O vice-ministro do Emprego, Serviço e Cooperativas da
Bolívia, Emilio Rodas, fala sobre o governo de Evo Morales, de nacionalização e
industrialização, fortalecimento do Estado e cooperativismo no combate ao
neoliberalismo. Defende a valorização dos salários, direitos e benefícios
sociais, investimentos na formação científico-tecnológica, da campanha
desinformativa movida pela grande mídia para atingir o presidente e do combate
à corrupção.
Por
Leonardo e Monica Severo, da Hora do Povo
Hora do Povo - Apesar
de se manter pelo quinto ano consecutivo como o país em que o PIB mais cresce
na América do Sul, há uma trágica herança neoliberal a ser superada. O que tem
sido feito para gerar empregos e valorizar o trabalhador?
Ao longo destes anos, temos buscado construir uma política integral
de emprego, levando em conta que os 20 anos de neoliberalismo deixaram uma
herança muito forte de informalidade no trabalho. Quando chegamos ao governo,
mais de 70% das pessoas eram informais, não tinham vínculo empregatício e,
portanto, não tinham qualquer segurança, nem de curto nem de longo prazo. Não
tinham seguro de saúde nem condições de aposentadoria. Temos tentado mudar esta
realidade através da formalização, da geração de empregos, da multiplicação de
empresas e da legalização das microempresas. Hoje cerca de 45% da nossa
economia ainda é informal. Estamos avançando, mas ainda falta muito.
A taxa oficial de desemprego do Brasil e Argentina supera
com folga os 12%, cerca de três vezes superior à boliviana. De que forma a
situação catastrófica destes vizinhos de peso impacta internamente?
No nosso país temos uma taxa relativamente estável de
desemprego, em torno de 4,5%, o que comparado a qualquer dos nossos vizinhos é
um percentual baixo. No entanto, o que apontamos, a partir do presidente Evo, é
que o nosso objetivo deve ser o de garantir empregos de qualidade, com boa
remuneração para o trabalhador, com segurança e direitos.
A crise internacional que chega via nossos vizinhos,
particularmente Argentina e Brasil que são muito influentes, traz um impacto
muito forte a partir da fronteira. Afeta em demasia o emprego, pois muita gente
se dedica ao comércio, como em Cobija e Puerto Suárez. Então, além do fato de
que deixam de nos comprar, ainda introduzem seus produtos.
E que medidas têm sido adotadas para enfrentar este quadro?
Temos enfrentado este quadro a partir de um plano de geração
de emprego com cinco iniciativas. Há uma para profissionais jovens, pois muitas
vezes a empresa alega não poder contratar pelo fato deles não terem
experiência. Diante disso estimulamos as contratações envolvendo as empresas
para que os incorporem e subvencionamos parte dos seus gastos. É um programa
que dura um ano e pagamos o 13º salário, benefícios sociais e honorários,
incentivando as empresas privadas e motivando os novos profissionais.
A segunda iniciativa, muito exitosa, foi lançada em 2017
pelo presidente Evo Morales, o Programa de Apoio ao Emprego. É um programa que
não apoia apenas profissionais, técnicos e acadêmicos, mas também pessoas sem
formação. Fechamos o acordo com uma empresa e oferecemos 20, 30 ou 40
trabalhadores, quantos ela necessite. Então, pagamos durante 90 dias,
considerando esses três meses como etapa de aprendizagem para que o empregador
e o trabalhador se conheçam e estabeleçam uma relação formal de trabalho.
A terceira é o apoio a empreendedores, pois muitos jovens
não querem ter uma relação de dependência com o emprego. Então o que fizemos é
financiá-los para que abram seu próprio negócio, uma atividade produtiva. São
recursos pequenos, mas que possibilitam a eles se instalarem. Está indo muito
bem. É uma iniciativa que trabalhamos conjuntamente com o Banco de
Desenvolvimento Produtivo, criado pelo nosso governo para fomentar a produção
no país.
A quarta é o financiamento de Projetos de Absorção Massiva
de Mão de Obra, principalmente em todas essas cidades fronteiriças afetadas
pela crise da Argentina e do Brasil, onde temos financiado projetos para a
construção de obras de infraestrutura.
A quinta se materializa em obras relacionadas a impactos
ambientais ou desastres naturais. Para estes locais, em vez de levarmos as mais
avançadas tecnologias e equipamentos pesados, o que tratamos de fazer é
mobilizar a maior quantidade de mão de obra para reparar os danos.
Eu diria ainda que há uma sexta iniciativa. É o fato de que
o Estado na Bolívia é o principal investidor. Assim, como muitas empresas
participam das licitações convocadas pelo Estado para realizar as obras de
infraestrutura, incorporamos um incentivo de 5% na pontuação àquelas que nos
demonstrem que vão fazer um maior uso de mão de obra. Queremos que incorporem
novas tecnologias, mas que utilizem um número maior de trabalhadores. Por meio
desse dispositivo, conseguimos criar 65 mil novos empregos somente no ano
passado.
Vale ressaltar que nossa economia gera, por sua própria
inércia, por sua própria dinâmica, 160 mil fontes de trabalho a cada ano. A
população economicamente ativa que se incorpora anualmente é de 200 mil
pessoas. Então, temos um déficit de 40 mil. Conseguimos superar esta situação
com a criação destas milhares de fontes de trabalho adicionais. Estamos
trabalhando bem neste campo, mas faz falta ajustar os ponteiros no que diz
respeito à confiança do setor privado em relação ao Estado, para que juntos
possamos superar estas lacunas.
Há um plano de desenvolvimento econômico e social que visa
injetar recursos do Estado, particularmente em tecnologia.
É certo, temos o nosso plano de desenvolvimento econômico e
social: são 48 bilhões de dólares que precisamos investir até 2020, grande
parte deste investimento em tecnologia, como no caso do lítio. Em Mutún,
começamos a construir a primeira indústria siderúrgica da Bolívia. Passados 80
anos de termos descoberto uma das maiores jazidas do mundo, nunca produzimos
uma barra de aço. Com Mutún pela primeira vez vamos atender o nosso mercado com
aço boliviano.
O Estado investe massivamente, porém o emprego é gerado no
segundo bloco da economia, principalmente no que tem que ver com o investimento
privado, com as pequenas empresas. É aí que estão trabalhando a maior parte das
pessoas. Por isso precisamos ter uma relação de confiança com as pequenas,
médias e grandes empresas, para que se animem a investir.
O balanço é bastante positivo.
Estes têm sido 13 anos muito positivos para a economia, para
o social, para o produtivo, porém diríamos que o setor privado vem se
convencendo muito lentamente. Não se equipara ao nível de entusiasmo do Estado
para investir, não tem o mesmo ritmo. Se tivéssemos um setor privado que
investisse pelo menos 70% do que investe o setor público não estaríamos com
4,6% de crescimento, mas com 8% ou 9%. Faz falta gerarmos um cenário de maior
confiança, de articulação, com os diferentes setores. Estamos empenhados em
fazer que isso ocorra.
Como o governo vê a questão do diálogo com os diferentes
setores?
Temos uma boa relação com as associações empresariais e com
as entidades sociais. Não descuidamos as relações com os setores vulneráveis da
população, como são as pessoas com deficiência. Temos um projeto piloto focado
neste momento exclusivamente na sua inserção. Aprovamos uma lei no final de
2017 que estabelece que os organismos do Estado, em qualquer dos seus níveis,
precisa contar com um mínimo de 4% de pessoas com deficiência comprovada, e no
setor privado 2%. Estes percentuais ainda não estão sendo cumpridos
satisfatoriamente e temos ampliado a fiscalização.
Aprovamos também um bônus mensal para as pessoas com
deficiência grave ou muito grave, a todos os que superem 30% de incapacidade
física ou mental. São formas encontradas de atender a um setor historicamente
ignorado, porque inexistiam políticas públicas.
Recordemos que enquanto os partidos políticos tinham
financiamento do Estado, as pessoas com deficiência não recebiam nada. Quando
chegou o presidente Evo Morales mudamos esta situação: o dinheiro dos partidos
passou a ser destinado para quem precisava.
O Serviço Civil do seu vice-Ministério atende a quais
demandas?
Tínhamos um Estado desenhado para o modelo neoliberal. O
serviço civil é em certa forma o regulador da relação do servidor público com o
Estado, o que regula seus direitos, suas obrigações, o que estabelece se cumpre
ou não as normas. Este é um ponto em que estamos atrasados.
Temos a lei 2027, do funcionário público, que é o espinhaço,
a coluna vertebral do modelo neoliberal com relação à gestão pública. Nestes
anos não tivemos a possibilidade – ou diria, a vontade – para poder implementar
uma reforma estrutural do serviço público. Esta é a razão de termos servidores
em um limbo. Muitos, cerca de 300 mil, estão na qualidade de interinos. Um
percentual mínimo está como funcionário de carreira e temos, inclusive, uma
carreira que é vergonhosa, a do chamado “consultor de linea”, servidor que
desenvolve a mesma função, realiza as mesmas atividades, mas sem os mesmos
direitos dos demais trabalhadores.
Como é que essa precarização funciona na prática?
Determinada estrutura estatal conta com apenas 100
funcionários num setor e necessita de 120. Aí, como o processo de contratação é
muito moroso – e terá de desembolsar mais -, destina uma parcela do seu
orçamento para a convocação de “consultores de linea”, que trabalham ao lado de
servidores com 13° salário, férias, seguridade social, enquanto eles só vão
receber o salário sem nada, sem benefícios.
No Brasil temos o trabalhador terceirizado, que também sai
mais barato para o empregador.
Sim, mas na Bolívia estamos reduzindo este pessoal. Antes
tínhamos 30% das instituições com servidores com esta característica. Agora
estamos sendo mais rígidos no controle orçamentário a fim de que haja a criação
do posto de trabalho e não tenhamos um companheiro que esteja sendo tratado
como um trabalhador de outra categoria. Por isso estamos empenhados na
realização de uma reforma estrutural do serviço público, para que possamos
redimensionar o Estado.
Também há o fato de que, na medida em que vão entrando novas
tecnologias, as instituições tendem a reduzir postos de trabalho. Como os
trâmites físicos, que agora são feitos na maior parte de forma eletrônica. No
nosso entender, não se trata de reduzir, mas de realocar, reposicionar esses
servidores em um novo modelo de Estado. Esta é uma questão muito complexa, pois
no geral os cidadãos não enxergam com bons olhos o servidor público, sentem
desconfiança. E os próprios servidores não se sentem cômodos, não se sentem
bem. Portanto estamos tentando tratar de internalizar essa questão, colocar
dentro da lei, para que tenhamos um trabalhador comprometido com o seu posto,
pois em tese o servidor público tem de ser um dos melhores cidadãos. Ele é
escolhido pela cidadania para que cuide dos bens coletivos, do patrimônio
comum. Como isso ainda é algo muito débil, estamos tratando de agregar um
componente ético muito forte, que garanta que os cidadãos sejam bem atendidos,
que os bens públicos estejam bem cuidados, que os recursos públicos sejam bem
utilizados, tanto os gastos como os investimentos, com cidadãos satisfeitos com
o que o seu Estado está fazendo, com os serviços que está recebendo. Esta área
é muito importante porque deve projetar o que acreditamos que deve ser o
Estado.
E o papel das cooperativas neste modelo de desenvolvimento?
A partir do nosso ministério regulamos a vida institucional
das cooperativas. Nosso país já tem 11 milhões de habitantes, cerca de 7,5
milhões fazem parte da população economicamente ativa e, desta, 3,5 milhões,
pouco menos da metade, está de uma ou de outra forma ligada a algum tipo de
cooperativa.
A vida cooperativa em nosso país é muito forte, muito sólida
e impacta a vida social. Temos cooperativas categorizadas em produção, onde
estão as cooperativas mineiras e agropecuárias. As mineiras por si só geram
cerca de 200 mil postos de trabalho, para si mesmas, porque para as
cooperativas não está permitida a contratação de pessoal externo. O que elas
contratam fora é muito pouco, como contadores e engenheiros, o grosso do
pessoal que faz trabalho físico é cooperativizado. As cooperativas mineiras são
economicamente poderosas, pois equilibram o que produz o Estado e o setor
privado.
O setor agropecuário tem cerca de 1.600 cooperativas, em
todas as regiões do país, que estão produzindo grande parte do alimento que
consumimos.
E quanto às cooperativas de serviços públicos?
É no setor de serviços públicos onde estão as cooperativas
telefônicas, elétricas, de água e esgoto, saúde, moradia. Um grande bloco que
vai tendo maior presença quanto ao número de filiados, mas tem menor vida
institucional.
Numa cidade, utilizo os serviços de água e esgoto, mas não
lembro que sou sócio, que eles estão sendo oferecidos por uma cooperativa da
qual faço parte mas não participo. Em nosso governo muitas cooperativas vêm
sendo substituídas por empresas públicas, estatais, mas ainda na maior parte do
território nacional quem provê estes serviços são cooperativas. Estas
cooperativas chegaram a crescer tanto que tem 100 mil, 200 mil filiados. Então
a vida institucional da cooperativa é cada vez mais débil porque o cidadão não
vai à assembleia, não vai debater os temas. As decisões acabam ficando
restritas a umas poucas centenas e isso termina por fazer com que um pequeno
grupo se aproprie das suas decisões e do seu patrimônio.
Estamos enfrentando esse problema nos serviços telefônicos
na maior parte dos departamentos, além da crise institucional estamos
enfrentando uma crise de mercado, pois a telefonia convencional é mínima, já
foi substituída pelo whatsapp. O mercado virou para a internet e estas
cooperativas não tiveram a capacidade de atualizar-se de modernizar-se. Elas
precisam sobreviver e para isso necessitam dar um salto qualitativo.
Outro setor é o de serviços onde estão as empresas de
transporte nacional e internacional, urbano e público. Há uma forte presença
das estruturas cooperativas e é difícil construir políticas públicas com
setores tão grandes e massivos. É difícil oferecer as contrapartidas estatais,
já que nós é quem regulamos sua vida institucional, legal, se os representantes
estão democraticamente eleitos, cumprindo com a lei de cooperativas que
aprovamos há quatro anos.
Há também cooperativas financeiras. Um monte de gente que
constitui uma e agora interatua no mercado financeiro: abrem depósitos, dão
créditos, e o Estado é quem regula. As de água, a autoridade de serviços
básicos; a de eletricidade, a autoridade de água e eletricidade, então há uma
dupla fiscalização, porque cada uma destas autoridades tem um ministério acima
dela, que encabeça o setor. Este é um pouco a compreensão de cada um destes
setores do valor estratégico da cooperativa. Para nós, as cooperativas não
devem apenas sobreviver, como serem potencializadas e se desenvolver para ser
uma via alternativa ao capitalismo selvagem, que nos permita construir projetos
de uma maneira coletiva. Porém este é um debate que temos mantido dentro do
próprio governo, e não temos avançado muito. Assim, na hora de regular o
prestador de serviço não se distingue se é empresa privada, empresa pública ou
cooperativa. A cooperativa tem outra dimensão, tem limites. Por lei, a
cooperativa não pode ter fins de lucro. Esta realidade impõe outra perspectiva.
Nisso estamos avançando. Neste ano conseguimos constituir o conselho consultivo
de fomento cooperativo, estabelecido pela lei 356, das cooperativas, após um
amplo debate em que atingimos um nível de confiança entre todos os setores.
Quando começaram a aplicar o modelo neoliberal, o sistema
cooperativo foi que salvou o país e o manteve e sustentou na qualidade de país
mineiro. Porque todas as atividades mineiras foram depreciadas, com os
cooperativistas ganhando apenas para sobreviver. Depois desses 20 anos de
neoliberalismo, período em que foi um instrumento vigoroso, foi um dos
primeiros que se somou ao processo com ampla capacidade de mobilização. E isso
lhe dá uma situação privilegiada no processo na hora de discutir e definir
políticas públicas. Para este ministério, o setor cooperativo é estratégico.
Com que mecanismos o governo Evo tem enfrentado o grave
problema da corrupção?
Acreditamos que a lei da gestão pública, a lei do serviço
público, precisa estabelecer o perfil do servidor público, que tipo de
funcionário queremos. Incorporamos o servidor, mas isso não quer dizer que
ficará para sempre, que se desejar fazer carreira deverá incorporar esta
compreensão do compromisso coletivo.
O modelo neoliberal que herdamos, anterior a 2005, era
desenhado institucionalmente para o latrocínio, porque se desenhou um Estado
para roubar a sociedade, para roubar a Pátria. Com leis, eles roubaram nossos
aviões, roubaram nossas ferrovias, nossas geradoras de eletricidade, nossas
jazidas de petróleo. Era um sistema desenhado para o roubo. Quando assume, o
presidente Evo decide recuperar, nacionalizar, financiar o desenvolvimento. Mas
temos nos descuidado um pouco da formação do servidor público. Temos a Escola
de Gestão Pública Plurinacional que da metade para cima da hierarquia está
trabalhando bem em termos de formação técnica, quanto à qualificação, à
tecnificação do servidor. Porém a outra questão implica um trabalho permanente,
de avaliação, acompanhamento, de orientação e, sobretudo, de dignificação do
serviço público. Porque à medida que as pessoas sentem que este é um trabalho
sólido, constante, que irá se aposentar neste emprego, irá cuidar do seu
desempenho. Nossa orientação tem sido de uma mudança radical.
Ao longo destes 13 anos não vais encontrar, seja no
presidente, no vice-presidente ou nos ministérios alguém envolvido em casos de
corrupção. Mais abaixo, a estrutura é muita solta e permite muitas
subjetividades, iniciando por um trâmite que simplesmente fica engavetado
porque não lhe ofereceram nada em troca. A gestão pública não deve permitir
tanta subjetividade, devem ser estabelecidos procedimentos específicos, claros:
A, B e C. E a partir daí não se pode dar margem para interpretações.
Nós temos uma grande estrutura contra a corrupção nos
ministérios e vice-ministérios, há toda uma rede de acompanhamento
institucional em cada um deles. Há unidades de auditoria interna, unidades de
transparência, que servem para acompanhamento, mas precisa haver um grande
compromisso das autoridades para fazer com que estas estruturas funcionem, que
o cidadão sinta que realmente tem onde reclamar. E que esta resposta seja
rápida, seja imediata. Temos trabalhado com muita vontade, dependendo da
vontade da autoridade, porém o que precisamos é de um desenho institucional da
gestão pública que seja realmente eficiente. E eficiente não só para a
execução, para o desenvolvimento da gestão, mas para com o cuidado dos recursos
públicos. Isso passa por uma nova lei de gestão pública e por uma nova lei de
serviços públicos que realmente estabilize a relação laboral e que permita o
acompanhamento e a capacitação permanente. Precisamos viver de forma
transparente, em vitrines, com todos olhando o que estamos fazendo. Ninguém
precisa estar escondido para fazer as coisas. Hoje nossas normas de contratação
contam com todos esses componentes, mas são muito subjetivas. É preciso,
sobretudo, investir na consolidação da carreira do funcionário, para que ele
não termine optando por um caminho equivocado.
No caso boliviano, como avalias a manipulação do tema pela
grande mídia?
Na Bolívia, como no Brasil e na Argentina, o tema da
corrupção também vai sendo superdimensionado pela estratégia política que tenta
nos colocar como os mais corruptos, quando somos os que mais temos lutado
contra a corrupção e quem melhores resultados obtivemos. E os números o
comprovam. Casos em que a direita e os meios de comunicação alinhados com ela
os manipulam são emblemáticos, como é o Caso Zapata. [Nome dado a uma série de
“denúncias” jornalísticas realizadas a partir de fevereiro de 2016 atribuindo a
Evo Morales a paternidade de um menor chamado Ernesto Fidel Morales Zapata –
que logo se comprovou nunca haver existido. A campanha desinformativa foi
lançada poucos dias antes do referendo constitucional e acabou por ser
determinante na derrota do presidente por estreita margem]. Nunca se comprovou
a participação ou interferência de um único funcionário público em qualquer ato
de corrupção e isso nos custou um referendo. Depois os que armaram o suposto
escândalo confessaram, assumiram abertamente, rindo, porém o dano já havia sido
feito. O foco era objetivo: danificar a credibilidade do presidente.
Outro é o caso do Fundo Indígena, criado para manejar
aproximadamente 60 milhões de bolivianos (R$ 32,8 milhões). Assim surgiu,
terminando por gerir 5 bilhões de bolivianos (R$ 2,74 bilhões), com a mesma
estrutura. Aí há um problema de desenho institucional, pois a estrutura não se
expandiu à medida que cresciam os recursos. [Criado com o objetivo de apoiar
projetos de povos originários, o Fundo Indígena foi extinto por Evo em 2015
devido ao envolvimento de funcionários com “projetos fantasma”].
Como o sujeito político deste processo é o indígena, toda a
campanha veio no sentido de matar a credibilidade de seu líder, também minando
a sua base social, dizendo “todos os índios são ladrões”, “roubaram o dinheiro
do Fundo Indígena”. Está clara para onde está direcionada a estratégia.
Buscaram comprometer e macular todo o processo de mudança com isso.
No caso do Fundo Indígena, as denúncias de irregularidades
foram feitas por nós mesmos, por nossas próprias entidades, pela Controladoria
do Estado, que foi quem fez as auditorias e detectou as irregularidades. Há aí
uma forte presença do Estado tratando de resolver o problema. Diríamos que
perdemos, que os índios perderam, pois esta era uma fonte direta e aberta de
financiamento para todo o nosso movimento social, para as nossas estruturas,
para as nossas comunidades, e a partir houve uma mudança na política e estes
recursos passaram a ser intermediados pelos municípios. A sociedade civil como
tal perdeu uma sólida fonte de financiamento. Esta é a estratégia de
debilitamento do sujeito político do processo, que, ao contrário do que
esperavam nossos detratores, continua se fortalecendo.
E a importância da industrialização nesta batalha?
No modelo econômico tem havido quase uma distribuição
aritmética exata: 33% investimento público, 33% justiça social e 33% reservas.
Nós pegamos o Estado com menos de 1,5 bilhão de dólares de reservas. Quem
trabalha com economia sabe o quanto isso impacta na credibilidade com nossos
negociadores no estrangeiro. Quando chegamos ao governo, o presidente nacionaliza
os hidrocarbonetos, em 2006, e no final daquele ano pergunta ao ministro da
economia quando é que ele pensava ir a Paris. Porque em todos os governos
neoliberais, os ministros da Economia ou da Fazenda iam a Paris nos meses de
setembro ou outubro. Era a reunião do Clube de Paris, dos países ricos com os
pobres e endividados. Então o ministro lhe responde que não ia ser necessário,
que naquele ano ia nos sobrar dinheiro. A partir daí temos mantido esta lógica,
conseguindo ampliar as nossas reservas para 17 bilhões de dólares, ao mesmo
tempo em que transferimos recursos para os setores mais vulneráveis da
população, ampliando o subsídio para a natalidade, para pessoas com
deficiência, para os bônus de amparo às crianças que estudam [praticamente eliminando
a evasão escolar], ampliando os suplementos alimentares para pessoas idosas e
uma série de transferências indiretas como é o subsídio à água, à eletricidade
e ao combustível. Lembrando que nós não somos autossuficientes em combustível,
importamos gasolina e diesel.
O investimento sustentável no desenvolvimento é visível. Há
pouco o presidente lembrou que tínhamos pouco mais de 1.000 quilômetros de
rodovia pavimentada, hoje superamos 5.000 quilômetros construídos, com mais
2.700 em construção. O orçamento para a estrutura viária, assim como para os
demais setores estratégicos, tem sido feito de forma sustentada.
O outro ponto é a industrialização. Quando chegamos ao
governo devíamos ao Brasil “gás rico”, dizíamos. O Brasil pagava a mesma
quantidade de valores calóricos que nos paga agora, mas levava todo o líquido,
porque não havia em nenhum lugar usinas separadoras. Construímos duas, uma em
Yacuiba, em Tarija, para filtrar o que vai à Argentina, e outra em Rio Grande,
em Santa Cruz, para filtrar o que vai ao Brasil. A partir daí começamos a
produzir gás liquefeito de petróleo, gasolina e outros produtos. Desenvolvemos
a petroquímica em Bulo Bulo, que está produzindo 700 mil toneladas anuais de ureia
e amoníaco, construímos a usina de cloreto de potássio, estamos construindo a
nossa siderúrgica e nossa Central de Investigação Nuclear aqui em El Alto.
E a questão da formação científico-tecnológica dos
profissionais?
Nisso há um grande déficit. A partir de um problema político
que temos com o sistema universitário, que permanece ancorado nos anos 90, numa
bolha, numa cápsula do tempo. Neste momento, direito e auditoria continuam
sendo as duas carreiras que mais formam profissionais. Sempre digo para os
companheiros: “os advogados para dizer que não se pode e os auditores para
dizer que se fez mal”. Isso a nível de Estado. Porém, apesar disso, seguem
sendo o número um, porque a universidade é uma espécie de enclave neoliberal,
na sua cabeça, nas mentes de seus administradores. Eles se entretêm com sua
“democracia universitária”, nos impõem a barreira da autonomia, então não
conseguimos uma conexão. A universidade não sabe o que está se passando no
país, não está acompanhando.
Mas não teria como ter uma universidade pública em sintonia
com o processo de transformações?
Criamos três universidades indígenas: a Guarani, a Quechua e
a Aymara, mas diria que algumas privadas mais visionárias se conectaram melhor
com o processo. Não politicamente, mas academicamente.
Acabaram tendo mais senso…
Nós vivemos o boom do petróleo e do gás nos anos 90 e 2000 e
quando começa a declinar o mercado dos hidrocarbonetos recém a universidade
pública começa a se abrir. Está formando somente agora engenheiros petroleiros
ou engenheiros de gás, quando o mercado já não procura por eles. É uma falta de
conexão, de olfato.
Outro exemplo é o canal universitário. Em nosso país os
jornalistas, técnicos e executivos melhor remunerados dos meios de comunicação
são os dos canais universitários. São canais que não ganham uma publicidade nem
geram um recurso, mas tem o seu salário assegurado. Assim funcionam as
universidades: a ninguém interessa pesquisar, investigar ou inovar. Os que
fazem isso estão marginalizados politicamente da vida universitária.
Temos o reitor da Universidade Nacional de San Andrés, que encabeça
o Conade (Comitê Nacional de Defesa da Democracia) – de oposição – que mais faz
política nas ruas do que debater internamente sua proposta acadêmica, sua
crise. Nenhuma das 11 universidades públicas, do Estado boliviano, aparece
sequer entre as 500 principais da América Latina – entre públicas e privadas.
Isso demonstra o nível em que nos encontramos. Sabemos que esta questão de
ranking é mais de mercado, mas não deixa de ser um indicador. Por isso em cada
um dos projetos que estamos desenvolvendo há um componente de formação.
Por exemplo, os companheiros que estão trabalhando no Centro
de Investigação Nuclear vão à Rússia estudar durante três anos. O mesmo se fez
com os trabalhadores da usina de cloreto de potássio, de ureia e amoníaco. No
caso do projeto siderúrgico, também irão 150 profissionais jovens à China, onde
viverão dois anos e meio, para que quando a usina esteja concluída sejam eles
que a administrem.
Temos a compreensão de que necessitamos de uma grande
revolução educativa. Tivemos uma evolução interessante do ponto de vista da
legislação no campo da educação, principalmente incorporando o componente
técnico, para que os companheiros comecem a se relacionar com pelo menos certas
orientações vocacionais. Mas estamos chocando a universidade pública com estas
limitações, pois temos profissionais para áreas que não lhe correspondem.
Há pouco fizemos um levantamento no nosso vice-ministério,
uma medição do mercado laboral nas três principais capitais, e nos demos conta
que o que está buscando a juventude, o que está sendo produzido pela educação e
o que está demandando o mercado de trabalho são coisas que não se parecem, não
tem nenhum contato. Há um fosso, principalmente pela carência das nossas
universidades públicas, que precisam se somar ao processo. É preciso sintonia.