Segundo novo relatório da ONG Health Poverty Action, a
proibição alimenta a pobreza e a criminalidade em lugares como Brasil e Índia.
No Vice Brasil
Em Nova York, o julgamento do chefão de cartel Joaquín “El
Chapo” Guzmán está entrando em seu terceiro mês. A história de El Chapo é cheia
de negócios de milhões de dólares, fugas mirabolantes de prisões e, claro,
violência e corrupção características do comércio ilegal de drogas.
Mas o julgamento também aponta para uma estranha dicotomia
em como falamos sobre a guerra às drogas. Ao olhar para os EUA e Europa, vemos
como a proibição de drogas afeta muito mais comunidades marginalizadas e
minorias raciais. Ainda assim, quando falamos sobre drogas no sul global (o que
as pessoas costumavam chamar de “Terceiro Mundo”), a mídia se foca em chefes
poderosos como El Chapo e Pablo Escobar, esquecendo que a maioria dos
empregados e afetados pelo comércio de drogas são algumas das pessoas mais
pobres do mundo.
Na verdade, o que fica cada vez mais claro é que a proibição
internacional de drogas é o maior combustível da pobreza global. Semana
passada, a ONG Health Poverty Action (HPA) divulgou um relatório observando o
tráfico de drogas no Brasil e Índia. O documento explorou duas frentes: como
gangues de traficantes tomaram as favelas brasileiras e como a produção ilícita
de ópio formou uma economia alternativa no norte rural da Índia.
“Venho trabalhando em grandes campanhas de desenvolvimento
há anos – cancelamento de dívidas, justiça comercial, AIDS; todas as coisas de
que ONGs falam. Mas a maioria desses movimentos, mesmo fazendo o bem, eram
campanhas pensadas no norte global, depois exportadas”, diz o CEO da HPA,
Martin Drewry. “Aí um grupo de líderes políticos da América Latina veio para
Londres e virou tudo de cabeça para baixo. A prioridade deles é lutar para
acabar com a proibição das drogas – como uma questão de pobreza e
desenvolvimento global! É nisso que eles querem que nos foquemos. Eles colocam
isso na frente de muitas das nossas ideias de comércio injusto, evasão fiscal e
mudanças climáticas. Foi um momento de lâmpada na cabeça.”
À primeira vista, ver a proibição de drogas como igual a,
digamos, a estrutura do comércio mundial em termos de desenvolvimento global
pode parecer exagero. Mas olhe os números. Lutar a guerra às drogas custa ao
mundo US$ 100 bilhões por ano apenas em policiamento – e isso nem leva em conta
os custos absorvidos em saúde pública, renda não-taxada e desperdício de
potencial humano. O total anual do orçamento de ajuda global é de US$ 146
bilhões. Coloque esses números lado a lado e a escala da questão começa a ficar
clara.
O mercado ilícito de drogas é a galinha dos ovos de ouro da
corrupção criminal internacional. Nenhum outro ramo da criminalidade tem o
potencial de gerar a renda necessária para a corrupção endêmica e
industrializada da polícia e políticos. No sul global, segundo o relatório da
HPA, isso desestabiliza estados inteiros, destruindo o funcionamento básico do
governo enquanto esvazia camadas das instituições da sociedade civil. Mais
amplamente, você pode ver esses efeitos nas guerras civis colombianas
financiadas pela cocaína como as FARC até as fronteiras sem lei da China e Myanmar,
onde contrabandistas de anfetaminas e heroína formaram estados paralelos.
Martin Drewry destaca essas questões básicas. “Muitos desses
são países pobres em recursos, onde o comércio de drogas forma grandes seções
da economia – tudo isso sem pagar impostos. E enquanto os governos estão
ocupados, basicamente lutando um conflito armado contra sua própria população,
eles não estão fornecendo serviços básicos como saúde, educação e
infraestrutura.”
E o problema vai mais fundo que essa análise ampla. Uma das
coisas mais interessantes do relatório da HPA é que ele expande a conversa para
além de como “países produtores”, como a Colômbia e Afeganistão, ficaram presos
na guerra às drogas para atender as necessidades de consumidores ocidentais. O
documento também explora como o comércio de drogas funciona dentro dos países
do sul global.
“Há um círculo de pobreza que se autoperpetua", diz
Drawry. "As pessoas se envolvem com drogas para ter acesso a coisas
essenciais e básicas da vida porque não têm outras opções. Aí elas são presas e
suas chances na vida ficam ainda mais prejudicadas. Então há famílias inteiras
onde esse ciclo vem sendo passado de uma geração para a seguinte. Uma garota em
São Paulo nos contou como teve que começar a vender drogas porque a mãe tinha
sido presa, e ela precisava sustentar as irmãs mais novas. Ela tinha 12 anos.
Sessenta e quatro por cento das mulheres nas prisões do Brasil foram presas por
ofensas relacionadas a drogas.”
Os dados da Índia também enfatizam como mulheres comandam plantações
de ópio em pequena escala porque essa é uma fonte de renda flexível que elas
podem ter enquanto cuidam de deveres domésticos mais tradicionais e sua
educação. Isso as deixa vulneráveis para exploração de gangues criminosas e
para o assédio constante da polícia.
Crucialmente, a natureza particular do comércio de drogas
tem como alvo os mais pobres de uma maneira especialmente perniciosa. “Os caras
no topo dessas gangues nesses países podem pagar subornos e geralmente têm
poder de fogo para se proteger", diz. "Mas os governos ainda lidam
com uma pressão extrema dos EUA para parecerem 'duros com as drogas', então a
polícia e o exército precisam mostrar atividade – e o machado inevitavelmente
cai sobre os mais pobres."
O relatório é enfático que seu pedido de legalização das
drogas é só o primeiro passo; o mais importante é a natureza da regulamentação
das drogas. Drewry terminou nossa conversa insistindo que simplesmente entregar
o comércio de drogas para multinacionais não vai ajudar os pobres. "É
preciso envolvimento sério e transparente dos governos", diz. ˜Não há um
modelo padrão para todos os casos, mas iniciativas como garantir emprego na
indústria legal visando aqueles já envolvidos, e limitar a formação de
monopólios, como está sendo tentando na Califórnia e Bolívia, com certeza são
positivas. Tem até uma oportunidade aqui – temos a chance de criar um setor
legítimo inteiramente novo de base. Com o tempo, isso pode até servir como
modelo para outras partes das economias em desenvolvimento que sofrem com corrupção
séria.”
O sistema atual de proibição de drogas é um combustível
crucial da pobreza global. Uma visão de futuro alternativo em que um mercado
legal regulado de drogas se torna um modelo para abordar a corrupção e aliviar
a pobreza é particularmente inspirador.
E isso também pode servir como um lembrete de olhar menos
para o chefe de drogas bilionário El Chapo e mais para o garoto miserável de
Badiraguato, no México. É preciso mudar a lei agora para proteger outras
crianças pobres de dar os primeiros passos nesse mesmo caminho.
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