domingo, 26 de julho de 2015

Ex-militar conta como jovens foram queimados vivos na ditadura chilena

Foram 29 anos de silêncio, ameaças de morte contra ele e sua família, sentimento de culpa e depressão, até que, na noite desta terça-feira (21), o ex-soldado Fernando Guzmán resolvesse contar tudo o que sabia sobre o caso “Queimados”, um dos mais emblemáticos casos de violação dos direitos humanos durante a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990).



A confissão aconteceu no escritório do juiz Mario Carroza, da Corte de Apelações de Santiago – o mesmo que investigou os acontecimentos durante o Golpe de Estado de 1973 e morte do ex-presidente Salvador Allende (1970-1973), e que ainda trabalha no caso da morte do poeta Pablo Neruda.

Em entrevista ao canal estatal TVN, Guzmán contou como seus colegas, liderados pelos tenentes Julio Castañer e Pedro Fernández Dittus, queimaram vivos o fotógrafo Rodrigo de Negri e a estudante Carmen Gloria Quintana – a segunda conseguiu sobreviver às queimaduras, o que permitiu que o caso fosse conhecido pela opinião pública.

Guzmán também revelou como funcionou o pacto de silêncio que manteve a impunidade sobre o caso durante quase três décadas. “Eu não participei da ação. Sou muito católico, e, quando me pediram para queimar uma pessoa viva, aquilo foi contra os meus princípios. Levei uma reprimenda no ato, e me afastei. Eu vi o tenente Castañer ateando o fogo sobre os dois jovens, mas depois não consegui mais olhar. Os gritos da moça eram assustadores”, contou.

Caso “Queimados”

No dia 2 de julho de 1986, um grupo de estudantes da Universidade de Santiago realizava um protesto com barricadas na Avenida General Velásquez, no centro da capital chilena, quando foi interceptado por uma patrulha militar. Guzmán era o operador dessa patrulha, que conseguiu capturar apenas uma das manifestantes, a estudante Carmen Gloria Quintana. O fotógrafo Rodrigo de Negri, que registrava o evento, tentou ajudá-la a escapar e também foi detido pelos soldados.

“A patrulha era feita por dois veículos que traziam uns dez homens em total”, contou Guzmán na confissão. “Eu estava no que chegou depois, junto com o tenente Castañer. Quando desço do carro, eu vejo os dois: o homem estava deitado de barriga para o chão, a moça estava de pé contra a parede com um soldado segurando o seu braço.”

Guzmán afirmou que a ordem para queimar os prisioneiros partiu do tenente Julio Castañer. “A patrulha que chegou primeiro também apreendeu um galão de querosene com os manifestantes, provavelmente usado pra fazer a barricada. Castañer ordenou que se jogasse combustível sobre os dois.” O relato conta que os demais soldados banharam Carmen Gloria Quintana com querosene da cabeça aos pés. Já Rodrigo de Negri, somente pelas costas. Finalmente, o mesmo Castañer teria iniciado o fogo com um isqueiro.

“O tenente Castañer foi quem disse que era preciso matá-los e desaparecer com os corpos. O tenente Fernández Dittus se opôs, porque ele também é católico, mas depois aceitou a determinação, quando Castañer disse que haveria consequências se eles seguissem com vida”, contou Guzmán ao juiz Carroza.

Depois de queimar os prisioneiros, os militares levaram os dois, carbonizados a uma área rural a 20 quilômetros do perímetro urbano de Santiago, sem perceber que ambos ainda estavam vivos. “Quando despertei, senti uma dor imensa, não conseguia gritar, não conseguia me mover bem, por sorte apareceu um sujeito que nos acudiu e nos levou a um hospital próximo. O Rodrigo também me ajudou a levantar, ele parecia estar menos afetado que eu”, lembrou ela, hoje professora de psicologia, em entrevista para o documentário “Chile: As Imagens Proibidas”, do canal Chilevisión. Na verdade, Rodrigo de Negri, então com 19 anos, teve o tórax comprometido de forma irrecuperável, e uma infecção pulmonar acabaria levando-o à morte, quatro dias depois.

Horas depois do resgate dos dois jovens, o Exército chileno emitiu um comunicado dizendo que as queimaduras haviam sido provocadas pela explosão de um coquetel molotov que eles mesmos teriam carregado antes da captura, e que o pessoal militar havia salvado suas vidas contendo o fogo com cobertores. Ainda assim, foi aberta uma sindicância interna da Justiça Militar, que determinou a prisão do tenente Dittus pelo crime de negligência. No entanto, ele foi solto após cumprir 600 dias de presídio, após sua defesa comprovar perante a corte marcial que ele sofre de “psicopatia orgânica”, o que também lhe valeu uma pensão estatal por invalidez.

Pacto

Quando os corpos foram resgatados, Guzmán e todos os militares envolvidos no caso foram escondidos no Forte Arteaga, uma base do Exército localizada na cidade de Colina, na região metropolitana da capital. Lá, eles passaram duas semanas recebendo instruções sobre o que deveriam falar à Justiça Militar. “Foi como iniciou o pacto de silêncio. Era proibido falar sobre o que aconteceu. Era proibido dizer qualquer coisa diferente da versão divulgada oficialmente. Quem abrisse o bico arriscava represálias contra si ou contra sua família”.

O ex-soldado revelou também contou que se retirou poucos meses depois, e que passou vários anos sofrendo de depressão profunda devido ao episódio. “Eu ainda tenho vivo na minha memória os gritos daquela moça, era como ver alguém narrar a própria morte. Aquilo acabou com a minha vida, nunca consegui me recuperar”. Guzmán afirmou, em entrevista para a TVN, que havia pensado em confessar tudo outras vezes, mas que havia desistido devido a ameaças de ex-superiores.

O testemunho de Guzmán levou o juiz Mario Carroza a determinar a prisão de sete ex-oficiais, entre eles os tenentes Castañer e Fernández Dittus. “Fizemos todos os interrogatórios nesta quarta-feira (22/7) e decidimos manter a prisão de cinco dos sete réus”, explicou Carroza, em entrevista coletiva para a imprensa local.

O Palácio de La Moneda também falou sobre o caso. Marcelo Díaz, porta-voz do governo, afirmou que “a confissão de Fernando Guzmán é um grande passo para busca pela verdade, mas ainda falta que outras pessoas também tenham a coragem de romper o silêncio e colaborar com a Justiça.”


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