segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Uma droga chamada açúcar


Digite o nome “Paul van der Velpen” no Google e você descobrirá algumas informações importantes e alarmantes sobre um produto amplamente consumido no nosso dia-a-dia: o açúcar. Paul van der Velpen é chefe do serviço de saúde de Amsterdã, na Holanda, e deflagrou uma campanha contra o açúcar que ele define, nada mais nada menos, como “a droga mais perigosa do nosso tempo”. Segundo ele, o seu uso deve ser desencorajado porque é altamente viciante, causando dependência química. Os produtos açucarados deveriam trazer alertas similares aqueles publicados nos maços de cigarro, defende o médico holandês. Para ele, largar o açúcar é tão difícil quanto parar de fumar e esse produto deveria ser tributado da mesma forma que ocorre com o álcool e o cigarro. Além disso, Van der Velpen defende uma regulamentação mais rígida sobre a quantidade de açúcar que pode ser adicionada nos alimentos processados, algo que a indústria alimentícia não quer nem ouvir falar.

Em agosto de 2012, entrevistei Sonia Maria Blauth de Slavutzky, professora titular da Faculdade de Odontologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), sobre esse tema. Ela bateu de frente contra um muro quando passou a pesquisar os efeitos do açúcar na saúde humana, uma escolha que enfrentou muitas resistências, inclusive dentro dos cursos de Odontologia. Reproduzo aqui essa matéria que foi publicada na edição nº 197 darevista Adverso, publicação da Adufrgs Sindical.

 “O gosto amargo do açúcar”

Em 1975, o jornalista William Dufty causou uma grande polêmica com o livro “Sugar Blues – O gosto amargo do açúcar”, onde ele aponta o açúcar branco como uma verdadeira droga que vicia, comparando seu consumo com o uso do álcool, da cocaína e da heroína. De lá para cá, os estudos e alertas cresceram, mas não foram suficientes para frear o consumo de açúcar no mundo. Em fevereiro deste ano, três cientistas da Universidade da Califórnia (Robert H. Lustig, Laura A. Schmidt e Claire D. Brindis) publicaram um artigo na revista Nature, intitulado The toxic truth about sugar (A verdade tóxica sobre o açúcar), retomando a advertência feita por Dufty e apontando o consumo de açúcar como um perigo para a saúde pública no mesmo patamar do cigarro e do álcool.

No livro, os autores afirmam que os efeitos danosos do açúcar no organismo humano são semelhantes aos promovidos pelo álcool e que seu consumo também deveria ser regulado. O consumo mundial de açúcar, adverte o artigo, triplicou nos últimos 50 anos, com os Estados Unidos aparecendo na liderança do ranking mundial dos consumidores de açúcar. Mas o problema, diz ainda o artigo, é grave também em países em desenvolvimento, onde “refrigerantes são frequentemente mais baratos do que leite ou mesmo água”.

Os autores defendem que os países deveriam começar a controlar o consumo de açúcar, taxando produtos industrializados açucarados, limitando a venda de tais produtos em escolas e a definindo uma idade mínima para o consumo de refrigerantes. Tais recomendações, obviamente, batem de frente com uma das mais poderosas indústrias do planeta: a da alimentação, com suas ramificações midiáticas e publicitárias. Essa influência penetra também nos círculos acadêmicos, principalmente nas áreas ligadas à alimentação e à saúde humana.

Sonia Maria Blauth de Slavutzky, professora titular da Faculdade de Odontologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), conhece essa realidade de perto Ela bateu de frente contra esse modelo quando passou a pesquisar os efeitos do açúcar na saúde humana, uma escolha que enfrentou (e ainda enfrenta) muitas resistências, inclusive dentro dos cursos de Odontologia.

O currículo tradicional dos cursos de Odontologia no Brasil trabalha fundamentalmente com a parte dentária e bucal, deixando quase todo o resto para o terreno da Medicina, da Nutrição, da Enfermagem e de outras áreas, relata a professora da UFRGS. Há hábitos arraigados que andam de mãos dadas com a resistência a outro tipo de abordagem. Uma criança tomar, três vezes por dia, refrigerante na mamadeira é uma atitude recomendável? Há muita gente que acha que isso não provoca nenhum grande problema. Essa percepção, observa a pesquisadora, tem origem em um estudo realizado na Suécia, em 1954, em um asilo para pessoas com problemas mentais, que receberam doses diárias crescentes de açúcar. Após sete anos, os pesquisadores chegaram à conclusão que três doses diárias de açúcar, junto às refeições, era o que causava menos cárie. A pesquisa não considerou outros problemas, como obesidade ou diabetes, que poderiam ser causados por essa ingestão de açúcar.

“Eu fui educada dentro desse paradigma e esse estudo ainda é uma das bases da odontologia moderna. Quando fui pesquisar mais sobre estudo descobri que ele foi pago parte pelo governo sueco e parte pela indústria do açúcar e do chocolate sueco”, relata Sonia Blauth de Slavutzky. A formação do dentista no Brasil, observa a professora da UFRGS, é muito influenciada pela odontologia norte-americana e escandinava, que privilegia o tratamento da questão bucal. Quando ela retornou de Londres, com uma bagagem diferente desta, provocou forte reação. “Na época, eu não me dei conta que isso representava uma ameaça ao conhecimento vigente e, inocentemente, coloquei todo o material que eu trouxe na biblioteca da faculdade. Foi um desastre. Os trabalhos que orientei e produzi não foram publicados em revista nenhuma, nem foram aceitos para ser apresentados em congressos”. Uma resistência até compreensível pelo tipo de informação que veiculava.

“A Coca-Cola, por exemplo, pagou um milhão e meio de dólares para a Associação de Odontopediatria Americana dizer que o refrigerante não fazia mal para os dentes. O dentista, em geral, é orientado a ver o que está acontecendo com a boca do paciente. A mudança curricular, já vigente na UFRGS, tenta desconstruir essa forma de abordagem. No entanto, os desafios para essa reconstrução continuam ativos e necessitariam um envolvimento maior de toda comunidade acadêmica”.

Dependência química

Há doze anos, Sonia Blauth de Slavutzky criou, junto com uma colega, um curso de extensão para transmitir essas informações para fora dos muros da universidade. O curso visa a promover a saúde desde antes do nascimento e se destina a todos profissionais que trabalham com gestantes. Atualmente, assinala, o tema do risco do açúcar já frequenta mais a mídia, mas dentro da faculdade a resistência, inclusive entre os alunos, é grande.E essa resistência fica ainda maior quando se associa o consumo de açúcar ao tema da dependência química. “Há alguns anos, eu participei do Programa Universidade Solidária coordenando a equipe da UFRGS. Durante esse período, uma uma estudante de enfermagem da nossa universidade apresentou uma palestra sobre as drogas e a dependência química. Enquanto estava ouvindo a apresentação, me dei conta que o que ela estava falando em relação à maconha, cocaína e álcool, aplicava-se também ao açúcar. Quase tudo. A partir daí, passei a trabalhar sobre a dependência química em relação ao açúcar, um conhecimento que se revelou mais perigoso ainda”, relata.

Publicar pesquisas que falem sobre a dependência do açúcar é muito difícil. “Cada vez que eu descobria algo de novo sobre esse tema, pensava que os alunos e meus colegas gostariam de saber, mas, ao contrário, cada vez mais as portas se fechavam para mim. Tive vários pedidos de financiamento de pesquisa negados. Consegui um financiamento da CAPES para pesquisar substitutos saudáveis para o açúcar. Graças a esse financiamento, passei um período na Alemanha pesquisando sobre stevia, que é uma planta brasileira que não dá cárie nem causa obesidade. Agora, pesquisas específicas sobre os riscos do açúcar, nem pensar”.

Para falar da origem dessa relação com o açúcar, Sonia Slavutzky retrocede ao período do nascimento. “Há uma quantidade considerável de recém-nascidos que choram muito e os pais interpretam esse choro como fome. Para acalmar a criança, dão uma chupeta molhada no açúcar, no mel, ou um chá com açúcar. Outras mães tratam de suprir esse sofrimento por meio do carinho, do contato corporal, do leite. Lá pelos seis meses de idade, as papilas gustativas começam a aprender outros gostos, mas muitas crianças ficam fundamentalmente dependentes desse gosto do açúcar. É assim que funciona o mecanismo da dependência que vai sendo reforçado pelos pais que, por exemplo, quando vão pegar a criança na creche levam um docinho de presente por que estão com culpa. Assim, o doce vai substituindo o amor, o contato. Muitas crianças desenvolvem aí uma relação de dependência em relação ao açúcar que, mais tarde, na adolescência, poderá ser substituída por outra coisa”.

Merenda escolar

Isso deveria ser levado em conta pelos governos na hora de definir políticas governamentais para a merenda escolar ou a alimentação em berçários, defende Sonia. “O governo é o maior comprador de alimentos. Se tem essa força, poderia ter uma política de estímulo à alimentação saudável. Há leis no Brasil sobre como deve ser a merenda escolar, mas falta fiscalização. Há escolas de classe alta aqui em Porto Alegre, por exemplo, onde o que é considerado o máximo em alimentação está na cantina, no bar da escola e, quando uma merenda saudável é trazida de casa, a criança é ridicularizada. As merendas nas escolas públicas, em sua maioria, são elaboradas levando em consideração a facilidade de aceitação da merenda, pela quantidade de calorias, pela facilidade de armazenamento, e a educação alimentar para a promoção de saúde fica aquém do que seria possível. A legislação também prevê a compra de produtos da agricultura familiar para compor a merenda escolar e isso certamente melhora a merenda e a economia local.


O Núcleo Interdisciplinar de Doenças Crônicas na Infância, da Pró-Reitoria de Extensão da UFRGS, coordenado pela medida Noêmia Perli Goldraich. “Nós trabalhamos com os dois pós brancos legais – legais entre aspas. Ela trabalha com o sal e eu com o açúcar. Nós nos achamos e não paramos mais de trabalhar, organizamos seminários, atividades para professores e para o público em geral. Recentemente, começamos a realizar um trabalho com a prefeitura de Porto Alegre relacionado à qualidade da merenda nas escolas municipais”.

Apesar das dificuldades enfrentadas, esse trabalho avançou consideravelmente nos últimos anos. “De vez em quando eu me surpreendo muito agradavelmente vendo ex-alunos meus tendo esses cuidados com os filhos deles. Há uma ex-aluna minha que fez um trabalho muito bonito junto à Estratégia de Saúde na Família. Ela fazia consultas com gestantes junto com médicos obstetras e ensinava a não dar açúcar com a mamadeira ou o bico. Após quatro meses, quando a licença gestante dessas mães terminou e as crianças foram para creches, elas não queriam tomar a mamadeira da creche porque era muito doce. Isso mostra que as crianças podem ter uma alternativa ao ‘docinho’. O uso de mais de 10% de açúcar na merenda faz muito mal. Nós realizamos, há alguns anos, um trabalho muito interessante com a prefeitura de Novo Hamburgo, que decidiu cortar pela metade a quantidade de açúcar que comprava para a merenda escolar. Quando as pessoas entendem a natureza do problema, elas começam a buscar soluções e a tomar iniciativas como essas. Na Itália, há uma recomendação do governo para não se dar sal nem açúcar para crianças até um ano de idade. As pessoas podem até burlar essa norma, mas elas fazem isso sabendo que a recomendação não é essa”.

A legislação no Brasil

No dia 15 de junho de 2010, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) publicou uma resolução estabelecendo novas regras para as propagandas de bebidas com baixo teor nutricional e de alimentos com elevadas quantidades de açúcar, de gordura saturada ou trans e de sódio. A resolução foi adotada para proteger os consumidores de práticas que possam omitir informações ou induzir ao consumo excessivo. A partir dessa norma, ficaram proibidos os símbolos, figuras ou desenhos que possam causar interpretação falsa, erro ou confusão quanto à origem, qualidade e composição dos alimentos. Também ficou expressamente proibido “atribuir características superiores às que o produto possui, bem como sugerir que o alimento é nutricionalmente completo ou que seu consumo é garantia de uma boa saúde”.

Uma das grandes preocupações dessa resolução da Anvisa está focada no público infantil, reconhecidamente mais vulnerável. A agência baseou-se em estudos internacionais que demonstram que a vontade das crianças pesa na escolha de até 80% das compras feitas pela família. Em maio de 2010, a Organização Mundial da Saúde (OMS), recomendou que os países adotassem medidas para reduzir o impacto do marketing desses alimentos sobre as crianças.

No Brasil, portanto, já há legislação que determina que, ao se divulgar ou promover alguns alimentos será necessário veicular alertas sobre os perigos do consumo excessivo. Para os alimentos com muito açúcar, por exemplo, o alerta é “O (marca comercial) contém muito açúcar e, se consumido em grande quantidade, aumenta o risco de obesidade e de cárie dentária”. No caso dos alimentos sólidos, esse alerta deverá ser veiculado quando houver mais de 15g de açúcar em 100g de produto. Em relação aos refrigerantes, refrescos, concentrados e chás prontos, o alerta será obrigatório sempre que a bebida apresentar mais de 7,5 g de açúcar a cada 100 ml, determina a Anvisa.

A resolução também determina que, na televisão, o alerta terá de ser pronunciado pelo personagem principal. Já no rádio, a função caberá ao locutor. Quando se tratar de material impresso, o alerta deverá causar o mesmo impacto visual que as demais informações. E na internet, ele deverá ser exibido de forma permanente e visível, junto com a peça publicitária. Os fabricantes de alimentos, anunciantes, agências de publicidade e veículos de comunicação que não cumprirem as exigências estarão sujeitos às penalidades da lei federal 6437/77: sanções que vão de notificação a interdição e multas entre R$ 2 mil e R$ 1,5 milhão. “Para que tudo isso se cumpra, é preciso que cada um que leia essa matéria se disponha a difundir esse conhecimento, contribuir como pais, cidadãos, para que cada criança brasileira tenha seu direito à saúde respeitado e cumprido”, conclui Sonia Blauth de Slavutzky.

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