Entrevista com David Harvey: por que O Capital de Karl Marx
ainda é o guia definidor para entender - e superar - os horrores do
capitalismo.
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Marx o capital |
Entrevista concedida a Daniel Denvir:
Faz mais de um século e meio desde que Karl Marx publicou o
primeiro volume de O Capital. É um volume enorme e intimidador. O erudito
radical David Harvey não concorda. Ele ensinou O Capital durante décadas. Seus
cursos populares sobre os três volumes de O Capital estão disponíveis
gratuitamente na internet, e foram assistidos por milhões de pessoas no mundo.
E formam a base de seus livros sobre os volumes um e dois. O último livro de
Harvey, Marx, Capital e a loucura da razão econômica é mais curto que os
anteriores. Nele, lida com a irracionalidade fundamental de um sistema
capitalista cujo funcionamento é supostamente qualquer coisa menos irracional.
Harvey conversou com Daniel Denvir sobre o livro, as forças
simultâneas criativas e destrutivas do capital, as mudanças climáticas e por
que ainda vale a pena lutar.
Daniel Denvir - Você tem ensinado O Capital por um bom
tempo. Faça uma breve visão geral de cada um dos três volumes.
David Harvey - Marx está muito nos detalhes, e às vezes é
difícil entender exatamente sua concepção de O Capital. Mas na verdade é
simples. Os capitalistas começam com certa quantia de dinheiro, pegam o
dinheiro no mercado e compram algumas mercadorias, como meios de produção e
força de trabalho, que colocam para trabalhar num processo de produção que gera
novas mercadorias. Elas são vendidas por dinheiro, com um lucro. Então o lucro
é redistribuído de várias maneiras, na forma de aluguéis e juros, e então
circula de volta para aquele dinheiro, e reinicia o ciclo de produção.
É um processo de circulação. E os três volumes de O Capital
lidam com diferentes aspectos desse processo. O primeiro trata da produção. O
segundo lida com a circulação e o que chamamos de “realização” - a maneira como
a mercadoria é convertida em dinheiro. E o terceiro lida com a distribuição -
quanto vai para o proprietário, quanto vai para o financista, quanto vai para o
comerciante, antes que tudo seja revirado e reenviado de volta ao processo de
circulação.
É o que tento ensinar, para que as pessoas entendam as
relações entre os três volumes de O Capital e não se percam totalmente em
nenhum volume ou em partes deles.
DD - Você difere de outros estudiosos de Marx. Uma grande
diferença é que você presta muita atenção aos volumes dois e três, além do
volume um, enquanto muitos estudiosos de Marx se concentram no volume um. Por
quê?
DH - Marx, em sua mente, tinha uma idéia da totalidade da
circulação do capital. Seu plano era dividi-la nessas três partes componentes,
que formam os três volumes. Então, apenas sigo o que Marx diz que está fazendo.
Agora, o problema é que os volumes dois e três não foram concluídos por ele, e não
são tão satisfatórios quanto o volume um.
O outro problema é que o volume um é uma obra-prima
literária, enquanto os volumes dois e três são mais técnicos e mais difíceis de
acompanhar. Então, posso entender por que, se as pessoas quiserem ler Marx com
um certo senso de alegria e diversão, elas o fazem com o volume um. Mas estou
dizendo: "Não, se você realmente quer entender o que é a concepção de
capital de Marx, não pode entender como sendo apenas sobre produção. É sobre
circulação. É sobre colocar no mercado e vender, e sobre a distribuição dos
lucros.”
DD - Uma razão pela qual isso é importante é que precisamos
entender essa dinâmica de expansão constante que impulsiona o capitalismo - o
que você chama de “infinito ruim”, citando Hegel. Explique o que é esse
"infinito mau".
DH - Você chega a essa ideia de “infinito ruim” no volume
um. O sistema tem que se expandir porque é sempre sobre lucro, sobre criar o
que Marx chamou de “mais-valia”, e a mais-valia é reinvestida na criação de
mais valor excedente. Então O Capital é sobre esta expansão constante.
E o que isso faz é: se você cresce 3% ao ano, para sempre,
chega ao ponto em que o volume de expansão necessária é absolutamente enorme.
No tempo de Marx, havia muito espaço no mundo para expandir, ao passo que agora
estamos falando de uma taxa composta de crescimento de 3% sobre tudo o que está
acontecendo na China, no sul da Ásia e na América Latina. O problema surge:
para onde você vai expandir? Esse é o infinito ruim que está surgindo.
No volume três, Marx diz que talvez a única maneira de se
expandir seja pela ampliação da base monetária. Porque com dinheiro não há
limite. Se falamos sobre o uso de cimento ou algo assim, há um limite físico
para o quanto se pode produzir. Mas com dinheiro, você pode simplesmente
adicionar zeros à oferta monetária global.
Se você olhar para o que foi feito depois da crise de 2008,
foram adicionados zeros à oferta monetária por algo chamado "quantitative
easing" (flexibilização quantitativa). Esse dinheiro então retornou ao
mercado de ações e depois às bolhas de ativos, especialmente nos mercados
imobiliários. Temos agora uma situação estranha em que, em todas as regiões
metropolitanas do mundo que visitei, há um enorme boom na construção e nos
preços dos ativos imobiliários - tudo isso está sendo alimentado pelo fato de
que o dinheiro está sendo criado e não sabe para onde ir, exceto em especulação
e valores de ativos.
DD – Sua formação é de geógrafo e, para você, a explicação
do capitalismo de Marx é fundamentalmente sobre como lidar com problemas de
espaço e tempo. Dinheiro e crédito são formas de resolver esses problemas.
Explique por que esses dois eixos de espaço e tempo são tão críticos.
DH - Por exemplo, a taxa de juros é sobre o desconto no
futuro. E o empréstimo é sobre o encerramento do futuro. A dívida é uma
reivindicação sobre a produção futura. Então o futuro está encerrado, porque
temos que pagar nossas dívidas. Pergunte a qualquer aluno que deva US$ 200 mil:
o futuro está encerrado, porque eles têm que pagar essa dívida. Esta exclusão
do futuro é uma parte terrivelmente importante do que é o capital.
O material espacial entra em cena porque, na medida em que o
capital começa a se expandir, sempre há a possibilidade de que, se não puder
expandir em um determinado espaço, ele entra em outro espaço. Por exemplo, a
Grã-Bretanha estava produzindo muito capital excedente no século XIX, então
muito dele fluiu para a América do Norte, parte para a América Latina, e outra
parte para a África do Sul. Então, há um aspecto geográfico nisso.
A expansão do sistema consiste em obter o que chamo de
"correções espaciais". Você tem um problema: tem excesso de capital.
O que vai fazer com isso? Bem, tem uma correção espacial, o que significa que
sai e constrói algo em outro lugar do mundo. Se tem um continente
"instável" como a América do Norte no século XIX, então há vastas
áreas em que pode se expandir. Mas agora a América do Norte está praticamente
coberta.
A reorganização espacial não é simplesmente sobre expansão.
É também sobre reconstrução. Temos a desindustrialização nos Estados Unidos e
na Europa, e depois a reconfiguração de uma área por meio de redesenvolvimento
urbano, de modo que as fábricas de algodão em Massachusetts se transformem em
condomínios.
Estamos ficando sem espaço e tempo agora. Esse é um dos
grandes problemas do capitalismo contemporâneo.
DD - Você falou sobre o futuro ser encerrado. Esse termo é
aplicável quando se trata de dívidas em moradias, obviamente.
DH - É por isso que acho que o termo
"encerramento" é muito interessante. Milhões de pessoas perderam suas
casas na crise. Seu futuro foi encerrado. Mas, ao mesmo tempo, a economia da
dívida não foi embora. Você pensaria que depois de 2007-8 haveria uma pausa na
criação de dívidas. Mas, na verdade, o que se viu foi um enorme aumento da
dívida.
O capitalismo contemporâneo está cada vez mais nos
sobrecarregando com dívidas. Isso deveria dizer respeito a todos nós. Como será
paga? E com que meios? E vamos acabar com mais e mais criação de dinheiro, que
então não tem para onde ir além de especulação e valores de ativos?
É quando começamos a construir coisas para as pessoas
investirem, não para as pessoas morarem. Uma das coisas mais surpreendentes
sobre a China contemporânea, por exemplo, é que existem cidades inteiras que
foram construídas e ainda não vividas. As pessoas compraram, porque é um bom
investimento.
DD - É precisamente essa questão do crédito que levou você a
emprestar uma frase de Jacques Derrida, “a loucura da razão econômica”.
Coloquialmente, loucura e insanidade são invocadas para estigmatizar ou
patologizar indivíduos com doença mental. Mas o que Marx e seu livro nos
mostram é que o sistema é realmente insano.
DH - A melhor medida disso é olhar para o que acontece em
uma crise. O capital produz crises periodicamente. Uma das características de
uma crise é que você tem excedentes de mão de obra - pessoas desempregadas, sem
saber como ganhar a vida - ao mesmo tempo em que você tem excedentes de capital
que não parecem encontrar um lugar para ir e obter uma taxa adequada de
retorno. Você tem esses dois superávits sentados lado ao lado, numa situação em
que a necessidade social é crônica.
Precisamos colocar capital e trabalho juntos para realmente
criar coisas. Mas você não pode fazer isso, porque o que você deseja criar não
é lucrativo e, se não for lucrativo, o capital não o faz. Entra em greve.
Então, ficamos com o capital excedente e o trabalho excedente, lado a lado.
Esse é o cúmulo da irracionalidade.
Somos ensinados que o sistema econômico capitalista é
altamente racional. Mas não é. Na verdade, produz incríveis irracionalidades.
DD - Você escreveu em Jacobin recentemente que Marx rompeu
com socialistas moralistas como Proudhon, Fourier, Saint-Simon e Robert Owen.
Quem eram esses socialistas e por que e como Marx se separou deles?
DH - Nos estágios iniciais do desenvolvimento capitalista,
havia problemas óbvios de condições de trabalho. Pessoas razoáveis, incluindo
profissionais e a burguesia, começaram a ver isso com horror. Uma espécie de
repugnância moral contra o industrialismo se desenvolveu. Muitos dos primeiros
socialistas eram moralistas, no bom sentido desse termo, e expressaram sua
indignação ao dizer que podemos construir uma sociedade alternativa, baseada no
bem-estar comunitário e na solidariedade social, e questões desse tipo.
Marx olhou para a situação e disse que, na verdade, o
problema com o capital não é que seja imoral, mas que é quase amoral. Tentar
confrontá-lo com a razão moral nunca vai muito longe, porque o sistema é
autogerador e se auto-reproduz. Temos que lidar com essa auto-reprodução do
sistema.
Marx adotou uma visão muito mais científica do capital e
disse que agora precisamos realmente substituir todo o sistema. Não é apenas
uma questão de limpar as fábricas - temos que lidar com o capital.
DD - Você viu O Jovem Karl Marx?
DH - Eu vi o filme e a peça. Marx é um personagem do seu
tempo e acho interessante olhar para ele dessa perspectiva.
Mas o que quero fazer é dizer, olhe - nós ainda estamos em
uma sociedade impulsionada pela acumulação de capital. Marx abstraiu as
particularidades de seu tempo e falou sobre a dinâmica da acumulação de capital
e apontou para seu caráter contraditório - como, em sua força motriz, está
aprisionando todos nós em dívidas. Marx disse que precisamos ir além do
protesto moral. Trata-se de descrever um processo sistemático que precisamos
enfrentar e entender a dinâmica do processo. Porque de outra forma as pessoas
tentam criar algum tipo de reforma moral, e a reforma moral é então cooptada
pelo capital.
É realmente fantástico que tenhamos a internet, que todos
pensavam inicialmente como uma grande tecnologia libertadora que permitiria uma
grande liberdade humana. Mas agora veja o que aconteceu com isso. Ela é
dominada por alguns monopólios que coletam nossos dados e os dão a todos os
tipos de personagens decadentes que a usam para fins políticos.
Algo que começou como uma verdadeira tecnologia libertadora
de repente se transforma em um veículo de repressão e opressão. Se for feita a
pergunta "como isso aconteceu?", ou se diz que é por causa de algumas
pessoas más que fizeram isso, ou, com Marx, que é o caráter sistemático do
capital sempre fazer isso.
Não existe uma ideia moral boa que o capital não possa
cooptar e transformar em algo horrendo. Quase todo esquema utópico que surgiu no
horizonte nos últimos cem anos foi transformado em uma distopia pela dinâmica
capitalista. É para isso que Marx aponta. Ele está dizendo: "Você tem que
lidar com esse processo. Se você não fizer isso, não criará um mundo
alternativo capaz de proporcionar liberdade humana a todos.”
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David Harvey |
DD - Vamos falar sobre as contradições desse processo. Marx
era um feroz crítico do capitalismo, mas também era um admirador de seus
poderes de destruição criativa. Ele pensou, por exemplo, que o capitalismo era
uma grande melhoria sobre o feudalismo. Como devemos pensar nesses poderes
destrutivos hoje? Muito do que o capitalismo destrói é bastante óbvio. Por
outro lado, precisamos levar em conta o aumento da renda em lugares como a
China e a Índia, e esse processo massivo de construção de infraestrutura que
está acontecendo em países como esses. Como você aborda esses processos
contraditórios?
DH - Você está certo em mencionar isso, porque Marx não é
simplesmente um crítico do capitalismo, ele também é fã de algumas das coisas
que o capitalismo constrói. Essa é a maior contradição de todas para Marx.
O capital construiu a capacidade, tecnológica e
organizacional, para criar um mundo muito melhor. Mas o faz através de relações
sociais de dominação, em vez de emancipação. Essa é a contradição central. E
Marx continua dizendo: "Por que não usamos toda essa capacidade
tecnológica e organizacional para criar um mundo que é libertador, em vez de um
que é dominador?"
DD - Uma contradição relacionada é como os marxistas devem
pensar sobre o atual debate sobre a globalização, que se tornou mais confuso do
que nunca. Como você acha que a esquerda deveria olhar para o debate sobre o
protecionismo de Trump, de uma forma diferente dos economistas?
DH - Marx realmente aprovou a globalização. No Manifesto
Comunista há uma passagem maravilhosa que fala sobre isso. Ele vê isso como
potencialmente emancipatório. Mas, novamente, a questão é por que essas
possibilidades emancipatórias não são assumidas. Por que elas são usadas como
meio de dominação de uma classe por outra? Sim, é verdade que algumas pessoas
no mundo melhoraram suas rendas, mas oito homens têm tanta riqueza quanto cerca
de 50% da população mundial.
Marx está dizendo que temos que fazer algo sobre isso. Mas,
ao fazê-lo, não nos sentimos nostálgicos e dizemos: “queremos voltar ao
feudalismo” ou “queremos ir viver da terra”. Temos que pensar em um futuro
progressivo, usando toda a tecnologia que temos, mas usá-las para um propósito
social, em vez de aumentar a riqueza e o poder, e concentrá-los num número cada
vez menor de mãos.
DD - Qual é mesmo a razão por que Marx rompeu com seus
contemporâneos socialistas românticos? Em termos do que as teorias econômicas
liberais e os economistas tradicionais ignoram sobre tudo isso, você cita uma
passagem de Marx: “Toda razão que eles - os economistas - colocam contra a
crise é uma contradição exorcizada e, portanto, uma contradição real. O que
pode causar crises. O desejo de se convencer da inexistência de contradições é
ao mesmo tempo a expressão de um desejo piedoso de que as contradições, que
estão realmente presentes, não deveriam existir”.
O que é que a economia mainstream se propõe a fazer? E o que
eles elidem ou escondem no processo?
DH - Eles odeiam contradições. Não se encaixa com a visão de
mundo deles. Os economistas gostam de enfrentar o que chamam de problemas, e os
problemas têm soluções. Contradições não. Elas existem com você o tempo todo e,
portanto, você precisa administrá-las.
Elas se intensificam naquilo que Marx chamou de
“contradições absolutas”. Como os economistas lidam com o fato de que na crise
dos anos 1930 ou 1970 ou mais recentemente, o capital excedente e o excedente
de trabalho se encontram lado a lado, e ninguém parece ter uma pista para
resolver isso. Como recolocá-los para que possam trabalhar para fins
socialmente produtivos?
Keynes tentou fazer algo sobre isso. Mas, em geral, os
economistas não têm ideia de como lidar com essas contradições. E Marx está
dizendo que esta contradição está na natureza da acumulação do capital. E essa
contradição então produz essas crises periodicamente, que reclamam vidas e
criam miséria.
Esses tipos de fenômenos devem ser abordados. E a economia
não tem uma maneira muito boa de pensar sobre eles.
DD - Em termos dessa contradição, você descreve em seu livro
“capital excedente e mão-de-obra excedente existentes lado a lado,
aparentemente sem maneira de juntá-los novamente.” Depois da recente crise,
como essas duas coisas - capital excedente e mão-de-obra excedente -
reaqueceram? E a maneira pela qual elas se juntaram resultou em uma nova forma
de capitalismo, distinta daquela que prevalecia antes da crise? Ainda estamos
vivendo sob o neoliberalismo ou algo novo foi criado?
DH - A resposta à crise de 2007-2008 foi para, na maior
parte do mundo - exceto na China – adotar uma política de austeridade
neoliberal. O que piorou as coisas. Desde então, tivemos mais cortes. Não
funcionou muito bem. Lentamente, o desemprego caiu nos Estados Unidos, mas é
claro que disparou em lugares como o Brasil e a Argentina.
DD - E o crescimento salarial é bem lento.
DH - Sim, os salários não saíram do lugar. Então, há o que a
administração Trump vem fazendo. Primeiro, seguiu algumas políticas muito
neoliberais. O orçamento que aprovaram em dezembro passado é um documento
neoliberal puro. Isso basicamente beneficia os detentores de bônus e os donos
de capital, e todos os outros são empurrados para o lado. E a outra coisa que
aconteceu é a desregulamentação, que os neoliberais gostam. A administração
Trump dobrou a desregulamentação - do meio ambiente, das leis trabalhistas e de
tudo mais. Então, na verdade, houve uma duplicação nas soluções neoliberais.
O argumento neoliberal teve muita aceitação nas décadas de
1980 e 1990 como sendo de algum modo libertador. Mas ninguém acredita mais
nisso. Todo mundo percebe que é uma trapaça na qual os ricos ficam mais ricos e
os pobres ficam mais pobres.
Mas estamos começando a ver o possível surgimento de um
protecionismo étnico-nacionalista-autárquico, que é um modelo diferente. Isso
não se encaixa muito bem com os ideais neoliberais. Poderíamos estar nos
dirigindo para algo que é muito menos agradável do que o neoliberalismo - a
divisão do mundo em facções guerreiras e protecionistas que estão lutando entre
si pelo comércio e tudo mais.
O argumento de alguém como Steve Bannon (um assessor de
Donald Trump – JCR) é que precisamos proteger os trabalhadores da América contra
a competição no mercado de trabalho, limitando a imigração. Em vez de culpar o
capital, culpa os imigrantes. A segunda coisa é dizer que também podemos obter
apoio dessa população criando tarifas protecionistas e culpando a concorrência
chinesa.
Na verdade, você tem uma política de direita que está
ganhando muito apoio sendo anti-imigração e anti-offshoring. Mas o fato é que o
maior problema dos empregos não é o offshoring, é a mudança tecnológica. Cerca
de 60% ou 70% do desemprego que ocorreu a partir dos anos 80 deveu-se à mudança
tecnológica. Talvez 20% ou 30% foi devido ao offshoring.
Mas a ala direita agora tem uma política. Essa política não
está apenas acontecendo nos Estados Unidos, mas na Hungria, na Índia, até certo
ponto, na Rússia. A política autoritário-nacionalista está começando a dividir
o mundo capitalista em facções em conflito. Nós sabemos o que aconteceu com
esse tipo de coisa na década de 1930, então devemos estar muito preocupados.
Não é uma resposta ao dilema do capital. Na medida em que o etnonacionalismo
conquiste o neoliberalismo, estaremos em um mundo ainda mais feio do que já
estivemos.
DD - Essas contradições são poderosas dentro da coalizão
governamental conservadora nos EUA, mas acho que é um erro quando as pessoas as
vêem como novas. Elas estão latentes há muito tempo.
DH - Oh sim. Por exemplo, na Grã-Bretanha, no final dos anos
1960, havia o discurso de Enoch Powell (conservador e ministro da Saúde no
Reino Unido, na década de 1960 - JCR) que falava sobre “rios de sangue” se
continuássemos com a política de imigração. O fervor anti-imigrante já existia
há muito tempo.
Mas conseguiu, durante os anos 1980 e 1990, ser mantido em
segredo porque havia dinamismo suficiente na economia capitalista global para
as pessoas dizerem: “esse regime de livre comércio e políticas de imigração
razoavelmente benignas estão trabalhando para nós.” Desde então, mudou de
direção.
DD - Você mencionou o enorme poder da automação. O que Marx
diz sobre automação e o que você faz dela? O fim do trabalho está realmente
próximo?
DH - Eu vim para os Estados Unidos em 1969 e fui para
Baltimore, onde havia enormes empresas de ferro e aço que empregavam cerca de
trinta e sete mil pessoas. Em 1990, a siderurgia ainda produzia a mesma
quantidade de aço, mas empregava cerca de cinco mil pessoas. Agora o trabalho
do aço praticamente desapareceu. O ponto é que, na manufatura, a automação
expulsou empregos por atacado, em todo lugar, muito rapidamente. A esquerda
passou muito tempo tentando defender esses trabalhos e lutou contra a ação de
retaguarda contra a automação.
Essa foi uma estratégia errada por algumas razões. A
automação estava chegando de qualquer maneira, e você ia perder. Em segundo
lugar, não vejo por que a esquerda deveria se opor absolutamente à automação. A
posição de Marx, na medida em que ele tinha uma, seria que deveríamos usar essa
inteligência artificial e automação, mas deveríamos fazê-lo de uma maneira que
aliviasse a carga de trabalho.
A esquerda deveria estar trabalhando em uma política na qual
diria: “damos as boas-vindas à inteligência artificial e à automação, mas elas
devem nos dar muito mais tempo livre”. Uma das grandes coisas que Marx sugere é
que o tempo livre é uma das coisas mais emancipatórias que podemos ter. Ele tem
uma boa frase: o reino da liberdade começa quando o reino da necessidade é
ultrapassado. Imagine um mundo em que as necessidades pudessem ser atendidas.
Um ou dois dias por semana de trabalho, e o resto do tempo é tempo livre.
Agora, temos todas essas inovações que poupam trabalho na
produção e também no lar. Mas se perguntar às pessoas, você tem mais tempo
livre do que antes?, a resposta é: "não, eu tenho menos tempo livre".
Temos que organizar tudo isso para que possamos ter o máximo de tempo livre
possível. Esse é o tipo de imaginação de uma sociedade que Marx tem em mente. E
é uma ideia óbvia.
O que está nos impedindo é que todas essas coisas estão
sendo usadas para sustentar os lucros do Google e da Amazon. Até lidarmos com
as relações sociais e as relações de classe por trás de tudo isso, não
poderemos usar esses dispositivos e oportunidades fantásticos de maneira que
beneficiam a todos.
DD - O que você acha dos esquemas de renda básica universal?
DH - No Vale do Silício, eles querem uma renda básica
universal para que as pessoas tenham dinheiro suficiente para pagar pela
Netflix. Que tipo de mundo é esse? Fale sobre uma distopia. A renda básica
universal é uma coisa, o problema é o Vale do Silício e aquelas pessoas que
estão monopolizando os meios de comunicação e entretenimento.
A renda básica universal em algum momento pode estar na
agenda, mas não coloco isso no topo das minhas prioridades políticas. Na
verdade, existem aspectos que têm possibilidades altamente negativas, como
sugere o modelo do Vale do Silício.
DD - Você acha que a mudança climática coloca limites claros
à expansão permanente exigida pelo capitalismo, ou o capitalismo será capaz de
resistir à crise climática?
DH – O capital poderia resistir à crise da mudança
climática. De fato, se você olhar para os desastres climáticos, o capital pode
transformar isso no que Naomi Klein chama de “capitalismo de desastre”. Você
tem um desastre, bem, você tem que reconstruir. Isso dá muitas oportunidades
para o capital se recuperar de forma lucrativa de desastres climáticos.
Do ponto de vista da humanidade, acho que não sairemos bem
disso. Mas o capital é diferente. O capital pode sair dessas coisas e, desde
que seja lucrativo, ele fará isso.
DD - Vamos falar sobre resistência. Você escreve que
produção e consumo são as duas facetas centrais do capitalismo, e que lutas
sociais e políticas contra o poder do capital, dentro da totalidade da
circulação do capital, tomam formas diferentes e exigem diferentes tipos de
alianças estratégicas, para terem sucesso.
Como devemos pensar sobre a relação entre as lutas
trabalhistas, por um lado, e as lutas contra o Estado - contra o encarceramento
em massa, contra despejos de moradores ou empréstimos predatórios - por outro?
DH - Uma das virtudes de olhar o capital como uma totalidade
e pensar em todos os aspectos da circulação do capital é que você identifica
diferentes arenas de luta. Por exemplo, a questão ambiental. Marx fala sobre a
relação metabólica com a natureza. Portanto, a luta pela relação com a natureza
torna-se politicamente significativa. Neste momento, muitas pessoas que estão
preocupadas com a questão ambiental dirão: “podemos lidar com isso sem
confrontar a acumulação de capital”.
Eu me oponho a isso. Num certo ponto, teremos que lidar com
a acumulação de capital, que representa um crescimento de cerca de 3% para
sempre, como uma questão ambiental clara. Não haverá uma solução para a questão
ambiental sem confrontar a acumulação de capital.
Existem outros aspectos também. O capital tem sido a
produção de novos desejos e necessidades. Tem sido a produção do consumismo.
Acabo de voltar da China e notei que em apenas três ou quatro anos houve um
imenso aumento do consumismo. Isto é o que o Banco Mundial e o FMI estavam
aconselhando aos chineses há vinte anos, dizendo: "você está economizando
muito e não está consumindo o suficiente". Agora os chineses estão
iniciando uma verdadeira sociedade de consumo, e isso significa que os desejos
e necessidades das pessoas estão sendo transformados. Vinte anos atrás, na
China, o que você queria, precisava e desejava era uma bicicleta, e agora você
precisa de um automóvel.
Existem várias maneiras de fazer isso. Os "homens
loucos" da publicidade têm seu papel a desempenhar, mas ainda mais
importante é a invenção de novos estilos de vida. Por exemplo, uma das maneiras
pelas quais o capital saiu do seu dilema em 1945 nos Estados Unidos foi através
da suburbanização, que é a criação de um novo estilo de vida. Na verdade, o que
descobrimos é que a criação de estilo de vida não é uma escolha.
Todos temos telefones celulares. Essa é a criação de um
estilo de vida, e esse estilo de vida não é algo que eu possa escolher
individualmente para entrar ou sair - tenho que ter um telefone celular, mesmo
que não saiba como a maldita coisa funciona.
Não é como se, no passado, alguém estivesse desejando,
querendo ou precisando de um celular. Essa necessidade surgiu por uma razão em
particular, e o capital encontrou uma maneira de organizar um estilo de vida em
torno disso. Agora estamos presos a esse estilo de vida. Consulte novamente o
processo de suburbanização. O que você precisa nos subúrbios? Você precisa de
um cortador de grama. Se você fosse inteligente em 1945, teria entrado na
produção de cortadores de grama porque todos precisavam de um para cortar a
grama.
Agora, há revoltas contra certas coisas que acontecem. As
pessoas começam a dizer: “queremos fazer algo diferente”. Encontro pequenas
comunidades em todo lugar nas áreas urbanas e também nas áreas rurais, onde as
pessoas estão tentando criar um estilo de vida diferente. As que mais me
interessam são aquelas que usam novas tecnologias, como o celular e a internet,
para criar um estilo de vida alternativo com diferentes formas de relações
sociais do que aquelas características de corporações, com estruturas
hierárquicas de poder, que encontramos em nosso dia a dia.
Lutar por um estilo de vida é bastante diferente do que
lutar por salários ou condições de trabalho em uma fábrica. Há, no entanto, do
ponto de vista da totalidade, uma relação entre essas diferentes lutas. Estou
interessado em fazer com que as pessoas vejam como a luta pelo meio ambiente, a
produção de novos desejos e necessidades e o consumismo estão relacionados às
formas de produção. Coloque todas essas coisas juntas e você terá uma imagem da
totalidade do que é uma sociedade capitalista, e os diferentes tipos de
insatisfações e alienações que existem nos diferentes componentes da circulação
do capital que Marx identifica.
DD - Como você vê a relação entre as lutas contra o racismo
e essas lutas contra a produção e o consumo?
DH - Dependendo de onde você está no mundo, essas questões
são fundamentais. Aqui nos Estados Unidos, esta é uma questão muito grande. Você
não terá o mesmo problema se observar o que está acontecendo na China. Mas
aqui, as relações sociais são sempre marcadas por questões de gênero, raça,
religião, etnia e afins.
Portanto, você não pode lidar com a questão da produção de
estilos de vida ou a produção de desejos e necessidades sem englobar a questão
do que acontece nos mercados imobiliários racializados e como a questão racial
é então utilizada de várias maneiras. Por exemplo, quando me mudei para
Baltimore, uma das coisas que estava acontecendo era o blockbusting - o uso,
pelo setor imobiliário, de disparidades raciais para forçar a fuga dos brancos
e capitalizar a alta rotatividade no mercado imobiliário como uma forma de
obter vantagem econômica.
As questões de gênero que surgem em torno de questões de
reprodução social também são primordiais em uma sociedade capitalista, não
importa onde você esteja. Essas questões estão embutidas na acumulação de
capital.
Quando estou falando sobre isso, muitas vezes tenho
problemas porque parece que a acumulação de capital é mais importante do que
esses outros aspectos. A resposta é que não, não é esse o caso. Mas os
anti-racistas precisam lidar com a maneira pela qual a acumulação de capital
interfere na política antirracista. E com a relação entre esse processo de
acumulação e a perpetuação de distinções raciais.
Aqui nos Estados Unidos, temos todo um conjunto desses tipos
de perguntas, que são de suma importância. Mas, novamente, elas podem ser
tratadas sem que, em algum momento, se lide com a maneira pela qual a
acumulação de capital está promovendo e perpetuando algumas dessas distinções?
A resposta para isso, para mim, é não. Eu não acho que isso seja possível. A
certa altura, os anti-racistas também precisam ser anticapitalistas se quiserem
chegar à raiz real de muitos dos problemas.
DD – Você é bem conhecido pelo seu trabalho acadêmico, mas
talvez seja mais conhecido como professor de Marx. Por que você acha importante
que os esquerdistas de fora da academia se envolvam com o trabalho sobre Marx?
DH - Quando você está envolvido em ação política e no
ativismo, você geralmente tem um alvo muito específico. Vamos dizer, envenenar
a tinta no centro da cidade. Você está organizando o que fazer com o fato de
que 20% das crianças no centro de Baltimore sofrem de envenenamento por tinta
de chumbo. Você está envolvido em uma batalha legal e na luta com lobbies de
proprietários e com todos os tipos de oponentes. A maioria das pessoas que
conheço envolvidas em formas ativistas desse tipo estão tão preocupadas com os
detalhes do que estão fazendo que muitas vezes esquecem onde estão no quadro
geral - das lutas de uma cidade, quanto mais no mundo.
Muitas vezes você acha que as pessoas precisam de ajuda de
fora. Essa coisa de tinta de chumbo é muito mais fácil de lidar se você tem
todas as pessoas envolvidas no sistema educacional, que vêem crianças em
escolas com problemas com envenenamento por tinta de chumbo. Você começa a
construir alianças. E quanto mais alianças você puder construir, mais poderoso
seu movimento se torna.
Eu tento não ensinar as pessoas sobre o que elas devem
pensar, mas tente criar uma estrutura de pensamento, para que as pessoas possam
ver onde estão na totalidade de relacionamentos complicados que compõem a
sociedade contemporânea. Então, as pessoas podem formar alianças em torno dos
problemas com os quais estão preocupadas e, ao mesmo tempo, mobilizar seus
próprios poderes para ajudar outras pessoas em suas alianças.
Estou construindo alianças. Para construir alianças, você
precisa ter uma imagem da totalidade de uma sociedade capitalista. Na medida em
que você pode obter um pouco disso estudando Marx, acho que é útil.
(*) David Harvey, nascido na Inglaterra e radicado nos EUA
desde 1969, é professor de antropologia e geografia no Centro de Pós-Graduação
da Universidade da Cidade de Nova York. Seu último livro é The Ways of the
World. Daniel Denvir é autor de All-American Nativism; escreve no The Appeal, e
é apresentador de The Dig, na Rádio Jacobin.
Fonte: Jacobin. Tradução: José Carlos Ruy