Digite o nome “Paul van der Velpen” no Google e você
descobrirá algumas informações importantes e alarmantes sobre um produto
amplamente consumido no nosso dia-a-dia: o açúcar. Paul van der Velpen é chefe
do serviço de saúde de Amsterdã, na Holanda, e deflagrou uma campanha contra o
açúcar que ele define, nada mais nada menos, como “a droga mais perigosa do
nosso tempo”. Segundo ele, o seu uso deve ser desencorajado porque é altamente
viciante, causando dependência química. Os produtos açucarados deveriam trazer
alertas similares aqueles publicados nos maços de cigarro, defende o médico
holandês. Para ele, largar o açúcar é tão difícil quanto parar de fumar e esse
produto deveria ser tributado da mesma forma que ocorre com o álcool e o
cigarro. Além disso, Van der Velpen defende uma regulamentação mais rígida
sobre a quantidade de açúcar que pode ser adicionada nos alimentos processados,
algo que a indústria alimentícia não quer nem ouvir falar.
Em agosto de 2012, entrevistei Sonia Maria Blauth de
Slavutzky, professora titular da Faculdade de Odontologia da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), sobre esse tema. Ela bateu de frente
contra um muro quando passou a pesquisar os efeitos do açúcar na saúde humana,
uma escolha que enfrentou muitas resistências, inclusive dentro dos cursos de
Odontologia. Reproduzo aqui essa matéria que foi publicada na edição nº 197 darevista Adverso, publicação da Adufrgs Sindical.
“O gosto amargo do
açúcar”
Em 1975, o jornalista William Dufty causou uma grande
polêmica com o livro “Sugar Blues – O gosto amargo do açúcar”, onde ele aponta
o açúcar branco como uma verdadeira droga que vicia, comparando seu consumo com
o uso do álcool, da cocaína e da heroína. De lá para cá, os estudos e alertas
cresceram, mas não foram suficientes para frear o consumo de açúcar no mundo.
Em fevereiro deste ano, três cientistas da Universidade da Califórnia (Robert
H. Lustig, Laura A. Schmidt e Claire D. Brindis) publicaram um artigo na
revista Nature, intitulado The toxic truth about sugar (A verdade tóxica sobre
o açúcar), retomando a advertência feita por Dufty e apontando o consumo de
açúcar como um perigo para a saúde pública no mesmo patamar do cigarro e do
álcool.
No livro, os autores afirmam que os efeitos danosos do
açúcar no organismo humano são semelhantes aos promovidos pelo álcool e que seu
consumo também deveria ser regulado. O consumo mundial de açúcar, adverte o
artigo, triplicou nos últimos 50 anos, com os Estados Unidos aparecendo na liderança
do ranking mundial dos consumidores de açúcar. Mas o problema, diz ainda o
artigo, é grave também em países em desenvolvimento, onde “refrigerantes são
frequentemente mais baratos do que leite ou mesmo água”.
Os autores defendem que os países deveriam começar a
controlar o consumo de açúcar, taxando produtos industrializados açucarados,
limitando a venda de tais produtos em escolas e a definindo uma idade mínima
para o consumo de refrigerantes. Tais recomendações, obviamente, batem de
frente com uma das mais poderosas indústrias do planeta: a da alimentação, com
suas ramificações midiáticas e publicitárias. Essa influência penetra também
nos círculos acadêmicos, principalmente nas áreas ligadas à alimentação e à
saúde humana.
Sonia Maria Blauth de Slavutzky, professora titular da
Faculdade de Odontologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),
conhece essa realidade de perto Ela bateu de frente contra esse modelo quando
passou a pesquisar os efeitos do açúcar na saúde humana, uma escolha que
enfrentou (e ainda enfrenta) muitas resistências, inclusive dentro dos cursos
de Odontologia.
O currículo tradicional dos cursos de Odontologia no Brasil
trabalha fundamentalmente com a parte dentária e bucal, deixando quase todo o
resto para o terreno da Medicina, da Nutrição, da Enfermagem e de outras áreas,
relata a professora da UFRGS. Há hábitos arraigados que andam de mãos dadas com
a resistência a outro tipo de abordagem. Uma criança tomar, três vezes por dia,
refrigerante na mamadeira é uma atitude recomendável? Há muita gente que acha
que isso não provoca nenhum grande problema. Essa percepção, observa a
pesquisadora, tem origem em um estudo realizado na Suécia, em 1954, em um asilo
para pessoas com problemas mentais, que receberam doses diárias crescentes de
açúcar. Após sete anos, os pesquisadores chegaram à conclusão que três doses
diárias de açúcar, junto às refeições, era o que causava menos cárie. A
pesquisa não considerou outros problemas, como obesidade ou diabetes, que
poderiam ser causados por essa ingestão de açúcar.
“Eu fui educada dentro desse paradigma e esse estudo ainda é
uma das bases da odontologia moderna. Quando fui pesquisar mais sobre estudo
descobri que ele foi pago parte pelo governo sueco e parte pela indústria do
açúcar e do chocolate sueco”, relata Sonia Blauth de Slavutzky. A formação do
dentista no Brasil, observa a professora da UFRGS, é muito influenciada pela
odontologia norte-americana e escandinava, que privilegia o tratamento da
questão bucal. Quando ela retornou de Londres, com uma bagagem diferente desta,
provocou forte reação. “Na época, eu não me dei conta que isso representava uma
ameaça ao conhecimento vigente e, inocentemente, coloquei todo o material que
eu trouxe na biblioteca da faculdade. Foi um desastre. Os trabalhos que
orientei e produzi não foram publicados em revista nenhuma, nem foram aceitos
para ser apresentados em congressos”. Uma resistência até compreensível pelo
tipo de informação que veiculava.
“A Coca-Cola, por exemplo, pagou um milhão e meio de dólares
para a Associação de Odontopediatria Americana dizer que o refrigerante não
fazia mal para os dentes. O dentista, em geral, é orientado a ver o que está
acontecendo com a boca do paciente. A mudança curricular, já vigente na UFRGS,
tenta desconstruir essa forma de abordagem. No entanto, os desafios para essa
reconstrução continuam ativos e necessitariam um envolvimento maior de toda
comunidade acadêmica”.
Dependência química
Há doze anos, Sonia Blauth de Slavutzky criou, junto com uma
colega, um curso de extensão para transmitir essas informações para fora dos
muros da universidade. O curso visa a promover a saúde desde antes do
nascimento e se destina a todos profissionais que trabalham com gestantes.
Atualmente, assinala, o tema do risco do açúcar já frequenta mais a mídia, mas
dentro da faculdade a resistência, inclusive entre os alunos, é grande.E essa
resistência fica ainda maior quando se associa o consumo de açúcar ao tema da
dependência química. “Há alguns anos, eu participei do Programa Universidade
Solidária coordenando a equipe da UFRGS. Durante esse período, uma uma
estudante de enfermagem da nossa universidade apresentou uma palestra sobre as
drogas e a dependência química. Enquanto estava ouvindo a apresentação, me dei
conta que o que ela estava falando em relação à maconha, cocaína e álcool,
aplicava-se também ao açúcar. Quase tudo. A partir daí, passei a trabalhar
sobre a dependência química em relação ao açúcar, um conhecimento que se
revelou mais perigoso ainda”, relata.
Publicar pesquisas que falem sobre a dependência do açúcar é
muito difícil. “Cada vez que eu descobria algo de novo sobre esse tema, pensava
que os alunos e meus colegas gostariam de saber, mas, ao contrário, cada vez
mais as portas se fechavam para mim. Tive vários pedidos de financiamento de
pesquisa negados. Consegui um financiamento da CAPES para pesquisar substitutos
saudáveis para o açúcar. Graças a esse financiamento, passei um período na Alemanha
pesquisando sobre stevia, que é uma planta brasileira que não dá cárie nem
causa obesidade. Agora, pesquisas específicas sobre os riscos do açúcar, nem
pensar”.
Para falar da origem dessa relação com o açúcar, Sonia
Slavutzky retrocede ao período do nascimento. “Há uma quantidade considerável
de recém-nascidos que choram muito e os pais interpretam esse choro como fome.
Para acalmar a criança, dão uma chupeta molhada no açúcar, no mel, ou um chá
com açúcar. Outras mães tratam de suprir esse sofrimento por meio do carinho,
do contato corporal, do leite. Lá pelos seis meses de idade, as papilas
gustativas começam a aprender outros gostos, mas muitas crianças ficam
fundamentalmente dependentes desse gosto do açúcar. É assim que funciona o
mecanismo da dependência que vai sendo reforçado pelos pais que, por exemplo,
quando vão pegar a criança na creche levam um docinho de presente por que estão
com culpa. Assim, o doce vai substituindo o amor, o contato. Muitas crianças
desenvolvem aí uma relação de dependência em relação ao açúcar que, mais tarde,
na adolescência, poderá ser substituída por outra coisa”.
Merenda escolar
Isso deveria ser levado em conta pelos governos na hora de
definir políticas governamentais para a merenda escolar ou a alimentação em
berçários, defende Sonia. “O governo é o maior comprador de alimentos. Se tem
essa força, poderia ter uma política de estímulo à alimentação saudável. Há
leis no Brasil sobre como deve ser a merenda escolar, mas falta fiscalização.
Há escolas de classe alta aqui em Porto Alegre, por exemplo, onde o que é
considerado o máximo em alimentação está na cantina, no bar da escola e, quando
uma merenda saudável é trazida de casa, a criança é ridicularizada. As merendas
nas escolas públicas, em sua maioria, são elaboradas levando em consideração a
facilidade de aceitação da merenda, pela quantidade de calorias, pela
facilidade de armazenamento, e a educação alimentar para a promoção de saúde
fica aquém do que seria possível. A legislação também prevê a compra de produtos
da agricultura familiar para compor a merenda escolar e isso certamente melhora
a merenda e a economia local.
O Núcleo Interdisciplinar de Doenças Crônicas na Infância,
da Pró-Reitoria de Extensão da UFRGS, coordenado pela medida Noêmia Perli
Goldraich. “Nós trabalhamos com os dois pós brancos legais – legais entre
aspas. Ela trabalha com o sal e eu com o açúcar. Nós nos achamos e não paramos
mais de trabalhar, organizamos seminários, atividades para professores e para o
público em geral. Recentemente, começamos a realizar um trabalho com a
prefeitura de Porto Alegre relacionado à qualidade da merenda nas escolas
municipais”.
Apesar das dificuldades enfrentadas, esse trabalho avançou
consideravelmente nos últimos anos. “De vez em quando eu me surpreendo muito
agradavelmente vendo ex-alunos meus tendo esses cuidados com os filhos deles.
Há uma ex-aluna minha que fez um trabalho muito bonito junto à Estratégia de
Saúde na Família. Ela fazia consultas com gestantes junto com médicos obstetras
e ensinava a não dar açúcar com a mamadeira ou o bico. Após quatro meses,
quando a licença gestante dessas mães terminou e as crianças foram para
creches, elas não queriam tomar a mamadeira da creche porque era muito doce.
Isso mostra que as crianças podem ter uma alternativa ao ‘docinho’. O uso de
mais de 10% de açúcar na merenda faz muito mal. Nós realizamos, há alguns anos,
um trabalho muito interessante com a prefeitura de Novo Hamburgo, que decidiu
cortar pela metade a quantidade de açúcar que comprava para a merenda escolar.
Quando as pessoas entendem a natureza do problema, elas começam a buscar
soluções e a tomar iniciativas como essas. Na Itália, há uma recomendação do
governo para não se dar sal nem açúcar para crianças até um ano de idade. As
pessoas podem até burlar essa norma, mas elas fazem isso sabendo que a
recomendação não é essa”.
A legislação no Brasil
No dia 15 de junho de 2010, a Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (Anvisa) publicou uma resolução estabelecendo novas regras para as
propagandas de bebidas com baixo teor nutricional e de alimentos com elevadas
quantidades de açúcar, de gordura saturada ou trans e de sódio. A resolução foi
adotada para proteger os consumidores de práticas que possam omitir informações
ou induzir ao consumo excessivo. A partir dessa norma, ficaram proibidos os
símbolos, figuras ou desenhos que possam causar interpretação falsa, erro ou
confusão quanto à origem, qualidade e composição dos alimentos. Também ficou
expressamente proibido “atribuir características superiores às que o produto
possui, bem como sugerir que o alimento é nutricionalmente completo ou que seu
consumo é garantia de uma boa saúde”.
Uma das grandes preocupações dessa resolução da Anvisa está
focada no público infantil, reconhecidamente mais vulnerável. A agência
baseou-se em estudos internacionais que demonstram que a vontade das crianças
pesa na escolha de até 80% das compras feitas pela família. Em maio de 2010, a
Organização Mundial da Saúde (OMS), recomendou que os países adotassem medidas
para reduzir o impacto do marketing desses alimentos sobre as crianças.
No Brasil, portanto, já há legislação que determina que, ao
se divulgar ou promover alguns alimentos será necessário veicular alertas sobre
os perigos do consumo excessivo. Para os alimentos com muito açúcar, por
exemplo, o alerta é “O (marca comercial) contém muito açúcar e, se consumido em
grande quantidade, aumenta o risco de obesidade e de cárie dentária”. No caso
dos alimentos sólidos, esse alerta deverá ser veiculado quando houver mais de
15g de açúcar em 100g de produto. Em relação aos refrigerantes, refrescos,
concentrados e chás prontos, o alerta será obrigatório sempre que a bebida
apresentar mais de 7,5 g de açúcar a cada 100 ml, determina a Anvisa.
A resolução também determina que, na televisão, o alerta
terá de ser pronunciado pelo personagem principal. Já no rádio, a função caberá
ao locutor. Quando se tratar de material impresso, o alerta deverá causar o
mesmo impacto visual que as demais informações. E na internet, ele deverá ser
exibido de forma permanente e visível, junto com a peça publicitária. Os
fabricantes de alimentos, anunciantes, agências de publicidade e veículos de
comunicação que não cumprirem as exigências estarão sujeitos às penalidades da
lei federal 6437/77: sanções que vão de notificação a interdição e multas entre
R$ 2 mil e R$ 1,5 milhão. “Para que tudo isso se cumpra, é preciso que cada um
que leia essa matéria se disponha a difundir esse conhecimento, contribuir como
pais, cidadãos, para que cada criança brasileira tenha seu direito à saúde
respeitado e cumprido”, conclui Sonia Blauth de Slavutzky.
Via RSURGENTE
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