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sábado, 30 de setembro de 2023

Coco da bicharada

Por Antonio Nóbrega:


"Vou contar, que eu conheço,
E você nem acredita:
Uma cidade esquisita
Onde tudo é pelo avesso.
Se quiser dou o endereço
Para visitá-la um dia,
Gente lá não tem valia,
Como bicho é tratada,
Lá homem não é nada
Só quem manda é a bicharia".

Avoa, meu caboré,
Peneira, meu gavião.
Palmatória quebra dedo,
Palmatória faz vergão.
Quebra tudo, quebra pedra,
Só não quebra opinião.
Vi mosca de camisola,
Vi cavalo num debate,
Vi uma traça alfaiate,
Guaxinim tocar viola,
Um siri jogando bola.
Vi um píca-pau ferreiro,
Um veado arruaceiro,
Vi um mosquito tossindo,
Vi uma gata parindo,
E o cachorro era o parteiro.
Vi um peixe de chocalho,
Uma perua discreta,
Jabuti que era atleta
Mais veloz que um atalho,
Calango jogar baralho,
Formiga tapando furo,
A lagartixa no muro
Dando uma de alpinista,
E um preá capitalista
Emprestar dinheiro a juro.
Avoa, meu caboré,
Peneira, meu gavião.
Palmatória quebra dedo,
Palmatória faz vergão.
Quebra tudo, quebra pedra,
Só não quebra opinião.
Vi um jumento escrevendo,
Vi preguiça trabalhando,
Vi a besta reclamando.
Eu vi um morcego lendo,
Caranguejeira tecendo,
Porca em água-de-cheiro,
Vi um cururu faceiro,
Coruja no oculista,
Vi tatu ser maquinista.
No metrô lá de pinheiros
Vi a pulga se coçando,
Avestruz tirar encosto,
Vi barata ter bom gosto,
Um bode se barbeando,
Um gambá se perfumando,
Siriema ser modelo.
Vi minhoca de cabelo,
Vi cobra de suspensório,
Macaco no escritório
Organizar desmantelo.
Avoa, meu caboré,
Peneira, meu gavião.
Palmatória quebra dedo,
Palmatória faz vergão.
Quebra tudo, quebra pedra,
Só não quebra opinião.
Vi onça vegetariana,
Piolho coçar cabeça,
Vi um burro prestar queixa,
Leão comando banana.
Vi a zebra de pijama,
Eu vi um peba engenheiro,
Guariba tocar pandeiro,
Tanajura usando tanga,
Vi o cão chupando manga,
Batendo bombo em terreiro.


Nota:  Antonio Nóbrega  02/05/1952
Natural de Recife, estudou violino clássico e canto lírico com professores renomados, chegando a tocar em orquestra. Nos anos 70 participou do Quinteto Armorial, com o qual gravou quatro discos e excursionou pelo mundo divulgando a música tradicional nordestina. A partir de 1976 começa a conceber seus próprios espetáculos, misturando dança, artes cênicas e música, participando na década de 80 de festivais de teatro. Pesquisador de dança e música brasileira, radicou-se em São Paulo em 1983 e ajudou a implantar o Departamento de Artes Corporais da Unicamp. Depois de ganhar prêmios no exterior, seu trabalho começou a ter repercussão no Brasil na década de 90 com os espetáculos "Figural", "Brincante" e "Segundas Histórias", os dois últimos estrelados por seu personagem Tonheta, uma mistura de clown e vagabundo que cativa o público. No final da década passou a se dedicar mais à pesquisa musical, e lançou em CD os shows "Na Pancada do Ganzá" (baseado na viagem etnográfico-musical de Mário de Andrade pelo Brasil) e "Madeira que Cupim Não Rói". Mantém em São Paulo a Escola e Teatro Brincante, um centro cultural que promove eventos e cursos ligados à dança, música e arte circense. 

sexta-feira, 29 de setembro de 2023

"As veias abertas da América Latina"

 Trecho do livro "As veias abertas da América Latina" de Eduardo Galeano.


"Em 1781, Túpac Amaru sitiou Cuzco.

Este cacique mestiço, descendente direto dos imperadores Incas, encabeçou o movimento messiânico e revolucionário de maior envergadura. A grande rebelião estourou na província de Tinta. Montado em seu cavalo branco, Túpac Amaru entrou na praça de Tugasuca e, ao som de tambores e pututus, anunciou que havia condenado à forca o corregidor real Antonio Juan de Arriaga, e dispôs a proibição da mita de Potosí. A província de Tinta estava ficando despovoada por causa do serviço obrigatório nos socavãos de prata da montanha. Poucos dias depois, Túpac Amaru expediu um novo comunicado pelo qual decretava a liberdade dos escravos. Aboliu todos os impostos e o repartimiento de mão-de-obra indígena em todas suas formas. Os indígenas se juntaram, aos milhares, às forças do " pai de todos os pobres e de todos os miseráveis e desvaliados ". À frente de seus guerrilheiros, o caudilho lançou-se sobre Cuzco. Marchava pregando seu credo: todos os que morressem sob suas ordens nesta guerra ressuscitariam para desfrutar as felicidades e riquezas de que tinham sido despojados pelos invasores. Sucederam-se vitórias e derrotas; no fim, traído e capturado por um de seus chefes, Túpac Amaru foi entregue, amarrado com correntes, aos espanhóis. Em seu calabouço, entrou o visitador Areche para exigir-lhe, em troca de promessas, os nomes dos cúmplices da rebelião. Túpac Amaru repondeu-lhe com desprezo: "Aqui não há mais cúmplice que tu e eu; tu por opressor, e eu por libertador, merecemos a morte".

Túpac Amaru foi submetido a suplícios, junto com sua esposa, seus filhos e seus principais partidários, na praça de Wacaypata, em Cuzco. Cortaram-lhe a língua. Amarraram seus braços e pernas em quatro cavalos, para esquartejá-lo, mas o corpo não se partiu. Decapitaram-no ao pé da forca. Enviaram sua cabeça para Tinta. Um de seus braços foi para Tungasuca e o outro para Carabaya. Mandaram uma perna para Santa Rosa e a outra para Livitaca. Queimaram-lhe o tronco e jogaram a cinzas no rio Watanay. Recomendou-se que fosse extinta toda sua descendência, até o quarto grau."

quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Curiosa resposta de um músico a um fã desesperado

Protagoniza o astro da música latina Tommy Torres e um de seus fãs. Para quem não o conhece, Tommy é músico e compositor, produziu para Alejandro Sanz, Ricky Martin e Arjona, canções como: Quem, acompanha-me a estar só, Como Dói de Arjona e Tua lembrança de Ricky Martin. Definitivamente um grande nome da música latina.

Tommy recebeu um email (na verdade 2) de um de seus fãs, pedindo ajuda com uma garota…
Leia o email compartilhado por Tommy.

1º email

Querido Tommy, te escribo esta carta, no se si tu realmente lees estas cartas. Te escribo para pedirte algo que para mi es de vida o muerte. No pienses que exagero es la verdad. Mi nombre es Paco y te escribo de Santiago. Hay una chica que no se sale de mi mente, para eso eres tan elocuente, y a ella le encanta tus canciones... Te imaginas ya por donde voy.
Es que con ella no me salen las palabras, y quizás tu pudieras ayudarme, a decirle que yo muero aquí por Ella y de una forma un poco mas poética.
Que eso del romanticismo a mi no se me da. Dame algo tan bonito que le saque mil suspiros,
decirle que la amo y nada mas.
No se si bastara..

2º email

Senor Tommy: aquí le escribo nuevamente no me ha contestado, pensaba que era buena gente. Puede que este muy ocupado, pero yo estoy desesperado. Ayúdeme a encontrar la forma de decirle que yo muero aquí por ella, pero de una forma un poco mas poética que eso del romanticismo a mi no se me da..
Deme algo tan bonito, algo que nunca le hayan dicho. Decirle que la amo y nada mas..
No se si bastara..

Até aqui tudo normal…
Imaginem quantas cartas, tweets, emails, recebem por dia os cantoress reconhecidos... Mas Tommy decidiu dar um passo a mais, e esta foi a resposta que deu ao seu fã:


  

quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Arte de Satanás

 


Conta-se, e esta história jamais encontraremos em livros religiosos, que Deus quando resolveu criar o mundo o fez de forma maravilhosa, belo e sem defeito algum, porém, Satanás que rodeava e caminhava pela terra, em sua maldade e astúcia, fez por onde estragar a obra do criador. E assim se deu na forma extra-bíblica a história da criação do mundo:


Criou Deus o mundo, terra, água e tudo que nele há e desta feita dividiu o mundo em países, todos os países eram perfeitos, uma vez que foram criados pelas mãos de Deus. O diabo, sorrateiro, ficava às escondidas e quando Deus terminava de construir um país, o diabo fazia um jeito de estragar a obra recém-criada de seu criador.

Deus criou Cuba, linda, paradisíaca, banhada pelo pacífico oceano Atlântico, mas o diabo foi lá e com sua mão colocou no destino de Cuba colonizadores espanhóis e após esses, achando pouco, colocou ainda homens estado-unidenses impondo um tal bloqueio econômico que não permitiria o sucesso de uma determinada revolução que ali aconteceria.

Deus também criou a Argentina, e era um ótimo país, mas o diabo descontente em ver essa terra venturosa, amaldiçoou uma pequena ilha próxima a Buenos Aires e que este país julgava lhe pertencer, uma ilhota chamada de Malvinas pelos argentinos a que fez a Argentina ser humilhada pela Inglaterra, e deu o diabo o nome de falklands para esta determinada ilha.

E por aí foi o desenrolar da criação do mundo."Deus dava a farinha, o diabo carregava o saco". Na África, era tudo maravilhoso, fauna indescritível, berço da humanidade, o diabo não deixou por menos, foi até aquele local, espalhou guerra e fome pelo continente.

Em Portugal e Espanha, o diabo não tendo mais nada diabólico para fazer, infiltrou na cabeça daquele povo que eles iriam ser grandes navegantes e eles, foram, o que resultou mais tarde, na desgraça de outros continentes e países que foram então pegos de surpresa pela chegada desavisada destes inesperados viajantes das águas.

O diabo não se esqueceu também do Japão, país de tradição forte, arte milenar, detentor de conhecimento tecnológico, senhores em artes marciais, mas o diabo determinou que justamente ali um outro povo muito “gente boa” de um outro país, jogaria uma bomba que cobriria pra sempre de luto a história daquela terra do sol nascente.

No oriente médio, já que era terra escolhida para a passagem terrena do filho do homem, o diabo colocou tanto desentendimento, tanta guerra que estas se perduram até os nossos dias.

E desta feita, todos os países foram molestados pela mão do excluído Satanás. Porém, o Brasil parecia intacto, sem sofrer dano algum... Um dos anjos caídos, talvez o que tivesse a função de encarregado dos ajudantes de produção no inferno, indagou ao arrenegado Satanás:.

“Senhor rei das profundezas, eis que estragamos e amaldiçoamos todos os países criados pelas mãos de Deus, de uma forma ou de outra colocamos nossa maleficência em cada um deles, e por que tu óh excomungado mestre ainda não tocastes no Brasil? veja, é um país gigantesco, repleto de belezas naturais, clima bom, terra fértil, o que acontece que poupamos esta Terra de Santa Cruz”?

E Satanás sadicamente respondeu:

-“Estás redondamente enganado meu desgraçado súdito, para todos os países eu coloquei aflições, eu não poupei nenhum se quer, para o Brasil, para esta terra linda e hospitaleira eu pensei sadicamente, aguarde e verás a conduta dos políticos que eu criei para governar e sacanear o povo e este país tão nobre”.

Esta foi então a história da criação do mundo da forma que poucas vezes ouvimos contar, a arte de satanás no mundo. 

Qualquer semelhança com a realidade, talvez seja a prova de que esta história aqui contada não seja uma mentira absoluta.

Mateus Brandão de Souza

terça-feira, 26 de setembro de 2023

O guardador de rebanhos - Fernando Pessoa



(Alberto Caeiro)

[213]
Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas…
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!
Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.
A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas.
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.
Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou —
«Se é que ele as criou, do que duvido» —
«Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres.»
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.
A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.
A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.
Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.
Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.
Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.
Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?

segunda-feira, 25 de setembro de 2023

Querida feminista branca (DE NOVO), não seja tão barraqueira

 


Por Thiane Neves Barros


É de conhecimento do senso comum que mulher negra é considerada como a mulher barraqueira. Aquela que fala alto, que não leva desaforo pra casa, mal educada, lavadeira, tacacazeira, que põe a mão nas cadeiras e balança a cabeça de forma cadenciada com o pescoço. Adjetivos ditos sempre em tom pejorativo. Portanto, o título de meu texto é uma ironia. Pois as mulheres brancas quase nunca são barraqueiras, apenas são as donas da voz, são as madames, as donas da gentileza e da educação, aquelas que falam baixo, aquelas com voz de veludo, as de fino trato e que nunca tem a intenção de ofender. Mas a ironia, lógico, é direcionada. Ironizo aqui as feministas brancas que insistem em controlar e supervisionar os passos e as falas de mulheres negras.

Até bem pouco tempo, não tínhamos mulheres negras como referência intelectual no feminismo. Algumas combatentes mais antigas acabavam tendo atuações isoladas e solitárias. Em um brevíssimo resumo dessa história, nenhuma novidade: quando as mulheres brancas começaram a se organizar e combater a estrutura do patriarcado, sabemos que elas tinham condições de se reunirem em suas assembleias porque em casa tinham quem cuidasse da sua vida doméstica: outra mulher. A mãe? As irmãs? As tias? Lógico que não. As mulheres que facilitavam as lutas feministas brancas eram as mulheres negras, as criadas, mas isso a gente já sabe também.

Eu imagino o quanto Oyá e Ewá se indignavam com nossa não possibilidade de protagonismo. Mas o dia chegou. Mulheres negras começaram a se levantar e aos poucos se organizaram. E eis que de negras da família, passamos a ser as negras insubordinadas.

Mais anos passaram, ao longo desse tempo algumas feministas brancas perceberam seus equívocos e somaram, aliaram-se, souberam compreender seus espaços dentro da luta das mulheres negras. Outras deixaram como herança uma profunda e estúpida impossibilidade reflexiva quanto ao recorte racial,  territorial e identitário na luta pela equidade feminina em um pensamento estruturado no racismo e no patriarcado. E é com as herdeiras desta segunda categoria de feministas brancas a quem direciono este meu texto.

Agora é contigo, feminista branca-supervisora-fiscalizadora. Alguma vez nesta tua estrada tortuosa de não reflexão, de não leitura de livros e de pessoas, tu tiraste os olhos do teu umbigo e olhaste ao redor do mundo? Alguma vez já te puseste a pensar sobre representatividade x protagonismo x visibilidade? Alguma vez já te puseste a pensar que mulheres como eu – negra, amazônida, periférica – passamos décadas sem lermos uma só linha escrita por mulheres iguais a nós?

Tu sabes quantos anos eu tinha quando vi uma mulher negra amazônida, em situação de liderança na televisão, a primeira vez? Exatos 20 anos de idade. Hoje estou com 38 e nunca esqueci aquela imagem. Tu sabes a importância, pra mim, de ter visto aquela mulher na televisão sem estar subjugada? Então querida, tuas parças te fizeram midiática, e as minhas também me fazem querer ser midiática, sim. Vamos ser estrelas, sim. Estrelas de nós mesmas. E vamos ocupar espaços que nos são negados, sim.

Quando resolvi me arriscar no maravilhoso mundo das interwebs feminísticas, minha intenção era contribuir com o que muitas negras amazônidas já fazem há anos: colocar a mulher nortista, amazônida, paraense, belemense, em primeiro plano. Porque sim, nós padecemos do mal da invisibilidade por todos os mesmos motivos que uma mulher branca – por ser mulher, que uma mulher negra – por sermos negras, que uma mulher indígena – por ser “selvagem”, padecemos ainda mais por habitarmos um território marginalizado e onde mais impera o conceito da mestiçagem brasileira e latino-americana. Poucas pessoas sequer sabem quantos estados compõem a Amazônia, imagina saberem o quanto aqui precisamos de vozes altas, de gritos, de embates físicos. De negras midiáticas. De negras insubordinadas.

Nós não rachamos o movimento de mulheres, nós não rachamos o feminismo. Suas ancestrais apenas não nos incluíram entre as mulheres que mereciam equidade. Ficamos chorando? Sim, choramos muito, é verdade, porque nossas ancestrais levaram muita peia de feministas brancas, mas nós reagimos e agora estamos aqui: escrevendo, escrevendo, escrevendo, escrevendo. É por meio da atuação de mulheres negras na internet que aqui na Amazônia a gente também consegue ter um banquinho nessa rede. 

Feminismo é política, sim. E eu li Simone de Beauvoir e Judith Butler. Mas eu te pergunto: tu leste que feminista negra, querida? Já ouviste falar em Beatriz Nascimento? Em Zélia Amador de Deus? Tu conheces alguma mulher quilombola na luta armada por direitos ao seu pedaço de chão? Quem tu és na fila do pão do feminismo negro pra se encher de autoridade e difamar uma feminista negra, querida? Que sabes sobre política pública que envolva mulheres negras neste racismo tão competente? Já foste na fila do SUS pra ver quantas mulheres negras estão lá sendo deixadas por últimas na fila, porque alguém inventou que são mais resistentes à dor? Então, quem és tu pra fiscalizar nossas atuações e nossas histórias? Uma de nós errou, cometeu um equívoco, pisou na bola? Isso te faz querer ser heroína e salvar todas as feministas de uma feminista negra? Apenas não, querida. Cale-se e aguarde alguém com legitimidade para fazê-lo.

Tipo torto de afeto tu dizes pras tuas iguais, porque com todas as nossas dificuldades – inclusive de se livrar de feminista branca-supervisora-fiscalizadora em nossas lutas -, o que paira sobre a gente é ubuntu mesmo, querida. 

Sobre onde estamos quando as cordas estão arrebentando: Quantas vezes tu saíste da tua casa pra defender e socorrer uma mulher em uma delegacia, querida feminista branca-supervisora-fiscalizadora? Quantas vezes tu abrigaste, na tua casa, mulheres ameaçadas pelos maridos, namorados, noivos? Quantas vezes a tua cabeça esteve na mira de uma bala por se meter em briga de marido e mulher? Quantas vezes denunciaste homem da tua família por violência doméstica? E quantas vezes escondeste jovem da tua família porque a polícia achou que tava roubando? Pois é, eu vivi todas estas situações dentro da minha casa. Uma casa de duas mulheres negras conhecidamente barraqueiras por se indisporem com qualquer pessoa que pise em outra.

Tu sabes quantas vezes eu consegui levantar da cama depois de ler um texto de outra mulher negra na internet? Tu sabes quantos sorrisos eu dei depois de ler um texto de outra mulher negra na internet? Ora, ora, ora querida feminista branca-supervisora-fiscalizadora, tu entendes bem de feminismo-merchan, mas para entender de equidade estás a necessitar de leitura, vivência e menos arrogância.

E tua covardia é tamanha,  querida feminista branca-supervisora-fiscalizadora, que tu somes assim que tuas investidas contra a mulher negra são mal sucedidas. Porque quem te deixou a herança do racismo não previu que a gente ia lutar pra quebrar todas as formas de troncos e chibatadas.

No mais, estamos preocupadas mesmo é em dar orgulho às que nos antecederam, seja na Bahia, em São Paulo ou aqui em Belém. Apenas a elas devemos as contas do que pensamos, de como agimos e o que faremos daqui a outros tempos.


Nós não somos obrigadas a seguir cartilha de feminista branca, nunca fomos, nunca seremos.

sexta-feira, 15 de setembro de 2023

segunda-feira, 11 de setembro de 2023

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