Esse importante debate ganhou um novo capítulo no Brasil,
com a aprovação, nesta quarta-feira (11/12) do projeto de lei do saneamento
básico (PL 4162/19, do Poder Executivo), que trata da Política Federal de
Saneamento Básico e cria o Comitê Interministerial de Saneamento Básico.
Bolsonaro e Congresso empurram, a toque de caixa, projeto
que pode acabar com empresas públicas de Saneamento. Conheça os antecedentes; a
participação da Coca-Cola, do senador Jereissati e dos EUA. E não estranhe o
silêncio da mídia…
Por José *Álvaro de Lima Cardoso
O problema da falta de água, que é diagnosticado em várias
partes do mundo, afeta sempre a sociedade de forma diferenciada. Como todo direito
básico existente, quem enfrenta dificuldades no acesso a água são sempre os
mais pobres, o que ocorre tanto nos países imperialistas centrais, quanto nos
subdesenvolvidos. Os EUA e a Europa também enfrentam grandes problemas de falta
de água, a maioria dos rios dos EUA e do Velho Continente estão contaminados.
No caso dos EUA, o próprio desenvolvimento recente da indústria extrativa de
gás de xisto contribui para a contaminação dos lençóis de água.
Esse importante debate ganhou um novo capítulo no Brasil,
com a aprovação, nesta quarta-feira (11/12) do projeto de lei do saneamento
básico (PL 4162/19, do Poder Executivo), que trata da Política Federal de
Saneamento Básico e cria o Comitê Interministerial de Saneamento Básico. Dentre
outros tópicos, a lei prevê a abertura da concessão do serviço de água e esgoto
para empresas privadas. É que estão chamando de novo marco legal do Saneamento.
O projeto, dentre outros, define o prazo de um ano para empresas estatais de
água e esgoto anteciparem a renovação de contratos com municípios. Nesse
período as estatais de água e esgoto poderão renovar os chamados “contratos de
programa”, acertados sem licitação com os municípios. Segundo o relator do
projeto, o objetivo dessa última medida é possibilitar que as empresas tenham
uma valorização dos ativos e possam ser privatizadas por um valor mais alto. Os
destaques tentados pela oposição, que visavam aliviar um pouco o projeto, foram
todos rejeitados. Os defensores do projeto têm perspectivas de sancioná-lo
rapidamente, talvez ainda em dezembro.
O senador Tasso Jereissati (PSDB/CE), autor do projeto,
qualificou de “corporativistas”, ao longo da tramitação no Parlamento, os
parlamentares que se posicionaram contra o texto. Classificado recentemente,
por um outro parlamentar, como o “senador Coca-Cola”, Jereissati é, direta e
financeiramente, interessado na privatização dos serviços de água e saneamento
no Brasil. Seu patrimônio é estimado em R$ 400 milhões (informações de 2014). É
um dos sócios do Grupo Jereissati, que comanda a Calila Participações, única
acionista brasileira da Solar. Esta última empresa é uma das 20 maiores
fabricantes de Coca-Cola do mundo e emprega 12 mil trabalhadores, em 13
fábricas e 36 centros de distribuição.
Na prática o novo Marco Regulatório do Saneamento Básico,
autoriza a privatização dos serviços de saneamento no país (não nos enganemos:
esse é o objetivo principal). O item mais polêmico do projeto é a vedação aos
chamados “contratos de programa”, que são firmados entre estados e municípios
para prestação dos serviços de saneamento. Os referidos contratos atualmente
não exigem licitação, já que o contratado não é uma empresa privada. É evidente
que, se não houver os contratos de programa, a maioria dos municípios terá que
contratar serviços privados, pois não dispõem de estruturas nos municípios para
desenvolver atividades de saneamento. É muito evidente que o projeto visa
conduzir os municípios a contratarem empresas privadas.
Esta lei poderá quebrar as estatais de saneamento, o que
abriria as portas para a privatização da água. Água é a matéria-prima mais cara
para a produção de bebidas em geral. Para cada litro de bebida produzido, por
exemplo, a Ambev declara usar 2,94 litros de água. Não existe nenhuma
transparência nas informações divulgadas, mas ao que se sabe, as empresas de
alimentos e bebidas contam com uma condição privilegiada no fornecimento de
água e esgoto. Obtendo, por exemplo, descontos. No entanto, foram essas mesmas
empresas que estiveram à frente da tentativa de aprovar o novo marco
regulatório, possivelmente porque avaliam que, com o setor privatizado, pagarão
ainda menos pelos serviços.
Tudo indica que os golpes desferidos na América Latina, com
a coordenação geral dos EUA, têm também como favor motivador, os mananciais de
água na Região. Em 2016, logo após o golpe no Brasil, o governo dos Estados
Unidos iniciou negociação com o governo Macri sobre a instalação de bases
militares na Argentina, uma em Ushuaia (Terra do Fogo) e outra localizada na
Tríplice Fronteira (Argentina, Brasil e Paraguai). Um dos objetivos na
instalação destas bases, tudo indica, foi o Aquífero Guarani, maior reserva
subterrânea de água doce do mundo. O Aquífero, localizado na parte sul da
América do Sul (Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai) coloca a região como
detentora de 47% das reservas superficiais e subterrâneas de água do mundo. Os
EUA sabem que não há nação que consiga manter-se dominante sem água potável em
abundância, por isso seu interesse em intensificar o domínio político e militar
na região, além do acesso à água existente em abundância no Canadá, garantida
por acordos como o do NAFTA (Acordo de Livre Comércio da América do Norte,
entre EUA, Canadá e México).
No começo de 2018, o “insuspeito” Michel Temer encontrou-se
com o presidente da Nestlé, Paul Bucke, para uma conversa reversada. Não é
preciso ser muito sagaz para concluir que o tema da conversa foi um pouco além
de amenidades. Alguns meses depois, o governo Temer enviou ao Congresso uma
Medida Provisória 844, que forçava os municípios a conceder os serviços, medida
que não foi aprovada. No último dia de mandato, Temer editou a MP 868, que
tratava basicamente do mesmo assunto. Em março deste ano, Tasso Jereissati foi
nomeado relator. Quando a MP 868 perdeu validade no começo de março, o senador
Tasso encaminhou o Projeto de Lei 3261, de 2019, que basicamente retomou o que
constava da medida provisória. A proposta foi aprovada em comissão e plenário
em tempo recorde, e rapidamente chegou à Câmara (o que demonstra a existência
de forças muito poderosas por detrás do projeto).
A pressão para privatização da água é muito forte, conta com
organizações financiadas pelos grandes grupos interessados, especialmente do
setor de alimentos e bebidas e com cobertura do Banco Mundial. Os defensores da
́privatização têm um discurso sinuoso, como se não quisessem de fato, aquilo
com o que sonham noite e dia. Sabe-se que a Coca-Cola disputa água no mundo
todo e certamente não o faz por razões humanitárias. Uma unidade da empresa é
acusada de ter secado as nascentes em Itabirito, na região metropolitana de
Belo Horizonte. A fábrica, segundo as organizações de defesa do meio ambiente,
secou nascentes dos rios Paraopeba e das Velhas – responsáveis por quase toda o
abastecimento de água de Belo Horizonte. A Coca-Cola, claro, nega que a unidade
esteja provocando falta de água na região e afirma que possui todas as licenças
para funcionamento.
Em todo o mundo, diversos casos envolvem a Coca-Cola com
privatização e controle sobre águas. Há relatos de que no México, regiões
inteiras ficam sob “estresse hídrico” por causa de fábricas da empresa, que
inclusive contam com água subsidiada. Existem cidades no México em que os
bairros mais pobres dispõem de água corrente apenas em alguns momentos, em
determinados dias da semana, obrigando a população comprar água extra. O
resultado é que, em determinados lugares, os moradores tomam Coca-Cola, ao
invés de água, por ser aquela mais fácil de conseguir, além do preço ser
praticamente o mesmo. Há moradores destes locais que consomem 2 litros de refrigerante
por dia, com consequências inevitáveis para a saúde pública.
Sobre o projeto de privatização das fontes de água no Brasil
quase não se ouve posições contrárias. Estas são devidamente abafadas pelo
monopólio da mídia. Exceto nos sites especializados e independentes. É que na
área atuam interesses muito poderosos, com grande influência no Congresso
Nacional, nos governos, nas associações de classes, empresariado,
universidades. Os encontros realizados para discutir o assunto são patrocinados
por gigantes como Ambev, Coca-Cola, Nestlé, que têm interesses completamente
antagônicos aos da maioria da sociedade. Essas empresas investem uma parcela de
seus lucros com propaganda, vinculando suas imagens a temas como
sustentabilidade ambiental e iniciativas sociais, de acesso à água, e outras
imposturas. Apesar de tudo isso ser jogo de cena para salvar suas peles e
exuberantes lucros, enganam muitos incautos.
Apesar de extremamente importante, não é muito conhecido no
Brasil o episódio intitulado “A guerra da água da Bolívia”, ou “Guerra da água
de Cochabamba”. Os grandes grupos de mídia que dominam a informação, a maioria
ligados aos interesses do imperialismo, por razões óbvias, escondem o
acontecimento. Entre janeiro e abril de 2000, ocorreu uma grande revolta
popular em Cochabamba, a terceira maior cidade do país, contra a privatização
do sistema municipal de gestão da água, depois que as tarifas cobradas pela
empresa Aguas del Tunari (por “coincidência”, pertencente ao grupo
norte-americano Bechtel) dobraram de preço. É fácil imaginar o que isso pode
significar, em termos de qualidade de vida, para uma população extremamente
pobre.
Em 8 de abril de 2000, Hugo Banzer, general e político de
extrema direita que tinha assumido o governo da Bolívia através de um golpe de
Estado, declarou estado de sítio. A repressão correu solta e a maioria dos
líderes do movimento foram presos. Mas a população não recuou e continuou se
manifestando vigorosamente, apesar da grande repressão. Em 20 de abril de 2000,
com o governo percebendo que o povo não iria ceder, o general desistiu da
privatização e anulou o contrato vendilhão de concessão de serviço público,
firmado com a Bechtel. A intenção do governo era celebrar um contrato que iria
vigorar por quarenta anos. Graças à mobilização da população, a Lei 2.029, que
previa a privatização das águas do país, foi revogada.
*Economista, doutor em Ciências Humanas pela Universidade
Federal de Santa Catarina, supervisor técnico do escritório regional do DIEESE
em Santa Catarina.