesma coisa: com todo o alarido a respeito do protecionismo do Trump, ele não é capaz de tomar nenhuma medida minimamente eficiente para contornar o colapso econômico dos EUA. Com todo seu conservadorismo, ele comemora como um grande feito o crescimento do índice Dow Jones logo depois de retirar taxação dos mais ricos. Em linhas gerais, a política de Trump, na economia, é a mesma de Obama em seu segundo mandato: procurar por meios heterodoxos reverter a necessidade de manter os mercados funcionando através da flexibilização quantitativa, das taxas negativas de juros, porém sem vislumbrar uma solução efetiva para se sair dessa espiral do caos.

Fundamentalmente, todo esse debate a respeito de um “identitarismo” pós-moderno, pós-democrático, etc., e liberal, contra o conservadorismo tradicional dos políticos republicanos, revela a incapacidade, também sentida na Europa sobre outras bases, de se formular uma agenda anti-liberal e não conservadora. Conservadores e liberais se revezam no poder tanto na Europa quanto nos EUA e nada de relevante acontece além de variações do mesmo sistema de livre-mercado. Para acabar com essa dicotomia meramente identitária, teria que se falar em política de crédito barato e em largo prazo para o desenvolvimento científico e tecnológico e da infraestrutura de cada país. Isso, pelo menos no Ocidente, não é realidade pelo menos desde o Plano Marshall ou o Projeto Apollo.

Porque não existiu a antítese “liberal” x “conservador” no século XIX
Uma primeira informação relevante é o assassinato do último presidente dos EUA filiado à facção política de Abrahan Lincoln, William McKinley:

A Comissão Intercontinental de Ferrovias, iniciada pelo Secretário de Estado estadunidense James Blaine, empregou engenheiros das Forças Armadas para a pesquisa e elaboração do projeto das linhas unindo os Estados Unidos com o Brasil e Argentina, apresentando o mapa completo com as rotas projetadas, ao presidente William McKinley, em 1898. McKinley, extremamente a favor do Sistema Americano, comemorou os planos de Blaine como o futuro da humanidade, em seu discurso de 1901 na Exposição Pan-Americana, em Buffalo – onde foi assassinado numa operação dirigida pelos britânicos.

Dennis Small, A Ponte Terrestre Mundial: Redescobrindo a América

A partir daí o Partido Republicano foi completamente desbaratado a partir de suas premissas originais, ou seja, em seus objetivos em harmonia com os princípios da Independência dos Estados Unidos. Tanto o primeiro Banco Nacional desse país, dirigido por Alexander Hamilton, quanto o segundo (reerguido depois de sua destruição pela facção “democrática” jeffersoniana), o de Nicolas Biddle, tinham como premissas:

O protecionismo econômico, não limitado apenas à proteção da indústria nacional através do aumento das taxas aduaneiras, como também taxações nas exportações para impedir a preponderância de moeda estrangeira no país, em especial, o ouro, na época amplamente utilizado pelo Império Britânico.
O intuito do “duplo protecionismo” não era por mera valorização da moeda nacional, mas para a manutenção do sistema de crédito. Ao contrário dos pagamentos em ouro, que deveriam ser liquidados em curto termo, as cartas de créditos e os greenbacks mantinham um sistema complexo de investimento na economia física. Seu objetivo era a quitação em médio e longo prazo, priorizando os investimentos produtivos.
Assim, não se pode compreender o protecionismo econômico nos EUA do século XIX como desvinculado do sistema de crédito público. Caso consultado os documentos da época, em especial os produzidos pelo secretário do Tesouro Nicolas Biddle, os relatórios de Alexander Hamilton e os trabalhos de Henry Carey, a disputa se dava não entre “conservadores” e “liberais”, mas entre facções nacionalistas e as associadas ao imperialismo britânico. Conservadores e liberais, tanto no EUA quanto no Reino Unido, estavam unidos em torno da mesma política de livre-comércio e ao sistema de plantations dos estados escravistas do sul.
Com o assassinato de McKinley em 1901, todo o sistema político-partidário americano passa por um completa reconfiguração. As bandeiras de soberania nacional, crédito público e investimento produtivo irão reaparecer décadas depois na plataforma de governo do democrata Franklin Roosevelt. Desde sua presidência até a de John Kennedy, quando o último grande projeto norte-americano, o Apollo, é colocado na pauta do dia, o Partido Democrata cumpre o papel que no século XIX coube aos republicanos.

A partir principalmente da década de 1970 começa o surgimento de oposições parlamentares meramente nominais. A famosa oposição entre “conservadores” (filiados ao Partido Republicano) e “liberais” (filiados ao Partido Democrata), começa a aparecer com mais força como sinônimo de democracia à americana.. Seria uma afronta à história do primeiro ser considerado meramente “conservador” e um total desvio político quando o partido de Roosevelt passa a se identificar com o liberalismo.
Com um vocabulário pobre, dificilmente se consegue ver a história recente de um modo mais amplo.

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