Foram 29 anos de silêncio, ameaças de morte contra ele e sua família, sentimento de culpa e depressão, até que, na noite desta terça-feira (21), o ex-soldado Fernando Guzmán resolvesse contar tudo o que sabia sobre o caso “Queimados”, um dos mais emblemáticos casos de violação dos direitos humanos durante a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990).
A confissão aconteceu no escritório do juiz Mario Carroza,
da Corte de Apelações de Santiago – o mesmo que investigou os acontecimentos
durante o Golpe de Estado de 1973 e morte do ex-presidente Salvador Allende
(1970-1973), e que ainda trabalha no caso da morte do poeta Pablo Neruda.
Em entrevista ao canal estatal TVN, Guzmán contou como seus
colegas, liderados pelos tenentes Julio Castañer e Pedro Fernández Dittus,
queimaram vivos o fotógrafo Rodrigo de Negri e a estudante Carmen Gloria
Quintana – a segunda conseguiu sobreviver às queimaduras, o que permitiu que o
caso fosse conhecido pela opinião pública.
Guzmán também revelou como funcionou o pacto de silêncio que
manteve a impunidade sobre o caso durante quase três décadas. “Eu não
participei da ação. Sou muito católico, e, quando me pediram para queimar uma
pessoa viva, aquilo foi contra os meus princípios. Levei uma reprimenda no ato,
e me afastei. Eu vi o tenente Castañer ateando o fogo sobre os dois jovens, mas
depois não consegui mais olhar. Os gritos da moça eram assustadores”, contou.
Caso “Queimados”
No dia 2 de julho de 1986, um grupo de estudantes da
Universidade de Santiago realizava um protesto com barricadas na Avenida
General Velásquez, no centro da capital chilena, quando foi interceptado por
uma patrulha militar. Guzmán era o operador dessa patrulha, que conseguiu
capturar apenas uma das manifestantes, a estudante Carmen Gloria Quintana. O
fotógrafo Rodrigo de Negri, que registrava o evento, tentou ajudá-la a escapar
e também foi detido pelos soldados.
“A patrulha era feita por dois veículos que traziam uns dez
homens em total”, contou Guzmán na confissão. “Eu estava no que chegou depois,
junto com o tenente Castañer. Quando desço do carro, eu vejo os dois: o homem
estava deitado de barriga para o chão, a moça estava de pé contra a parede com
um soldado segurando o seu braço.”
Guzmán afirmou que a ordem para queimar os prisioneiros
partiu do tenente Julio Castañer. “A patrulha que chegou primeiro também
apreendeu um galão de querosene com os manifestantes, provavelmente usado pra
fazer a barricada. Castañer ordenou que se jogasse combustível sobre os dois.”
O relato conta que os demais soldados banharam Carmen Gloria Quintana com
querosene da cabeça aos pés. Já Rodrigo de Negri, somente pelas costas.
Finalmente, o mesmo Castañer teria iniciado o fogo com um isqueiro.
“O tenente Castañer foi quem disse que era preciso matá-los
e desaparecer com os corpos. O tenente Fernández Dittus se opôs, porque ele
também é católico, mas depois aceitou a determinação, quando Castañer disse que
haveria consequências se eles seguissem com vida”, contou Guzmán ao juiz
Carroza.
Depois de queimar os prisioneiros, os militares levaram os
dois, carbonizados a uma área rural a 20 quilômetros do perímetro urbano de
Santiago, sem perceber que ambos ainda estavam vivos. “Quando despertei, senti
uma dor imensa, não conseguia gritar, não conseguia me mover bem, por sorte
apareceu um sujeito que nos acudiu e nos levou a um hospital próximo. O Rodrigo
também me ajudou a levantar, ele parecia estar menos afetado que eu”, lembrou
ela, hoje professora de psicologia, em entrevista para o documentário “Chile:
As Imagens Proibidas”, do canal Chilevisión. Na verdade, Rodrigo de Negri,
então com 19 anos, teve o tórax comprometido de forma irrecuperável, e uma
infecção pulmonar acabaria levando-o à morte, quatro dias depois.
Horas depois do resgate dos dois jovens, o Exército chileno
emitiu um comunicado dizendo que as queimaduras haviam sido provocadas pela
explosão de um coquetel molotov que eles mesmos teriam carregado antes da
captura, e que o pessoal militar havia salvado suas vidas contendo o fogo com
cobertores. Ainda assim, foi aberta uma sindicância interna da Justiça Militar,
que determinou a prisão do tenente Dittus pelo crime de negligência. No
entanto, ele foi solto após cumprir 600 dias de presídio, após sua defesa
comprovar perante a corte marcial que ele sofre de “psicopatia orgânica”, o que
também lhe valeu uma pensão estatal por invalidez.
Pacto
Quando os corpos foram resgatados, Guzmán e todos os
militares envolvidos no caso foram escondidos no Forte Arteaga, uma base do
Exército localizada na cidade de Colina, na região metropolitana da capital.
Lá, eles passaram duas semanas recebendo instruções sobre o que deveriam falar
à Justiça Militar. “Foi como iniciou o pacto de silêncio. Era proibido falar
sobre o que aconteceu. Era proibido dizer qualquer coisa diferente da versão
divulgada oficialmente. Quem abrisse o bico arriscava represálias contra si ou
contra sua família”.
O ex-soldado revelou também contou que se retirou poucos
meses depois, e que passou vários anos sofrendo de depressão profunda devido ao
episódio. “Eu ainda tenho vivo na minha memória os gritos daquela moça, era
como ver alguém narrar a própria morte. Aquilo acabou com a minha vida, nunca
consegui me recuperar”. Guzmán afirmou, em entrevista para a TVN, que havia
pensado em confessar tudo outras vezes, mas que havia desistido devido a
ameaças de ex-superiores.
O testemunho de Guzmán levou o juiz Mario Carroza a
determinar a prisão de sete ex-oficiais, entre eles os tenentes Castañer e
Fernández Dittus. “Fizemos todos os interrogatórios nesta quarta-feira (22/7) e
decidimos manter a prisão de cinco dos sete réus”, explicou Carroza, em
entrevista coletiva para a imprensa local.
O Palácio de La Moneda também falou sobre o caso. Marcelo
Díaz, porta-voz do governo, afirmou que “a confissão de Fernando Guzmán é um
grande passo para busca pela verdade, mas ainda falta que outras pessoas também
tenham a coragem de romper o silêncio e colaborar com a Justiça.”
Via Portal Vermelho
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