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Jair Bolsonaro, então deputado, comemora o golpe de 1964 | Crédito: Reprodução/Youtube |
Por Urariano Mota
Os jornais desta semana trazem os
títulos :
“Justiça autoriza governo
Bolsonaro a manter celebração do golpe de 1964“, ou “Justiça acolhe recurso do governo federal
por direito de comemorar o golpe militar de 1964 “, ou mesmo “Justiça dá aval para governo Bolsonaro
celebrar o golpe de 1964”…
Em primeiro lugar, os jornais
erram nos títulos. Confundem o Tribunal Regional Federal da 5ª Região com a
Justiça. Ainda que fosse o Supremo Tribunal Federal, deveriam sempre, com mais
propriedade, nomear o tribunal de onde veio a decisão, jamais confundi-la com a
Justiça. E aqui, neste primeiro erro, estendemos a ressalva para além dos
jornais: não se deve por coerência filosófica, científica, chamar de justiça o
que leis, costumes, tempo do poder judiciário determinam, até porque a
escravidão também já foi abrigada pela “justiça”. Hoje, neste momento, os
trabalhadores continuam explorados com o aval da justiça.
Isso posto, é preciso reconhecer
que na imprensa avançamos. Não faz muito, chamavam de Revolução o golpe que
instalou a ditadura no Brasil. Mas ainda aqui, o avanço é relativo, porque
velhos preconceitos se misturam às novas redações. Se não, vejam o que exibe o
corpo da notícia na Folha de São Paulo: “O golpe de 1964 deu início à ditadura militar, que se estendeu até 1985.
Houve tortura e mortes, censura à imprensa e fechamento do Congresso
Nacional”. Muito bem! Mas foi mais que a
pressa informativa de duas linhas resumida: prisão de governadores em pleno exercício,
cassação de mandatos, desaparecimento de pessoas, corrupção silenciada,
forjamento de notícias, censura à musica, ao teatro, ao cinema, deformação do
ensino público, exibição nas tevês de presos políticos que, torturados, se
declaravam arrependidos dos seus “crimes”. Numa palavra, o terror de Estado.
Acredito que haveria maior poder
informativo se as notícias levantassem os votos anteriores e o currículo dos
senhores do Tribunal Regional Federal da 5ª Região que fizeram “Justiça”. A
saber, estaríamos melhor informados se soubéssemos quem são os quatro desembargadores
que cassaram a liminar, com especial destaque do relator Rogério Fialho
Moreira. Então compreenderíamos quem faz a senhora Justiça que abriga
assassinatos e cassa o voto popular.
Mas aquilo que as notícias não
dizem nem falam, bem podemos tentar uma recuperação com a voz da consciência na
literatura. Quero dizer, de modo mais próximo do que conheço: a corajosa
advogada Mércia Albuquerque foi modelo da brava Gardênia Vieira em “A mais
longa duração da juventude” em uma página:
“À sua frente surge ela própria,
a bela e ardente advogada Gardênia Vieira. Ela não é alta, nem suave ou
feminina, quero dizer, naquele sentido de bailarina delicada de porcelana. Pelo
contrário, em vez de amparável, porque a sua fina louça podia quebrar, de
Gardênia vem uma força moral que abriga, como tem abrigado mais de uma pessoa,
físico e alma torturada no Recife. Mas além da fortaleza moral, de onde vêm a
sua beleza e feminilidade? Era preciso vê-la para notar o que não se revela nos
retratos. Gardênia olha firme e direto, como poucas mulheres usam e ousam olhar
fundo em um homem, e nem por isso desperta o desejo mais carnal de sexo. De
imediato, não. O desejo de amá-la viria espiritualizado, se podemos falar
assim, quando à sua pequena altura, de olhar abrasante, associamos a coragem e
os cadáveres que viu e denunciou, e o mundo abjeto contra o qual se indigna.
Bem sei, ainda aqui não sou claro. Quero dizer, o amor à mulher Gardênia Vieira
vem não só misturado ao respeito à pessoa, mas em essência à sua visitação aos
cadáveres de socialistas torturados”.
Ou em sua identidade real, quando
inscrevi seu depoimento em “Soledad no Recife”, nestas linhas:
“Soledad estava com os olhos
muito abertos, com uma expressão muito grande de terror. Eu fiquei horrorizada.
Como Soledad estava em pé, com os braços ao lado do corpo, eu tirei a minha
anágua e coloquei no pescoço dela.
O que mais me impressionou foi o
sangue coagulado em grande quantidade. Eu tenho a impressão de que ela foi
morta e ficou deitada, e a trouxeram depois, e o sangue, quando coagulou, ficou
preso nas pernas, porque era uma quantidade grande. O feto estava lá nos pés
dela. Não posso saber como foi parar ali, ou se foi ali mesmo no necrotério que
ele caiu, que ele nasceu, naquele horror”.
No Recife, a Justiça atendia pelo
nome da advogada Mércia Albuquerque. Mas na ditadura quase sempre chegava
tarde, porque a história vivida não era a que nós queríamos.
Via-Jornal GGN
Por Urariano Mota
Os jornais desta semana trazem os
títulos :
“Justiça autoriza governo
Bolsonaro a manter celebração do golpe de 1964“, ou “Justiça acolhe recurso do governo federal
por direito de comemorar o golpe militar de 1964 “, ou mesmo “Justiça dá aval para governo Bolsonaro
celebrar o golpe de 1964”…
Em primeiro lugar, os jornais
erram nos títulos. Confundem o Tribunal Regional Federal da 5ª Região com a
Justiça. Ainda que fosse o Supremo Tribunal Federal, deveriam sempre, com mais
propriedade, nomear o tribunal de onde veio a decisão, jamais confundi-la com a
Justiça. E aqui, neste primeiro erro, estendemos a ressalva para além dos
jornais: não se deve por coerência filosófica, científica, chamar de justiça o
que leis, costumes, tempo do poder judiciário determinam, até porque a
escravidão também já foi abrigada pela “justiça”. Hoje, neste momento, os
trabalhadores continuam explorados com o aval da justiça.
Isso posto, é preciso reconhecer
que na imprensa avançamos. Não faz muito, chamavam de Revolução o golpe que
instalou a ditadura no Brasil. Mas ainda aqui, o avanço é relativo, porque
velhos preconceitos se misturam às novas redações. Se não, vejam o que exibe o
corpo da notícia na Folha de São Paulo: “O golpe de 1964 deu início à ditadura militar, que se estendeu até 1985.
Houve tortura e mortes, censura à imprensa e fechamento do Congresso
Nacional”. Muito bem! Mas foi mais que a
pressa informativa de duas linhas resumida: prisão de governadores em pleno exercício,
cassação de mandatos, desaparecimento de pessoas, corrupção silenciada,
forjamento de notícias, censura à musica, ao teatro, ao cinema, deformação do
ensino público, exibição nas tevês de presos políticos que, torturados, se
declaravam arrependidos dos seus “crimes”. Numa palavra, o terror de Estado.
Acredito que haveria maior poder
informativo se as notícias levantassem os votos anteriores e o currículo dos
senhores do Tribunal Regional Federal da 5ª Região que fizeram “Justiça”. A
saber, estaríamos melhor informados se soubéssemos quem são os quatro desembargadores
que cassaram a liminar, com especial destaque do relator Rogério Fialho
Moreira. Então compreenderíamos quem faz a senhora Justiça que abriga
assassinatos e cassa o voto popular.
Mas aquilo que as notícias não
dizem nem falam, bem podemos tentar uma recuperação com a voz da consciência na
literatura. Quero dizer, de modo mais próximo do que conheço: a corajosa
advogada Mércia Albuquerque foi modelo da brava Gardênia Vieira em “A mais
longa duração da juventude” em uma página:
“À sua frente surge ela própria,
a bela e ardente advogada Gardênia Vieira. Ela não é alta, nem suave ou
feminina, quero dizer, naquele sentido de bailarina delicada de porcelana. Pelo
contrário, em vez de amparável, porque a sua fina louça podia quebrar, de
Gardênia vem uma força moral que abriga, como tem abrigado mais de uma pessoa,
físico e alma torturada no Recife. Mas além da fortaleza moral, de onde vêm a
sua beleza e feminilidade? Era preciso vê-la para notar o que não se revela nos
retratos. Gardênia olha firme e direto, como poucas mulheres usam e ousam olhar
fundo em um homem, e nem por isso desperta o desejo mais carnal de sexo. De
imediato, não. O desejo de amá-la viria espiritualizado, se podemos falar
assim, quando à sua pequena altura, de olhar abrasante, associamos a coragem e
os cadáveres que viu e denunciou, e o mundo abjeto contra o qual se indigna.
Bem sei, ainda aqui não sou claro. Quero dizer, o amor à mulher Gardênia Vieira
vem não só misturado ao respeito à pessoa, mas em essência à sua visitação aos
cadáveres de socialistas torturados”.
Ou em sua identidade real, quando
inscrevi seu depoimento em “Soledad no Recife”, nestas linhas:
“Soledad estava com os olhos
muito abertos, com uma expressão muito grande de terror. Eu fiquei horrorizada.
Como Soledad estava em pé, com os braços ao lado do corpo, eu tirei a minha
anágua e coloquei no pescoço dela.
O que mais me impressionou foi o
sangue coagulado em grande quantidade. Eu tenho a impressão de que ela foi
morta e ficou deitada, e a trouxeram depois, e o sangue, quando coagulou, ficou
preso nas pernas, porque era uma quantidade grande. O feto estava lá nos pés
dela. Não posso saber como foi parar ali, ou se foi ali mesmo no necrotério que
ele caiu, que ele nasceu, naquele horror”.
No Recife, a Justiça atendia pelo
nome da advogada Mércia Albuquerque. Mas na ditadura quase sempre chegava
tarde, porque a história vivida não era a que nós queríamos.
Via-Jornal GGN